«Sopa dos Pobres»
O Comedor de Feijão/ Annibale Carracci
562- «SOPA DOS POBRES»
A minha aldeia era uma das maiores do Concelho. Nela
viviam muitas gentes, de todas as formas e cores, uns assim e outros assados,
como habitualmente se dizia pelas minhas bandas.
Uns eram ricos, outros pobres, uns assim, assim outros remediados, havia os que bebiam
vinho, só vinho e os que bebiam água e nunca vinho.
Eram gostos dizia o povo.
Trabalhava-se no duro, na minha aldeia. Uns na agricultura
outros nas oficinas, fazendo um ou dois cabazes de vime, que mais tarde vendiam
para ganhar mais algum dinheiro e comprar mais alguma mercearia ou algum litro
suplementar de petróleo para os candeeiros ao petrolino de passagem.
Havia aqueles que, fruto dos tempos e das necessidades,
depois das horas solares, avançavam para o vale ou para os cortes da companhia
Americana que explorava os minérios metálicos da zona, ludibriando os guardas
que tentavam assegurar que o minério não era roubado pelos meliantes que
procuravam mais algum tostão para as suas vidas.
Claro que havia os senhores tais, os senhores engenheiros,
os brasonados, os Doutores da saúde, os amigos dos senhores tais, os bufos do
costume, os que foram e ainda eram e os que não eram mas foram. Vivia-se no
regime do Estado novo e tudo circulava nessa forma de viver.
Assim era a minha aldeia, um pouco igual a centenas de
outras, que existiam em Portugal.
Estávamos, devo dizer, em 1940, década de
muitos sacrifícios de um povo que não teve guerra mas que a viveu na sua
existência do dia a dia, com racionamentos, fome, miséria e muita propaganda
emanada dos altos oficiais da nação fazendo acreditar que os Portugueses eram
um povo eleito pelo Deus do poder, porque os tinha livrado da guerra ou seja,
da morte provocada pela guerra, porque a fome e a miséria, os Portugueses
tinham.
Os mais remediados e amigos do regime, para desentorpecer
dos dias mais aborrecidos, jogavam nessa altura um jogo que se baseava numa
hipotética invasão de Portugal pelos...bem, pelos inimigos, pois o regime
inclinava-se mais para os aliados.
Desde usar máscaras contra os gases venenosos, fornecidas
pelos serviços civis, reunir-se em grutas e túneis, cavernas e outros buracos
em caso de emergência, ter lanternas e outros afins preparados para essas
alturas, enfim, um pouco à Americana.
Os mais pobres eram os peões do jogo, aqueles que entravam
em último ou que ficavam no exterior sem as máscaras para ver no que dava.
Eram dias felizes para alguns, tristes para outros.
Mas quero-vos contar sobre algo que havia na minha aldeia
que não sendo uma novidade ou inovação local, era um motivo de orgulho para os
ricos da altura.
Mas para isso tenho de vos falar de uma Senhora tal, de uma
brasonada esposa de um engenheiro, que viva na minha aldeia.
Chamava-se Inês, Inês Hargreaves de Macedo. Por casamento
com um senhor tal, engenheiro (com a devida vénia ou o chapéu acenado) Rabaça
de Carvalho, ficou Inês Hargreaves de Macedo Rabaça de Carvalho.
Esta senhora, Inês, não tinha uma profissão definida, era a
Senhora dona Inês, a esposa do Senhor Engenheiro, não produzia nada, apenas
existia para permitir ao Senhor Engenheiro ter filhos, uma família e ter uma
esposa.
Nessa altura, os racionamentos e a miséria faziam que a fome
batesse á porta de 90% das famílias da minha aldeia. Muitos dos homens,
trabalhavam para os Senhores tais nos seus terrenos em troca de alguma comida,
vegetais e frutas, que, por ironia do destino, eles próprios plantavam e
colhiam. No final do dia, lá vinha o capataz que em nome do senhor tal e tal,
permitia que fulano e cicrano levassem um balde de batatas e uma couve, um nabo
e um bacalhau da horta, duas mãos-cheias de azeitonas para curtir.
Para alguns, esta era uma boa paga, uma sorte, diziam
muitos, que alguns havia que nem tinham onde ir buscar e viviam de esmolas na
rua.
Como mais famílias iam ficando sem sustento e a doença
insistia em ficar acamada, os mais novos, mais atrevidos e com boa corrida nas
pernas de galgos, surripiavam aqui e ali, o que podiam, entrando nos pobres
casebres com sorrisos de orelha a orelha e o fruto do galinheiro ou da coelheira
do senhor tal, ou o alforge de isto ou daquilo das hortas, em calmaria em dias
de domingo por alturas das missas.
A Dona Inês, como Senhora da casa de seu marido, o Senhor
engenheiro, sempre ocupado nos seus afazeres, tomava conta da cozinha, quer
dizer, ordenava as ementas, ordenava as ordenanças, os criados, a horta etc.,
etc. Já havia aqui, podem alguns dizer, trabalho.
E a D. Inês já se tinha apercebido que entre um domingo e
outro, ao voltar da missa, havia sempre falta de galinhas, coelhos, as hortas
eram rebuscadas, pisadas pelos surripiantes em pressas de dar às de vila-Diogo,
ou seja, fugir.
Nos serões de domingo, em que a entente senhorial se
encontrava nas casas de um ou de outro, em que o pároco da aldeia era então
convidado de honra e o sermão discutido enquanto que o presbítero avançava na
sua peça de cabrito e enxafordava-se no tinto da adega do dono da casa tudo em
glória de Deus, um dos convivas, um tal de Simões, levantou a voz e disse:
- Esta manhã foi um bacorito. Já é o segundo desta
criação que me desaparece não há respeito,
é o que é, roubam e ainda fazem
pouco, dizia a Dona Inês com o seu brandy após o repasto. Não
sei o
que querem, ainda no outro dia a Maria da Felicidade me veio bater à porta para
pedir
um pouco de leite para os cachopos.
Essa desgraçada, deita-se com qualquer um depois
agarra-se de barriga e lá vem mais outra boca, o Padre Joaquim, acabando o
vinho e lambendo a beiça, engordorada da carne.
Já a tenho chamado à atenção, mas está perdida.
Temos de fazer alguma coisa ou não há quem os
pare, afirmou o senhor engenheiro, o mais experiente nestas coisas de
manipular o povo.
- Que comam erva, disse o Simões, com ar anafado e já por tudo.
- Antes o comem a si do que a erva. Há que haver cuidado
em manobrar isto. Não há que deixar sair a gentalha do que estão
acostumados.
O Engenheiro pigarreou a garganta e continuou, servindo-se
de uma aguardente velha amadurecida na quinta das Fragas pelos seus criados.
- Tenho uma ideia. Se têm fome, roubam e nós não podemos
controlar o que roubam, estragam e levam o que querem, não adianta chamar a
guarda e o regedor não resolve nada. A melhor maneira é evitar que roubem e
façam estragos e que comam o que nós podemos controlar.
O Engenheiro virou-se
para a esposa, a D. Inês que estava ao lado do Padre Joaquim
com um rosário nas
mãos:
- A minha esposa vai instruir os criados para juntarem
as couves que não usamos e as batatas ratadas dos escava-terras, o feijão
partido e outros restos, para que todos os dias se faça uma caldeira de sopa
que a horas de almoço será distribuída aos pobres, à porta da nossa cozinha.
Vou mandar vir da sede de concelho umas malgas próprias e vou mandar fazer uma
banca. O senhor prior, no próximo domingo, avisará no sermão para passar
palavra. A caridade cristã está sempre nos nossos corações e fazemo-lo por Nosso Senhor e pelo Divino Espírito Santo.
- Ámen, responderam em coro os presentes,
apiedando-se de tal condição cristã do Senhor Engenheiro, fazendo o que a
palavra de Deus manda, pois é sabido, quem dá aos pobres, empresta a Deus.
Acabarão todos no paraíso, alvos de boas referências pois aos anjos nada se
lhes escapa.
E assim foi, passada que foi uma semana, o povo, esfomeado e
curioso, (já se falava em toucinho e osso cozido, chouriço a corte e pão e
presunto novo do tenro, não faltando o queijo à fatia) perfilou à porta da
cozinha do Senhor Engenheiro, esperando a abertura do reino que há-de vir em
comida.
Os criados saíram primeiro com a tal banca, onde um
caldeirão fumegante foi colocado e uma pilha de malgas foi trazida. Um a Um,
recebiam uma malga de sopa e uma fatia de pão, cozido no forno por aqueles que
agora faziam fila.
A sopa não era má, batata com fartura, faz a sopa grossa, as
couves eram as necessárias, nabo e cenoura e três ossos da salgadeira para dar
sabor.
A quem trouxesse vasilha, era permitido levar mais uma
concha para casa, os que não podiam vir por doença, eram também fornecidos por
vizinhos ou almas caridosas que lha levavam.
É claro que a D. Inês aparecia, para saber se tudo ia bem,
se o povo estava contente. O Simões tinha agora uma criação inteira, sem furtos
nem surpresas. Dava por mês, duas chouriças e três ossos de salgadeira, os
restos das folhas das couves depois dos animais estarem fartos, havia que dar
de comer aos animais, é desumano deixá-los à fome.
Com o tempo, os pobres iam também trazendo algumas couves e
batatas, para o dia seguinte, era um Estado Social a funcionar.
Os roubos diminuíram e o caso foi levado ao concelho, onde o
Engenheiro, homem com um peso já deveras influente, foi homenageado e tido em
consideração.
O Bispo visitou tal instituição que ficou conhecida como
sopa dos pobres, elogiando a D. Inês em pleno sermão dominical o que deixou a
excelsa Senhora embevedecida, mas não em excesso, devido à ameaça de pecado.
A D. Inês que não tinha nada para fazer e que se aborrecia
por isso, encontrou uma actividade que lhe deu, durante alguns anos, uma forma
de existência, louvada que foi em público e amada que era pelo povo, que a
tratava com mimos e carinhos quando a viam e encontravam.
Os convivas da entente senhorial, continuavam a encontrar-se
aos serões de domingo, em que planeavam o futuro do povo. O próprio regedor foi
chamado a estes convívios e o Senhor Engenheiro ofereceu-lhe um fato de
cashmira que ele já não usava por estar já muito usado.
Também o regedor passou a ser parte da entente, apesar de
não perceber nada do que lá se dizia, (segundo afirmava ele, quando bêbado) mas
o vinho era bom e a comida de qualidade.
Com o tempo, o povo começou a sentir-se usado, indignificado
e família por família, rua por rua, bairro por bairro, começou a juntar-se a a
reunir as suas poucas comidas e a fazer mais comida para todos.
A D. Inês apercebeu-se que a fila estava a diminuir dia a
dia. A passos vistos.
Nesses pequenos grupos comunitários, já se fazia comida em
condições, não só sopa, mas outros condutos. Já se conseguia sardinha que era
salgada na costa pelos pescadores que assim a enviavam sem grandes custos e o
povo da minha aldeia mandava para os pescadores, também sem grandes custos,
batatas e couves.
De Trás-os-Montes, de Montalegre, chegaram umas reses de
ovelhas que tinham sido juntas uma por uma que a casa de cada pobre tinha, para
uso de leite. Como não havia grandes prados lá pelas serranias e havia
bastantes baldios na minha aldeia, cheios de erva tenra, as ovelhas vinham pela
invernia ficavam ali e deixavam o leite e meia criação.
O povo aprendia a viver com ele próprio. Mas a entende
senhorial não aceitava estas coisas.
- Isto é coisa de comunistas, dizia o prior, mais
no uso das palavras.
- Qualquer dia ainda montam uma cooperativa e produzem
por eles próprios, dizia o Simões, já cheio de bacorinhos e sem saber o
que lhes fazer. Já têm ovelhas e consta que até porcos.
O Engenheiro era um homem experimentado e sabia bem que, sem
grande vontade, o povo não chega a lado nenhum, sem capataz, não se orienta.
Elaboraram então mais um plano, desta vez, com todas as
armas.
Um domingo que veio, o Engenheiro com a justificação de ser
a festa anual, abriu a adega e o vinho escorreu pelas gargantas dos homens
sequiosos.
Dois barricos de 200 litros cada foram preparados e um cântaro
de aguardente foi junto ao vinho.
Com tal tamanha e explosiva mistura, muitos dos homens do
povo, travaram-se de razões onde não havia razão nenhuma, muitos ficaram a mal,
outros bateram-se criando ódios familiares que nunca mais passaram, uma morte
aconteceu.
Na igreja o padre Joaquim fazia a sua prática e atacava no
povo e na sua independência dos senhores e dos capatazes. Não era
cristão, dizia em voz afectada e consumida pela raiva que tais acções o
faziam sentir. Tinha notado um abandono do povo pelas missas dominicais.
A D. Inês desabafava que o povo estava a viver num sonho,
que nunca iria a vida ser assim, que havia quem estivesse para comer carne e
quem estivesse para comer sopa. Que haveria sempre pobres e ricos e que sorte
tinham estes pobres por os ricos se interessarem por eles.
- Há sempre uma malga de sopa quente, pronta para ser servida, na nossa
casa a quem quiser voltar e tiver fome, dizia ela para a Maria da
Felicidade. Se quiseres leite, podes levar quanto queiras. Ontem, metade
da ordenha da semana passou-se e tivemos de deitar o leite fora.
A D. Inês voltou a ser apenas a mulher do Senhor Engenheiro
e voltou a estar aborrecida. Nunca entendeu bem porque o povo lhe voltou as
costas e porque não quiseram mais sopa de graça. Há muitas pessoas que também
não entendem o significado deste conto.
O povo da minha aldeia, esse mudou, não voltou mais a ter
sopa dos pobres nem a ser usado para caridade cristã e um dia, construiu mesmo
uma cooperativa. Sonhou com coisas novas, com outras vidas, acabou por cair
sempre no vinho do Engenheiro e nunca conseguiu livrar-se das razões sem razão
nenhuma.
A D. Inês já não existe. Morreu à alguns anos atrás muito
idosa.
Saiu da minha aldeia e nunca mais voltou. Chamava o povo de
vermelhos e nem já se lembrava de nomes que tinham sido parte da sua vida.
A sopa dos pobres é ainda uma memória viva para os mais
idosos que ainda hoje vivem na minha aldeia, tal como o local para onde foi
mudada, em frente à cozinha da casa brasonada do Senhor Engenheiro.
O padre Joaquim, foi meu professor muitos anos depois.
A minha aldeia e o meu povo nunca mereceram tal coisa.
José Perfeito
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