quinta-feira, 9 de julho de 2015

OUTROS CONTOS

«Um Erro no Calendário», por Teófilo Braga.

«Um Erro no Calendário»
Conto de Teófilo Braga

556- «UM ERRO NO CALENDÁRIO»

Quem o visse sentia-se atraído para ele por uma fatalidade irresistível. O olhar encovado e cintilante tinha a fascinação da onça refalsada. A estamenha monástica da humildade era uma arma de que se servia. A cor sombria do remorso, que o ralava interiormente, sabia invertê-la tão bem na maceração da penitência, que assim fácil lhe era devassar todas as consciências, e submetê-las ao seu capricho, tiranizá-las, alimentando sempre uma infinidade de horrores futilíssimos, com que as trazia suspensas. Cabisbaixo, meditando continuamente um longo plano de vingança, de uma sevícia obscura e mesquinha, os que o viam achavam naquela gravidade satânica de monge um ar contemplativo de compunção piedosa.

 O frade fez-se Director espiritual.

 De uma extração ilustre, rico, herdeiro de um grande nome, porque desprezaria as pompas do mundo, os amores do século, as glórias?

 Acordar-lhe-iam os anos todos esses sentimentos a um tempo na alma, e o horror do impossível torná-lo-ia hipócrita, apagando-lhe a esperança com o sopro do cinismo? Ele amara a filha de um velho fidalgo de Espanha, que desejava também realizar essa aliança dos seus pergaminhos com as grossas somas do enamorado de Hernanda, a madrilena engraçada, de ingénua desenvoltura. Hernanda, na morbidez voluptuosa da sua natureza oriental, nunca mais sorriu, nunca mais deixou ver aquela alegria impaciente que a animava, logo que soube a resolução da família.

 Detestava o galanteador, aborrecia-o de morte, resistindo sempre às instâncias e ameaças do pai, que procurava sacrificá-la aos interesses e pompas do seu brasão de armas.

 Hernanda tinha um amor de infância, puro, recôndito; como um raio de luz que nos fecunda ao desabrochar da vida, aquela afinidade precoce e ignorada de todos fora uma intuição do sentimento. Amaram-se longo tempo sem saber o que era amor. Quando um dia acordaram à luz sentiram necessidade um do outro, a ansiedade de uma mesma aspiração identificou as suas almas para sempre. Cedo o noivo proposto soube da existência de um rival obscuro. Procurou-o, farejou-o na sombra, lançou-lhe o repto.

 Encontraram-se. Ambos corajosos e fortes bateram-se destemidos num duelo a todo o transe.

 Logo que Hernanda soube da morte do seu amor primeiro jurou um ódio eterno ao assassino. O velho fidalgo não compreendia estas coisas; ameaçou-a com o convento. A ideia da clausura, em vez de amedrontá-la, sorriu-lhe; era um refúgio, o único que lhe restava no mundo, depois de perdida a esperança que resume todas as que se podem ter na vida. Professou.

 O galanteador assistiu impassível na igreja, para ouvi-la pronunciar os votos. Havia naquela coragem uma alegria selvagem, egoísta, para ver que a mulher que ele amava debalde não havia de pertencer a mais ninguém. Depois de satisfeito este instinto, lembrando-se de que fora ludibriado, desprezado, passou-lhe pela cabeça uma ideia atroz de vingança. Queria salvar o seu orgulho ferido. Lembrou-se também de abandonar o mundo, esconder-se debaixo da cúpula monástica. Para os que o conheciam foi um rasgo heroico de resignação; para ele era um meio de poder ver de mais perto Hernanda: só assim podia torturá-la, vir a ser seu Director espiritual.

 O sossego da solidão deixa apreciar os ruídos mais imperceptíveis; Hernanda, na mudez da cela, na ausência completa de interesses que lhe povoassem a existência, era impressionada profundamente pelos sentimentos mais leves que lhe passavam na alma como as auras suaves pelas cordas de uma harpa. A imaginação desenvolvera-se a tal ponto, que a fazia sofrer. Foi assim que frei Pedro, o disfarçado monge, veio a ser seu Diretor de consciência. Ele exagerava as doutrinas místicas do dualismo, o predomínio do mal, essa luta incessante do espírito contra a carne, fortificada pelas mortificações do corpo, pela vigília, cilícios, jejuns, e orações fervorosas.

 Provocava-a a abstrair do gozo dos sentidos, a contrariar a natureza e abnegar da vida. Apontava-lhe a natureza risonha e luxuriante como uma voluptuosidade, o regozijo e sede de amor que a harmonia do universo infunde como uma infração à regra austera da perfectibilidade.

 Era preciso a solidão para gozar essa existência íntima, recôndita, e arrebatar-se até Deus. Com o silêncio imposto, arvorado em preceito, exaltou-lhe a vida interior, e o tumulto de ideias que se sucediam prolongava a excitação cerebral. A vigília extensa e contínua, a maceração e a leitura piedosa foram-lhe desconcertando o equilíbrio nervoso. As visões extravagantes cercavam-na; vozes estranhas segredavam-lhe palavras assombrosas, que ela repetia tremendo na penumbra do confessionário.

Foi então que o monge, depois de a ter desprendido pela ascese insistente dos limos da terra, lhe começou a falar de amor, o amor divino, a ansiedade preenchida pelo vácuo, a sede mitigada com a calma do deserto. A imaginação perdida nesse ideal vago, sem realidade possível, delirava, revestia a imagem palpável com todos os encantos de um devaneio sensual, dava-lhe vida, amor, para corresponder ao que tumultuava na sua alma solitária. Mulher, menos curiosa da razão suficiente das coisas, sujeita a perturbações histéricas, enamorava-se da cara altiva e conjuntamente modesta do Cristo, como a representavam os pintores da Idade Média; esquecia-se da vida exterior, parecia que a alma livre se absorvia na imanência da divindade. Era este amor, inspirado pelas imagens dos templos, tão desvairado como a paixão do artista grego pela estátua ebúrnea que palpitava debaixo do escopro. Santa Rosa de Lima amava uma imagem da Virgem que tinha nos braços o bambino. Osana de Mântua, diante de uma imagem linda, caía em êxtase. Estas figuras de Jesus, radiantes de candura e fascinação, belas, falavam aos sentidos; é por isso que o amor divino tem na sua veemência e transporte um carácter sensual, como o exprimiram o solitário da Úmbria  nos seus cantos a Santa Clara, S. João da Cruz a Santa Teresa de Jesus, Madame Chantal e S. Francisco de Sales, Fenelon e Madame Guyon.

 O Diretor espiritual da desditosa Hernanda, descrevendo-lhe o amor divino, isento da zelotipia das paixões do mundo, não tendo a alma cândida de nenhum desses apaixonados e santos poetas, pressentira, dois séculos antes, a teoria ascética de Molinos. Tinha em vista matar o pecado pelo pecado. Era impossível já. Hernanda pairava em espírito pelo empíreo; sua alma pura abismara-se na imensidade do foco de todo o amor. O êxtase em Hernanda, originado pelo fervor piedoso, era o entorpecimento dos sentidos, um sonho indolente à cadência dos inefáveis concertos das cítaras dos querubins.

 Então o Diretor de consciência descobriu uma nova tortura para flagelá-la; tinha um prazer infernal em tornar-lhe lento o sofrimento.Ele mostrava-lhe que era o êxtase o mais alto favor do céu concedido aos seus eleitos, e descobria ao mesmo tempo como isso era para todos os grandes santos uma provação difícil, pelo terror dos próprios merecimentos. São Paulo, o que melhor revelou nos seus escritos o espírito do cristianismo, na Epístola segunda aos Coríntios, fala deste terror.

 Naquela virgindade tímida da alma, o corpo foi caindo em inanição; tinha uma imobilidade beatífica. Apesar de todos os flagícios e macerações, o rosto conservava ainda a frescura da rosa entreaberta, rociada pelo orvalho matutino. No passamento das virgens, sereno como o declinar de uma aurora vespertina de primavera, Jesus visitava as suas desposadas, como referem os legendários. Hernanda abrasara-se no amor ardente do céu; o vácuo absorvera-lhe o derradeiro alento e a sua alma soltou-se na anciã do infinito. Alta noite, sentiram-se umas harmonias transbordando em enchentes do órgão do mosteiro; era uma musica indizível, nunca ouvida na terra. Foram ver; ninguém percorria o teclado. Melodias suavíssimas e remotas derramavam-se da cela de Hernanda. Entraram. Respiravam-se perfumes aéreos em torno dela. Um sorriso diáfano, angélico, lhe ficara nos lábios desbotados, como a ultima vibração de uma harpa que se quebrara; parecia a encarnação de um sonho melífluo das harmonias de Palestrina.

 II

 Desde o romper da alva que os sinos da Catedral ecoavam clangorosos num dobre funerário; o povo agitava-se inquieto pelas ruas, como na impaciência de uma grande festa. Era o dia de um Auto de Fé em Espanha, uma solenidade extraordinária, com que se celebrava e honrava a coroação dos reis, o nascimento do herdeiro presuntivo, e a sua maioridade; era o grande drama judiciário da velha jurisprudência teocrática revestido dos horrores do símbolo, mesclado de sangue derramado pelo fanatismo e prepotência monacal. A procissão vinha coleando ao longe, com uma gravidade fúnebre, misturada de risos do rapazio que tudo parodia. Por todas as janelas negrejavam cabeças, donzelas engraçadas, contentes, distraídas com a festividade aparatosa. À frente das confrarias e irmandades, os carvoeiros traziam a lenha para a fogueira, imitando o passo da Escritura, em que Isaac caminhava para a montanha do sacrifício. Seguiam-se em filas extensas os frades dominicanos, arvorada na frente a cruz branca, e o bolsão inquisitorial de damasco vermelho do duque de Medina Celli. Os penitenciados vinham vestidos de um modo irrisório e grotesco, descalços, cobertos de um sambenito, com um chapéu afunilado, com figuras cabalísticas, diabos, labaredas e caveiras pintadas.

 A multidão pávida e crédula, sentia aquela grande contradição do coração humano, apupava os miseráveis que interiormente a comoviam e lhe arrancavam lágrimas de compaixão. Chegados próximo do estrado real, o Inquisidor geral veio receber o juramento da extirpação das heresias.

 Os brandões crepitavam nas mãos dos condenados; tornavam mais lúgubre o momento. Depois viu-se levantar uma figura macilenta, a cabeça encoberta no capuz, cruzadas as mãos sobre o peito em que tinha repousado um crucifixo, o mesmo que um dia apresentara diante dos reis católicos Fernando e Izabel, dizendo-lhes que  o vendessem por trinta dinheiros, já que se queriam tornar menos rigorosos contra os judeus. Era o pregador frei Pedro. A voz taurina fazia estremecer as turbas, representando-lhes ao vivo, nos esgares e visagens que fazia, os terrores das penas do inferno. A multidão estava suspensa perante as vociferações sangrentas do dominicano.

 — Sabes... (disse um desconhecido para um cavaleiro ainda novo, que estava atento) não o conheces?

 O outro respondeu-lhe em voz baixa, de um modo quase imperceptível:

 — Ah, és tu, Diego Ortis? Bem o conheço pela fama do seu nome. É Pedro de Arbués.

 — E não te sentes possuído de raiva ao pronunciar esse nome de um hipócrita e assassino?

 — Assassino?

 — Sim! Bem o deveras saber, porque é a ti a quem compete a vingança. Ele pretendeu por todos os meios desposar Hernanda, tua irmã. Lembras-te? Era rico, e o teu pai desejava com todas as veras da alma este enlace. A infeliz menina resistiu sempre, até que se viu obrigada a professar num mosteiro, abandonada da família. Não é verdade isto? Ferido no orgulho, ele meteu-se a padre, disfarçou-se debaixo da cúpula monástica e fez-se seu Diretor espiritual. Matou-a lentamente com jejuns e macerações, com a lembrança contínua da tentação e da condenação eterna. Pobre Hernanda! O mundo disse que morrera como uma santa; Deus sabe que desesperos profundos lhe abalaram a vida, e quantas vezes, no íntimo da alma opressa, não amaldiçoou a hora do seu nascimento!

 — E como sabes isso?

 — Como o sei? Eu digo-te só que a vingança não dorme. Também tenho um legado de sangue a cumprir. Era o meu irmão o apaixonado, o eleito de Hernanda. Se há nada mais santo do que um amor que nos acompanha desde a infância, Alonso Ortis, doestado pelo rival audacioso, bateu-se generosamente e caiu ferido, morto à traição. Já compreendes tudo.

 — Inferno! Para que me disseste essas coisas aqui, entre esta gente? Sinto a convulsão da raiva que prostra, a sede de sangue que me atira para ele. Hernanda! a desgraçada, a silenciosa, a tímida, que tudo sofreu e nunca soube queixar-se! Eu quero trocar todas as tuas dores por um prazer egoísta de vingança. Fala-me, Diego Ortis; o que queres de mim?

 — Quero prudência! Eu tenho esperado dia e noite, por toda a parte, e nunca o tenho encontrado! Nunca esta mão deixou de repousar sobre o punhal, e ainda me parece que não é chegado o momento.

 A este tempo o frade estava na peroração do discurso; a turba batia nas faces, consternada, por terra. Os dois vultos permaneciam de pé, insensíveis. O pregador desceu do púlpito e vinha acercando-se deles com um olhar ameaçador, para repreendê-los da insólita irreverência. O jovem fidalgo precipitou os planos de vingança, e arremeteu com um punhal no ar: apesar do ímpeto com que foi brandido resvalou sobre o hábito que encobria debaixo uma armadura cerrada.

 Ergueu-se um sussurro repentino. Era impossível a salvação; com a ânsia  do desespero,  Diego Ortis descarregou-lhe prontamente sobre o crânio tonsurado a sua espada de cavaleiro. O povo alarmou-se e ia a precipitar-se sobre os facínoras; recuou de horror diante da impassibilidade dos dois. A estatura corpulenta do padre tomou as proporções de um Golias, derrubado, banhado de sangue negro, a massa encefálica derramando-se pelas suturas fraturadas do crânio. Fazia horror.

 Naquele mesmo dia os dois assassinos foram penitenciados; interrompeu-se a missa, e a procissão prosseguiu levando-os para o quemadero, onde, com os demais, foram devorados pelas chamas. Seguiram-se as pesquisas, as vexações e os sequestros; com os seus processos tenebrosos a Inquisição lançou a rede por sobre muitas famílias. A Espanha era, como se disse, uma grande fogueira. Mas como há uma antítese fatal na natureza humana, manifestada muitas vezes, a cada instante da vida, na transição instantânea do sublime ao ridículo, Roma parodiou também esta cena sanguinolenta do drama tétrico de Torquemada na farsa jocosa da canonização do frade pregador, que ainda hoje se venera nos altares e de quem reza a folhinha com o nome de S. Pedro de Arbués.

Ora pro nobis.

Teófilo Braga

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