«O Arquimortes»
Conto de Augusto Abelaira
551- «O ARQUIMORTES»
A tua boa acção diária... E respondo ao Justino Soares que
se vá embora descansado, que estou quase a acabar a crónica sobre política
internacional (uns pozinhos do Monde, outros do Nouvel Observateur, deste,
daquele), mas puxando a coisa bem mais para a esquerda, por descargo de
consciência, aliás inútil, dado que a censura se encarregará de tosquiar esse
“para a esquerda”, um “para a esquerda” difícil, de resto: o conflito
sino-soviético, como poderíamos imaginar possível, há vinte anos, um conflito
assim entre irmãos – mas que mundo é este em que somos obrigados a julgar as
coisas nas bases postas pelos outros e não por nós, a aceitar dilemas que
talvez sejam simplesmente problemas mal postos? Pois, que não se preocupe, eu
trato da necrologia. “Pá – tinha-me ele dito –, combinei um encontro com uma
gaja bestial e já estou atrasado ... “ Sim, a minha boa acção diária para que
no exame de consciência, que aliás não farei logo à noite (falta-me o tempo!)
possa sentir-me de bem comigo próprio, possa dizer-me que não sou um puro
egoísta – muito antes pelo contrário sou capaz de sacrifícios (quais?) pelos
outros: adio, neste caso, por quinze minutos (e quinze minutos, a brincar a
brincar, são um nonagésimo sexto do dia), a minha saída deste antro detestado –
mas como aproveitaria eu esses quinze minutos se não tenho como tu, Justino
Soares, uma gaja bestial à minha espera (que nem estará à tua espera, pois
acabará certamente por chegar ainda mais atrasada do que tu)? E, ao mesmo tempo
que nas paredes brancas das casas do outro lado da rua a luz do Sol me obriga a
desviar os olhos da janela, pergunto-me se tu, mulher que vais chegar atrasada,
saberás que ele te trata por gaja, pergunto-me como te falará ele, como falarás
tu – se nesse encontro não porão vocês um pouco de sonho, de palavras
grandiloquentemente romanescas, a ilusão de que estão a viver um momento único,
jamais vivido sobre a Terra, inesquecível, um momento que irá prolongar-se por
muitos anos, que fará do mundo, de todas as coisas, uma doçura verde de erva
molhada (sim, uma doçura verde de erva molhada) ou se terão somente a lúcida
consciência de colherem da vida o resíduo mais imediato e provisório – resíduo
sem memória futura, tão identificado com o presente que até já passou. Ou
então, se haverá realmente, Justino Soares, alguma mulher, a calma repousante
dum rosto de mulher, duns compridos cabelos de azeviche (que é o azeviche?),
dumas palavras que desejas ouvir e nunca ouviste, se não terás falado assim
para te safares do jornal, do trabalho irrespirável, e para que eu te inveje,
neste fim de tarde, ao pensar daqui a uma hora que enquanto bebo café e
converso. O arquimortes inutilmente com amigos sobre os boatos que já não há
(aquelas velhas revoluções que estavam para rebentar no dia seguinte e que nunca
rebentavam), tu, grande maroto!, te esfregas na cama com uma gaja bestial –
mas, na realidade, ou porque ela não aparece ou porque nunca existiu, estarás,
quem sabe?, a tomar uma cerveja, uma simples cerveja, na mais modesta das
leitarias do teu bairro.
E se eu te armasse uma ratoeira? Se fosse à tua procura por todos os cafés de
Lisboa e ao encontrar-te dissesse cruelmente: “Então essa gaja?” Que me
responderias, conquistador imaginário? Mas se essa mulher não existe e tu
procuras apenas um pouco de sonho, invocando-me como testemunha para dares mais
realidade ao sonho, então porque lhe chamas gaja em vez de princesa das
laranjas de oiro, mulher de branco, raio de sol, porque te apostas em sonhar
tão baixo?
(Penso na Guilhermina, casada com o Eugénio, nas conversas que temos, nos
encontros que evitamos, naquele nosso último diálogo em que elipticamente
concluímos que nem sequer valia a pena tentarmos uma aventura fugaz, porque ela
acabaria por um fracasso.) Sim, a China, a U. R. S. S., e terminei – a censura
que faça o resto, ela decidirá o que o público deve ou não saber, decretará a
verdade. Pego depois na lista dos mortos (a tarefa do Justino Soares, a boa
acção que hoje me imponho), ouço-me dizer, lendo o primeiro nome (Manuela dos
Santos Cruz): “Vamos lá matar esta cambada!”, como se todos aqueles mortos
permanecessem vivos até o instante em que eu lhes baixasse os nomes ao papel,
tornando público o que até aí fora privado e desconhecido, inexistente,
portanto. Ouço-me dizer, falo verdade, porque a frase (“Vamos lá matar esta
cambada!”) não a inventei eu, tem uma voz que não é a minha, vou buscá-la ao
Arquimedes Meneses e Castro, que tinha a seu cargo a actualização necrológica
dos ficheiros do jornal. Para mim, tarefa ao que eu pensava mais, complexa,
reservara o registo complementar:
Os novos heróis que iam nascendo para a glória. Nascendo para a glória! Que
sensação estranha a minha, porque não confessá-lo?, quando introduzia um novo
nome no ficheiro, um Prémio Nobel, por exemplo, um desses homens que tinham
descoberto a dupla hélice, a estrutura última dos genes, que se entretinham a
ler no ADN o romance das nossas vidas! E precisarei de acrescentar que, ao
incluir no ficheiro esses recém-nascidos para a glória, me sentia igual a um
deus criador, como se fosse eu a dar-lhes vida? E a dar-lhes vida já com mais
de quarenta anos, aliviando-os assim da tortura sem nome de terem sido crianças
e adolescentes, dos tormentosos anos de aprendizagem, do ABC, dos exames, da
tabuada, do sarampo, nascidos homens feitos afinal – (e não foste tu,
Guilhermina, que me falaste da tua juventude como de uma época terrível?). Mas
esta sensação, penso agora, não a tive espontaneamente, autonomamente, ela
imitava, até certo ponto, embora ao invés, os sentimentos profundos do
Arquimedes.
Porque o Arquimedes, que poderia desempenhar a sua função discretamente,
esfregava as mãos sempre que alguém morria, dava gritos de satisfação (Olá!
Olá!), abria o ficheiro aparatosamente, e mal acabava de escrever com letra
gótica as palavras fatais (falecido em tantos de tal de mil novecentos e
qualquer coisa) relia-as em voz alta para que tão importante acontecimento a
ninguém passasse despercebido. Baixinho, calvo, muito pálido, sessenta anos,
era geralmente um homem triste, mas pouquíssimo cheguei a saber da vida dele
para além destas simples aparências. Ao que parece e apesar do nome
aristocrático, pertencia a uma família extremamente pobre, tirara um curso
comercial com grandes sacrifícios e dizia-se que a mulher o enganava, mas
provavelmente isto era falso, resultava da comparação do seu aspecto (um homem
apagado) com a frescura dela, muito mais nova, mulher aparentemente com sangue
na guelra, vistosa (vi-a uma única vez, e pelo braço do marido, a descer a
Avenida da Liberdade num domingo de santos populares). Quanto aos interesses do
Arquimedes, nunca consegui descobri-los, não discutia futebol, nunca lhe vi um
jornal desportivo nas mãos, nem sequer um romance policial, nunca consegui
imaginar como ocuparia o tempo em casa, se via televisão, se coleccionava
selos, se faria palavras cruzadas ou se votara no general Humberto Delgado.
Alegria, alegria verdadeira, só me lembro de lha ver nos dias em que alguma
sumidade, dessas que bem ou mal têm honras de arquivo, passava desta para
melhor. “Vamos lá matar mais este gajo!”, anunciava-nos, esfregando as mãos,
como se fossem àquelas mãos que estivessem presos os ténues fios da vida
(aprecia a expressão, Guilhermina, os ténues fios da vida!). Olá! Olá! Alegria
que talvez não se tivesse manifestado logo de início, talvez nem ele próprio
conseguisse localizar o dia exacto (o morto exacto) em que descobrira a sua
verdadeira missão neste mundo, o seu destino mais autêntico, o seu papel sobre
a Terra. Eu próprio... Quase direi que nem dera pelo Arquimedes, apesar de
trabalharmos juntos todos os dias, porque quando dou por ele, a primeira vez,
em suma, que olho para ele com olhos de ver e não como se olha para um simples
objecto igual a milhares de outros objectos (humanos?, não humanos? – o
ordenado que recebo não dá margem para ver humanidade nos homens que tenho de
dirigir), a primeira vez que dou por ele, dizia, que penso nele a sério durante
alguns momentos, já o Arquimedes era o que depois vim a considerar
ilusoriamente que sempre fora.
Decerto, por detrás desse juízo definitivo
estavam muitos meses de observação distraída em que ele não me aparecera ainda
como um sujeito dotado de certos atributos, mas sob a forma simples dos
próprios atributos: não um homem calvo, mas calvície, não um homem pálido, mas
palidez, não um homem triste, mas tristeza – sim, essa tristeza, atributo sem
sujeito (atributo ao qual eu não dera ainda sujeito) nesses dias em que os
mortos, porque eram simples e puros mortais, em vez de imortais (um Picasso, um
Stravinsky), não precisavam de ser mortos. Precisamente: dei-lhe um sujeito,
descobri-o para além das aparências ao ver que num desses dias de homens
mortos-mortais ele folheava desencantado o ficheiro com a esperança de que
algum já lá estivesse, fosse afinal um grande homem (os outros, os homens
vulgares, que ao morrer prescindiam dos serviços dele, desprezava-os,
considerava-os mortos de nascença). E por vezes surpreendi-o a reler o jornal
(a ler até a necrologia, que, toda a gente o sabe, é nos jornais a vala comum
dos homens vulgares) na vã esperança de encontrar algum morto-imortal – e o
êxito, apesar de tudo, certos dias alcançado, a satisfação com que gritava:
“Apanhei-o! Ah, o maroto que se me ia escapando!” O maroto que assim quase se
lhe escapara, e que por pouco ia conseguindo ficar vivo ad aeternum, era o
Matisse, o Thomas Mann ou o Bertrand Russell, cuja morte, bem à portuguesa,
vinha noticiada no mais obscuro lugar da mais obscura das páginas. Muito
corado, esfregando as mãos, lia em voz alta a data do nascimento, fazia contas,
e se por acaso o morto tinha ultrapassado os noventa anos não escondia a sua
indignação. De caminho, invadido por uma suspeita, consultava as outras fichas
para saber as idades de quantos se obstinavam em ficar vivos. “Nunca mais os
matamos?”, perguntava, como se brincasse, mas a sério – e à espera que eu lhe
abrisse a luz verde para a ambicionada hecatombe universal. “O gajo não nos
terá escapado?”, insistia, a ficha do Picasso na mão, sofrendo com a ideia de
que aquele (ou outro) continuasse clandestinamente vivo. Porque para o
Arquimedes, e isto não é insinuar que conhecesse Platão (o Arquimedes era um filósofo espontâneo, tenho de o dizer), o arquivo do Diário da Tarde
transformara-se no mundo dos arquétipos, esse mundo longínquo do qual tudo o
mais é sombra na caverna.
De facto, caso quiséssemos saber com rigor se um Thomas Mann era vivo ou morto,
onde, senão no arquivo, poderíamos encontrar a resposta? Certo dia, sujeitou ao
meu exame um cálculo perturbador: dez por cento dos mortais-imortais incluídos
no ficheiro ainda estavam vivos, o que, explicou, era estatisticamente
improvável num arquivo de personalidades que se distribuíam por cerca de quarenta séculos desde Amenofis IV (não sei bem porquê
o ficheiro começava com este adorador do Sol) até o último coronel que fez
ontem (ou há-de fazer amanhã) mais uma revolução fascista já não me lembro (ou
não sei ainda) em que desgraçado país. Objectei-lhe que o número parecia
razoável se o comparássemos com o que sucedia em Lisboa: efectivamente, tanto
quanto sei, a percentagem dos lisboetas vivos é bem mais elevada ainda, orçando
pelos cem por cento.
O argumento perturbou-o e ele não se atreveu a dar-me resposta imediata, mas no
dia seguinte contra-atacou, recorrendo sempre a demonstrações de ordem
estatística: trinta por cento dos mortais-imortais vivos ainda e registados no
ficheiro (no Arquétipo, como diziam os graciosos sem graça nenhuma lá do
jornal) já deviam ter setenta e nove anos (média exacta). Recorria à minha
comparação com Lisboa: “Acha crível que trinta por cento dos Lisboetas andem à
roda dos setenta e nove anos, mais mês menos mês?” Objectei como pude (concedo
que o argumento era de peso) e alguns dias depois o Arquimedes propôs-me que
matássemos o Picasso, por ser pouco provável que ainda pudesse estar vivo.
Limitei-me a uma dúvida: que data havíamos de escolher? (Se nos amamos,
Guilhermina, se nos entendemos como tu não te entendes com o Eugénio, como eu
não me entendo com a Helena, porque não tentamos a grande aventura? Porque a
experiência nos ensinou que o amor passa, que dentro de um ano já não nos
entenderemos assim e que portanto não vale a pena ensaiar o que está destinado
ao fracasso e que seria somente a repetição de experiências que ambos já
tivemos, tu com o Eugénio, eu com a Helena?)
Os brincalhões do Diário da Tarde, que já haviam inventado a história do
Arquétipo, começaram então a chamar-lhe o Arquimortes (também, por vezes, e com
a mesma falta de humor, o Arquimorto). Já então o dia que ele sempre recordava
com saudade era uma certa segunda-feira em que nada menos de sete homens
geniais haviam morrido. “Hoje vamos aqui matar uma porção deles”, dissera, mal
me vira, e associando-me à sua própria alegria, pois falava na primeira pessoa
do plural.
Felizmente sou um anónimo sem honras de arquivo, um desses homens que nem
sequer são sombras na caverna, pois lhes falta o Arquétipo, um desses homens
que não chegaram portanto a existir (e que recusam – recusamos, Guilhermina – a
vida. Porque ninguém, nem mesmo nós, poderia roubar-nos os próximos meses da
nossa aventura, futuro breve que ficaria indestrutivelmente conservado nas
nossas memórias. Porque lhe fugimos, porque nos negamos um passado inviolável,
nós a quem nada mais resta do que a morte próxima ou longínqua?). Sim, um
anónimo sem honras de arquivo – de contrário ficaria horrorizado mal sentisse
poisados sobre mim os olhos do Arquimedes. Para ele, a pouco e pouco fui-o
percebendo, a vida era a inevitável concessão que um universo imperfeito se
vira obrigado a admitir para que a morte, substância de todas as coisas,
pudesse triunfar. Nisto nesta visão niilista, (e profunda!) do cosmos
reencontrava-se ele, aliás, embora de forma mais genial e prática, com toda uma
família de grandes espíritos que desde a aurora do mundo têm visto no homem um
cadáver adiado um momento de negatividade na positividade do nada.
Certo dia encontrei-o-na rua, os olhos presos ao Teixeira (o Teixeira, o Álvaro
Teixeira, o poeta que tanto admiro, jovem ainda com os seus noventa e dois
anos!), e que nesse momento, apoiado na sua bengalinha, conversava já não sei
com quem, contribuindo, só porque existia, para um acréscimo de imperfeição no
universo. Observei de longe o Arquimedes, antes de me aproximar, e quase posso
garantir que lhe vi uma foice, uma longa foice na mão. “Por aqui?”, disse-lhe
depois, ainda aterrorizado No azul tranquilo, mas rico de imperfeição, da tarde
que anoitecia, vi perfeitamente evolar-se a foice que ele segurava, deixando no
céu um ténue rasto de fumo que se prolongou sobre Lisboa por muito tempo
(falou-se dessa nebulosidade no boletim meteorológico da televisão). Alguns
dias adiante tive de ir ao Arquétipo para lá introduzir um novo gigante acabado
de entrar no tablado da fama (com trinta e cinco anos!) e, por acaso, saltou-me
à vista o verbete do Teixeira – devidamente falecido, embora no ano seguinte.
Um pressentimento levou-me a consultar as fichas do Picasso, do Stravinsky, do
Casals, então ainda vivos (ou considerados vivos por toda a gente, incluindo os
próprios – mas a opinião destes é evidentemente subjectiva e interessada, não
dá quaisquer garantias de verdade). Se o Teixeira fora morto daí a um ano, o
Stravinsky fora-o daí a dois, o Picasso daí a três, o Casals... Outro
pressentimento forçou-me a procurar alguns nomes por mim recentemente ali
introduzidos (o Luria, o Delbrück, etc.), esses novos vivos que as marés do
talento iam substituindo aos mortos. O Arquimortes não os matara directamente,
limitara-se a retirar-lhes as fichas, negando-lhes assim que tivessem chegado a
existir.
Ainda perplexo, sem coragem de chamá-lo à ordem, ouvi-o dizer num dos seus
raros dias de fraqueza confessional: “Conseguiremos alguma vez pôr unicamente
mortos naquela gaveta?” Conseguiremos e não conseguirei, ó irmão!
Preciso agora de acrescentar-te, Guilhermina, que o Teixeira veio efectivamente
a morrer no ano seguinte, que o Stravinsky morreu dois anos depois, que todos
os dias abro o jornal com receio de que o Casals e o Picasso...? Precisarei de
acrescentar-te que o proibi de continuar aquela tarefa?
Mas a partir de então a alegria varreu-se-lhe do rosto, nunca mais ninguém lhe
ouviu dizer olá!, enquanto esfregava as mãos, tornou-se um homem triste
(tornou- -se tristeza, atributo sem sujeito), um homem irrealizado, um homem
que perdera o ser, alguém que já não podia introduzir no mundo imperfeito um
pouco de perfeição, e despediu-se do Diário da Tarde com um argumento sem pés
nem cabeça, abandonando assim uma empresa à qual estava ligado havia mais de
trinta anos.
Leio o nome da Manuela dos Santos Cruz, mulher humilde (ao contrário do
Arquimedes sou hoje um matador de gente humilde) e sinto que estou a adiar-lhe
a morte, que não morrerá enquanto eu não lhe puser o nome no jornal, que posso
até deixá-la em suspenso se não lhe puser o nome no jornal (mas amanhã quantas
pessoas protestariam por tê-la salvo? Mesmo sem bens de raiz precisa de ser
morta para que os vivos possam herdar-lhe a pobre mobília). Hesito... Poderei
matar quem nunca chegou a existir no mundo das essências, no Arquétipo do Arquimortes,
quem, portanto, nem sombra da caverna chegou a ser, quem nem sequer era sombra
duma sombra? Decido-me, pura ilusão que és, mato-te friamente (vejo as minhas
mãos ensanguentadas), agora estás definitiva-mente morta até para aqueles que,
por nunca pensarem em ti, não tinham ainda posto outra cruz à frente do teu
nome, Manuela dos Santos Cruz. E escrevo, tão pouco!, logo abaixo do título:
“Faleceu a senhora D. Manuela dos Santos Cruz, de quarenta e quatro anos,
natural da Azinheira, casada, residente na Rua Braga de Melo, 17, 1.º, Esq. O funeral, a cargo da Agência Rebordão, realiza-se
amanhã, pelas quinze horas, da sua residência para o cemitério de Benfica.” O
nome seguinte... (não, não era o teu, não era o meu, Guilhermina, porque nós já
morremos há muito tempo ao desistirmos um do outro), o nome seguinte é o de
Arquimedes Meneses e Castro, casado, sessenta e dois anos, natural de Portunhos
(costumava dizer que era de Lisboa, receava que o considerassem provinciano).
Não, Arquimedes Meneses e Castro, vou passar por cima do teu nome – a ti, até
porque já ninguém te recorda e ninguém dará portanto pela tua falta, não serei
eu a matar-te, vou deixar-te vivo para sempre, vou deixar-te vivo para a
eternidade!
Augusto Abelaira
Sem comentários:
Enviar um comentário