«Um Erro no Calendário», por Teófilo Braga.
«Um Erro no Calendário»
Conto de Teófilo Braga
556- «UM ERRO NO CALENDÁRIO»
Quem o visse sentia-se atraído para ele por uma fatalidade
irresistível. O olhar encovado e cintilante tinha a fascinação da onça
refalsada. A estamenha monástica da humildade era uma arma de que se servia. A
cor sombria do remorso, que o ralava interiormente, sabia invertê-la tão bem na
maceração da penitência, que assim fácil lhe era devassar todas as
consciências, e submetê-las ao seu capricho, tiranizá-las, alimentando sempre
uma infinidade de horrores futilíssimos, com que as trazia suspensas. Cabisbaixo,
meditando continuamente um longo plano de vingança, de uma sevícia obscura e
mesquinha, os que o viam achavam naquela gravidade satânica de monge um ar
contemplativo de compunção piedosa.
O frade fez-se Director espiritual.
De uma extração ilustre, rico, herdeiro de um grande nome,
porque desprezaria as pompas do mundo, os amores do século, as glórias?
Acordar-lhe-iam os anos todos esses sentimentos a um tempo
na alma, e o horror do impossível torná-lo-ia hipócrita, apagando-lhe a
esperança com o sopro do cinismo? Ele amara a filha de um velho fidalgo de
Espanha, que desejava também realizar essa aliança dos seus pergaminhos com as
grossas somas do enamorado de Hernanda, a madrilena engraçada, de ingénua
desenvoltura. Hernanda, na morbidez voluptuosa da sua natureza oriental, nunca
mais sorriu, nunca mais deixou ver aquela alegria impaciente que a animava,
logo que soube a resolução da família.
Detestava o galanteador, aborrecia-o de morte, resistindo
sempre às instâncias e ameaças do pai, que procurava sacrificá-la aos
interesses e pompas do seu brasão de armas.
Hernanda tinha um amor de infância, puro, recôndito; como um
raio de luz que nos fecunda ao desabrochar da vida, aquela afinidade precoce e
ignorada de todos fora uma intuição do sentimento. Amaram-se longo tempo sem
saber o que era amor. Quando um dia acordaram à luz sentiram necessidade um do
outro, a ansiedade de uma mesma aspiração identificou as suas almas para
sempre. Cedo o noivo proposto soube da existência de um rival obscuro.
Procurou-o, farejou-o na sombra, lançou-lhe o repto.
Encontraram-se. Ambos corajosos e fortes bateram-se
destemidos num duelo a todo o transe.
Logo que Hernanda soube da morte do seu amor primeiro jurou
um ódio eterno ao assassino. O velho fidalgo não compreendia estas coisas;
ameaçou-a com o convento. A ideia da clausura, em vez de amedrontá-la,
sorriu-lhe; era um refúgio, o único que lhe restava no mundo, depois de perdida
a esperança que resume todas as que se podem ter na vida. Professou.
O galanteador assistiu impassível na igreja, para ouvi-la
pronunciar os votos. Havia naquela coragem uma alegria selvagem, egoísta, para
ver que a mulher que ele amava debalde não havia de pertencer a mais ninguém.
Depois de satisfeito este instinto, lembrando-se de que fora ludibriado,
desprezado, passou-lhe pela cabeça uma ideia atroz de vingança. Queria salvar o
seu orgulho ferido. Lembrou-se também de abandonar o mundo, esconder-se debaixo
da cúpula monástica. Para os que o conheciam foi um rasgo heroico de
resignação; para ele era um meio de poder ver de mais perto Hernanda: só assim
podia torturá-la, vir a ser seu Director espiritual.
O sossego da solidão deixa apreciar os ruídos mais
imperceptíveis; Hernanda, na mudez da cela, na ausência completa de interesses
que lhe povoassem a existência, era impressionada profundamente pelos
sentimentos mais leves que lhe passavam na alma como as auras suaves pelas
cordas de uma harpa. A imaginação desenvolvera-se a tal ponto, que a fazia
sofrer. Foi assim que frei Pedro, o disfarçado monge, veio a ser seu Diretor de
consciência. Ele exagerava as doutrinas místicas do dualismo, o predomínio do
mal, essa luta incessante do espírito contra a carne, fortificada pelas
mortificações do corpo, pela vigília, cilícios, jejuns, e orações fervorosas.
Provocava-a a abstrair do gozo dos sentidos, a contrariar a
natureza e abnegar da vida. Apontava-lhe a natureza risonha e luxuriante como
uma voluptuosidade, o regozijo e sede de amor que a harmonia do universo
infunde como uma infração à regra austera da perfectibilidade.
Era preciso a solidão para gozar essa existência íntima,
recôndita, e arrebatar-se até Deus. Com o silêncio imposto, arvorado em
preceito, exaltou-lhe a vida interior, e o tumulto de ideias que se sucediam
prolongava a excitação cerebral. A vigília extensa e contínua, a maceração e a
leitura piedosa foram-lhe desconcertando o equilíbrio nervoso. As visões
extravagantes cercavam-na; vozes estranhas segredavam-lhe palavras assombrosas,
que ela repetia tremendo na penumbra do confessionário.
Foi então que o monge, depois de a ter desprendido pela
ascese insistente dos limos da terra, lhe começou a falar de amor, o amor
divino, a ansiedade preenchida pelo vácuo, a sede mitigada com a calma do
deserto. A imaginação perdida nesse ideal vago, sem realidade possível,
delirava, revestia a imagem palpável com todos os encantos de um devaneio
sensual, dava-lhe vida, amor, para corresponder ao que tumultuava na sua alma
solitária. Mulher, menos curiosa da razão suficiente das coisas, sujeita a perturbações
histéricas, enamorava-se da cara altiva e conjuntamente modesta do Cristo, como
a representavam os pintores da Idade Média; esquecia-se da vida exterior,
parecia que a alma livre se absorvia na imanência da divindade. Era este amor,
inspirado pelas imagens dos templos, tão desvairado como a paixão do artista
grego pela estátua ebúrnea que palpitava debaixo do escopro. Santa Rosa de Lima
amava uma imagem da Virgem que tinha nos braços o bambino. Osana de
Mântua, diante de uma imagem linda, caía em êxtase. Estas figuras de Jesus,
radiantes de candura e fascinação, belas, falavam aos sentidos; é por isso que
o amor divino tem na sua veemência e transporte um carácter sensual,
como o exprimiram o solitário da Úmbria nos seus cantos a Santa Clara, S.
João da Cruz a Santa Teresa de Jesus, Madame Chantal e S. Francisco de Sales,
Fenelon e Madame Guyon.
O Diretor espiritual da desditosa Hernanda, descrevendo-lhe
o amor divino, isento da zelotipia das paixões do mundo, não tendo a alma
cândida de nenhum desses apaixonados e santos poetas, pressentira, dois séculos
antes, a teoria ascética de Molinos. Tinha em vista matar o pecado pelo pecado.
Era impossível já. Hernanda pairava em espírito pelo empíreo; sua alma pura
abismara-se na imensidade do foco de todo o amor. O êxtase em Hernanda,
originado pelo fervor piedoso, era o entorpecimento dos sentidos, um sonho
indolente à cadência dos inefáveis concertos das cítaras dos querubins.
Então o Diretor de consciência descobriu uma nova tortura
para flagelá-la; tinha um prazer infernal em tornar-lhe lento o sofrimento.Ele
mostrava-lhe que era o êxtase o mais alto favor do céu concedido aos seus
eleitos, e descobria ao mesmo tempo como isso era para todos os grandes santos
uma provação difícil, pelo terror dos próprios merecimentos. São Paulo, o que
melhor revelou nos seus escritos o espírito do cristianismo, na Epístola
segunda aos Coríntios, fala deste terror.
Naquela virgindade tímida da alma, o corpo foi caindo em
inanição; tinha uma imobilidade beatífica. Apesar de todos os flagícios e
macerações, o rosto conservava ainda a frescura da rosa entreaberta, rociada
pelo orvalho matutino. No passamento das virgens, sereno como o declinar de uma
aurora vespertina de primavera, Jesus visitava as suas desposadas, como referem
os legendários. Hernanda abrasara-se no amor ardente do céu; o vácuo
absorvera-lhe o derradeiro alento e a sua alma soltou-se na anciã do infinito.
Alta noite, sentiram-se umas harmonias transbordando em enchentes do órgão do
mosteiro; era uma musica indizível, nunca ouvida na terra. Foram ver; ninguém
percorria o teclado. Melodias suavíssimas e remotas derramavam-se da cela de
Hernanda. Entraram. Respiravam-se perfumes aéreos em torno dela. Um sorriso
diáfano, angélico, lhe ficara nos lábios desbotados, como a ultima vibração de
uma harpa que se quebrara; parecia a encarnação de um sonho melífluo das
harmonias de Palestrina.
II
Desde o romper da alva que os sinos da Catedral ecoavam
clangorosos num dobre funerário; o povo agitava-se inquieto pelas ruas, como na
impaciência de uma grande festa. Era o dia de um Auto de Fé em Espanha, uma
solenidade extraordinária, com que se celebrava e honrava a coroação dos reis,
o nascimento do herdeiro presuntivo, e a sua maioridade; era o grande drama
judiciário da velha jurisprudência teocrática revestido dos horrores do
símbolo, mesclado de sangue derramado pelo fanatismo e prepotência monacal. A
procissão vinha coleando ao longe, com uma gravidade fúnebre, misturada de
risos do rapazio que tudo parodia. Por todas as janelas negrejavam cabeças,
donzelas engraçadas, contentes, distraídas com a festividade aparatosa. À
frente das confrarias e irmandades, os carvoeiros traziam a lenha para a fogueira,
imitando o passo da Escritura, em que Isaac caminhava para a montanha do
sacrifício. Seguiam-se em filas extensas os frades dominicanos, arvorada na
frente a cruz branca, e o bolsão inquisitorial de damasco vermelho do duque de
Medina Celli. Os penitenciados vinham vestidos de um modo irrisório e grotesco,
descalços, cobertos de um sambenito, com um chapéu afunilado, com figuras
cabalísticas, diabos, labaredas e caveiras pintadas.
A multidão pávida e crédula, sentia aquela grande
contradição do coração humano, apupava os miseráveis que interiormente a
comoviam e lhe arrancavam lágrimas de compaixão. Chegados próximo do estrado
real, o Inquisidor geral veio receber o juramento da extirpação das heresias.
Os brandões crepitavam nas mãos dos condenados; tornavam
mais lúgubre o momento. Depois viu-se levantar uma figura macilenta, a cabeça
encoberta no capuz, cruzadas as mãos sobre o peito em que tinha repousado um
crucifixo, o mesmo que um dia apresentara diante dos reis católicos Fernando e
Izabel, dizendo-lhes que o vendessem por trinta dinheiros, já que se
queriam tornar menos rigorosos contra os judeus. Era o pregador frei Pedro. A
voz taurina fazia estremecer as turbas, representando-lhes ao vivo, nos esgares
e visagens que fazia, os terrores das penas do inferno. A multidão estava
suspensa perante as vociferações sangrentas do dominicano.
— Sabes... (disse um desconhecido para um cavaleiro ainda
novo, que estava atento) não o conheces?
O outro respondeu-lhe em voz baixa, de um modo quase
imperceptível:
— Ah, és tu, Diego Ortis? Bem o conheço pela fama do seu
nome. É Pedro de Arbués.
— E não te sentes possuído de raiva ao pronunciar esse nome
de um hipócrita e assassino?
— Assassino?
— Sim! Bem o deveras saber, porque é a ti a quem compete a
vingança. Ele pretendeu por todos os meios desposar Hernanda, tua irmã.
Lembras-te? Era rico, e o teu pai desejava com todas as veras da alma este
enlace. A infeliz menina resistiu sempre, até que se viu obrigada a professar
num mosteiro, abandonada da família. Não é verdade isto? Ferido no orgulho, ele
meteu-se a padre, disfarçou-se debaixo da cúpula monástica e fez-se seu Diretor
espiritual. Matou-a lentamente com jejuns e macerações, com a lembrança
contínua da tentação e da condenação eterna. Pobre Hernanda! O mundo disse que
morrera como uma santa; Deus sabe que desesperos profundos lhe abalaram a vida,
e quantas vezes, no íntimo da alma opressa, não amaldiçoou a hora do seu
nascimento!
— E como sabes isso?
— Como o sei? Eu digo-te só que a vingança não dorme. Também
tenho um legado de sangue a cumprir. Era o meu irmão o apaixonado, o eleito de
Hernanda. Se há nada mais santo do que um amor que nos acompanha desde a
infância, Alonso Ortis, doestado pelo rival audacioso, bateu-se generosamente e
caiu ferido, morto à traição. Já compreendes tudo.
— Inferno! Para que me disseste essas coisas aqui, entre
esta gente? Sinto a convulsão da raiva que prostra, a sede de sangue que me
atira para ele. Hernanda! a desgraçada, a silenciosa, a tímida, que tudo sofreu
e nunca soube queixar-se! Eu quero trocar todas as tuas dores por um prazer
egoísta de vingança. Fala-me, Diego Ortis; o que queres de mim?
— Quero prudência! Eu tenho esperado dia e noite, por toda a
parte, e nunca o tenho encontrado! Nunca esta mão deixou de repousar sobre o
punhal, e ainda me parece que não é chegado o momento.
A este tempo o frade estava na peroração do discurso; a
turba batia nas faces, consternada, por terra. Os dois vultos permaneciam de
pé, insensíveis. O pregador desceu do púlpito e vinha acercando-se deles com um
olhar ameaçador, para repreendê-los da insólita irreverência. O jovem fidalgo
precipitou os planos de vingança, e arremeteu com um punhal no ar: apesar do
ímpeto com que foi brandido resvalou sobre o hábito que encobria debaixo uma
armadura cerrada.
Ergueu-se um sussurro repentino. Era impossível a salvação;
com a ânsia do desespero, Diego Ortis descarregou-lhe prontamente
sobre o crânio tonsurado a sua espada de cavaleiro. O povo alarmou-se e ia a
precipitar-se sobre os facínoras; recuou de horror diante da impassibilidade
dos dois. A estatura corpulenta do padre tomou as proporções de um Golias,
derrubado, banhado de sangue negro, a massa encefálica derramando-se pelas
suturas fraturadas do crânio. Fazia horror.
Naquele mesmo dia os dois assassinos foram penitenciados;
interrompeu-se a missa, e a procissão prosseguiu levando-os para o quemadero,
onde, com os demais, foram devorados pelas chamas. Seguiram-se as pesquisas, as
vexações e os sequestros; com os seus processos tenebrosos a Inquisição lançou
a rede por sobre muitas famílias. A Espanha era, como se disse, uma grande
fogueira. Mas como há uma antítese fatal na natureza humana, manifestada muitas
vezes, a cada instante da vida, na transição instantânea do sublime ao
ridículo, Roma parodiou também esta cena sanguinolenta do drama tétrico de
Torquemada na farsa jocosa da canonização do frade pregador, que ainda hoje se
venera nos altares e de quem reza a folhinha com o nome de S. Pedro de Arbués.
Ora pro nobis.
Teófilo Braga
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