«Amor»
BD/ JPGalhardas
588- «AMOR»
Nasceu aquela flor em Covelinhas, dum castanheiro velho, o
Lourenço Abel, e duma urze mirrada, a Joana Benta. Nasceu e cresceu tão linda,
tão airosa, que o povo em peso punha os olhos nela. Só tinha um defeito...
- Verduras da mocidade! - pretextava a Cláudia, quando o
homem, ao lume, censurava os namoros da rapariga.
- Ultrapassa as marcas! Dá trela a quantos há na
freguesia...
- Ainda hão-de ser mais as vozes do que as nozes.
- É, ê! No dia das inspecções lá se viu... A Cláudia
calou-se. Na comprida crónica da montanha não havia página mais negra do que
essa a que o homem fazia alusão. Acabadinhos de sair das garras da junta, onde
nus em pêlo pareciam cordeiros tosquiados, três de Paços, dois de Fermentões,
um de Vilela e outro de S. Martinho armaram tamanha guerra na Sainça, que só
faltou tocar os sinos a rebate. O de Vilela, aqui-del-rei que a rapariga era
dele; o de S. Martinho que o varava logo ali se continuasse com as gabarolices;
o mais possante dos de Paços que não consentia trigo do seu forno na boca de
cães... Um inferno. Segue-se que daí a nada ia tal polvorosa pelos montes, que
Deus nos acudisse. Não morreu ninguém, felizmente, mas chegou para afligir.
A Lídia é que não queria saber de desgraças. Muito bem
feita, muito corada, com aqueles dois olhos de veludo que ameigavam tojos,
depois de cada sarrafusca a que dava azo, passava pela rua acima em direcção às
hortas como se nada fosse. E o povo inteiro rendia-se-lhe aos pés, num sorriso
de perdão, de complacência e de carinho.
- Tu a quantos atendes? - perguntava-lhe em confidência a
Mariana, já com cinquenta e dois e ainda de olhinho a reluzir.
- A nenhum. Ninguém me quer, tia Mariana! E dava uma
gargalhada das dela, muito clara, muito pura, pondo à mostra uns dentes que cegavam
a gente.
- Raios te partam, rapariga! Trazes um regimento à corda, e
a dizer que ninguém te quer!
- À consciência!...
E toda ela se dava e se recusava num requebro enigmático,
com os seios a enfunarem-lhe a blusa de chita.
- Olha., fazes tu muito bem! Enquanto dura, é doçura...
E a doçura era naquele inverno gelado, noites a fio, o Pedro
Verdeal comido de ciúmes a guardar o Lúcio, e o Lúcio, comido de ciúmes, a
guardar o Verdeal.
- Que cegueira! Perdidinhos de todo! Um sincelo de meter
medo e nenhum arreda pé! Ao menos tem pena deles, cachopa. Manda pôr uma
braseira debaixo do negrilho e outra no cruzeiro...
- Eles não têm frio. Quanto mais, deixe falar, tia Cláudia!
Se andam de noite, lá andam à sua vida. Cá comigo não há nada. Querem coisa mais
alta.
E continuava a receber cartas do Lúcio, do Verdeal, do
Vitorino, e até recados do Teodoro, um homem já viúvo! A Violante do correio
entregava-lhe essas letras de amor às escondidas de toda gente, mas ia dizendo:
- Eu não sei como tu podes com tal cainçada atrás de ti!...
A Lídia, porém, era aquele coração aberto a quantos lhe
batiam à porta. Como uma terra de semeadura em pousio, dizia a todas as
sementes que deixassem apenas chegar a primavera... Não havia maldade nem
cálculo nas promessas que fazia. Diante de cada solicitação masculina,
sentia-se como que chamada a dar contas da sua íntima natureza de mulher. E
todos podiam pedir-lhas com igual autoridade, justamente porque não amara ainda
nenhum a valer. Limpo, o seu corpo estava destinado a pertencer a um daqueles
pobres obcecados, que andavam à sua volta como lobos à volta de uma ovelha. A
um deles teria de se entregar, mais dia, menos dia. Mas a qual?
- Tu é que sabes. Se fosse comigo, escolhia o mais jeitoso e
mandava os outros à tábua. Sarilhos desses é que não! - repetia a Violante,
apavorada com tanta carta e tanto enredo. - Vê lá!
- Deixe correr, que ainda bota, ti Violante. Uma carta custa
apenas o selo e o papel.
- Parece-te! Pode custar muita lágrima. Não estiques a corda
demais...
Boas palavras, realmente. Pena é que não tivessem eco nos
ouvidos da Lídia. Por mais que quisesse, não conseguia decidir-se por nenhum.
Os homens eram como os ramos de rebuçados na mesa da doceira: pareciam-lhe
todos iguais.
- Não são, não. Repara bem, que verás... - respondia-lhe a
Cláudia, cheia de paciência.
Reparava e via o mesmo desejo a arder nos Olhos de cada um.
As palavras, os gestos, os amuos significavam em todos a mesma coisa. P’ra a
virgindade que lhe pediam, quer o dissessem, quer não. E continuava,
conciliante, a prometer-lha e a negar-lha.
- Qualquer dia estoira para aí tamanho sarrabulho, que vai
ser uma vergonha... - ia insistindo o Leopoldino, agoirento.
- Olha não estoires tu do miolo! - repontava a mulher, a
fazer de valente.
- Deu com o pai já comido da terra, e com a lambaças da mãe,
que é uma pobre de Cristo. Posse minha filha e eu te diria. Era com uma soga
por aquele lombo...
- A mãe que há-de fazer? Proibi-la de se divertir ?!
A Cláudia estava farta de saber que o homem tinha carradas
de razão. Quantas e quantas vezes falara já com a Joana Benta sobre a filha.
Valia de bem! A coitada ouvia, concordava, gemia, apagava-se rasteira na
escuridão da cozinha. noite é que lá se atrevia a dizer uma palavra à rapariga.
- Tu não terás juízo, mulher! Coisa assim!
- Não se aflija, que não me dá o lampo. Palavras leva-as o
vento...
Mas com palavras tinha ela posto a cabeça do Verdeal e do
Lúcio a andar à roda. A mangar, a mangar, jurava a cada um que não queria mais
ninguém e que os outros lhe rondavam a casa por palermice. Que não era culpada
de quantos homens havia no concelho lhe andarem a cheirar o rasto...
Na véspera do S. Miguel, a Olívia, que era sua amiga do
coração, ao vir da missa pôs-lhe os pontos nos ii.
- Tu tem lá mão na manta, que isto não acaba bem. Dá o
sim-ou-sopas a um e emponta o resto. Muitos burros à nora não é negócio;
escoicinham-se uns aos outros... O Verdeal anda sobre o Lúcio como um cão. Se o
agarra a jeito, esfandega-o.
- Mas porquê -Ainda perguntas?
- Oh! E aconteceu o que tinha de acontecer. Nessa mesma
noite, depois da ceia, o Verdeal, ao voltar a esquina da eira, viu um vulto à
porta do quinteiro da moça. Disfarçou-se na sombra e chegou-se perto. Era o
Lúcio a falar com ela. Avançou até junto deles. No calor da conversa, nem o
viram.
- Então, muito boas noites... - cumprimentou., já de mão na
pistola.
- Boas noites - responderam ambos, ela com a mesma cara, e o
Lúcio cego de raiva.
- Pode-se saber quando é a boda?
- Pode...
Mediram-se os dois de cima abaixo.
- É capaz de ser, no dia de juízo...
- Conforme...
- É que a bocada às vezes parece que está quase na boca e
não está...
Alheia, numa volúpia de irresponsabilidade, a Lídia assistia
àquela disputa de que era a causa, divertida como uma criança. Quase que nem
ouviu o simultâneo deflagrar das armas.
- Canalha! Seguiram-se mais dois estalidos secos.
- Cabrão! Os insultos como que eram apenas um comentário
desdenhoso à margem dos tiros rápidos e sucessivos.
- Excomungada! A inesperada maldição entrou na alma da Lídia
como um punhal de quem vinha? Da boca do Lúcio, ou da boca do Verdeal?
Mas não pôde sabê-lo. Ambos jaziam quase a seus pés, cada um
no último arranco. E quando a mãe, espavorida, em saiote, abriu a porta, veio
encontrá-la ainda alheada junto dos dois mortos, a tentar compreender a
violência daquela queixa.
Miguel Torga
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