«O Pedestre»
Conto de Ray Bradbury
597- «O PEDESTRE»
Penetrar naquela quietude que era a cidade às oito horas de
uma nebulosa noite de Novembro, pousar os pés naquela sólida calçada de
concreto, pisar nas fendas de mato, e andar, de mãos nos bolsos, pelos
silêncios, era o que o Sr. Leonard Mead mais gostava de fazer. Ficaria numa
esquina de um cruzamento, olhando as calçadas enluaradas nas quatro direcções,
decidindo por onde ir, mas realmente, não faria diferença; estava sozinho,
neste mundo de 2053 a.D., ou, como se estivesse só, e com uma decisão final tomada,
um caminho escolhido, sairia andando, soltando rastros de ar congelado à sua
frente, como a fumaça de um cigarro.
Às vezes, andava durante horas, milhas, e voltava para casa
só à meia-noite. E, no caminho, via casas, grandes e pequenas, com suas janelas
escuras, e não era diferente de caminhar por um cemitério onde só o mais fraco
luzir de um vagalume como que tremeluzia por detrás das janelas. Súbitos
espectros acinzentados pareciam manifestar-se sobre as paredes das salas, onde
uma cortina ainda estava aberta para a noite, ou cicios e murmúrios onde uma
janela num edifício-tumba ainda estava aberta.
O Sr. Leonard Mead parava, inclinava a cabeça, ouvia,
olhava, e continuava a marcha, pés sem fazer ruído na calçada irregular. Há
muito, prudentemente, passara a usar sapatos de ténis para passear à noite,
porque os cães, em alguns quarteirões, seguiriam sua caminhada com seus
latidos, se usasse calçado com sola de couro, e luzes poderiam acender-se, e
rostos aparecer, e toda uma rua sobressaltar-se com a passagem de um vulto
solitário; ele mesmo, no começo de uma noite de Novembro.
Nesta noite, em particular, começou sua jornada para o oeste
rumo ao mar, invisível. Havia um bom frio cristalino, no ar; cortava o nariz e
fazia os pulmões arderem por dentro, como uma árvore de Natal; podia-se sentir
as luzes acendendo e apagando, os ramos cheios de uma neve invisível. Escutava
seu calçado macio empurrar delicadamente as folhas de outono, satisfeito, e
assobiava frio e baixinho, entredentes, ocasionalmente arrancando uma folha, de
passagem, examinando o desenho esqueletal, às poucas lâmpadas, enquanto ia
adiante, cheirando seu odor enferrujado.
– Ó de casa – ele murmurava para cada casa,
por todo lado, enquanto passava. – O que está passando hoje no Canal
4; Canal 7; Canal 9? Por onde estão correndo os "cow-boys", e onde
está a Cavalaria dos Estados Unidos, para sair daquela colina, e salvar a
situação?
A rua estava silente, longa, vazia, apenas com a sua sombra
movendo-se, como a sombra de um falcão, em meio a um campo. Fechou os olhos, e
ficou bem quieto, congelado, e podia imaginar-se no meio de uma planície, um
deserto Americano, sem ventos, inverno, sem casa nenhuma num raio de mil
milhas, e só leitos de rios, as ruas, para companhia.
– E agora, o que temos? – perguntou para as
casas, olhando para seu relógio de pulso. –Oito e meia? Hora de uma dúzia
de assassinatos diversos? Uma charada? Um musical? Um comediante levando um
tombo?
Aquilo foi um ruído de dentro de uma casa à luz da lua?
Hesitou, mas continuou, quando nada mais se notou. Tropeçou numa irregularidade
maior da calçada. O cimento estava desaparecendo, sob as flores e o mato. Em
dez anos de caminhada, noite e dia, por milhares de milhas, nunca encontrara
outra pessoa andando, nunca, nem uma só vez.
Chegou a um trevo, deserto, onde duas estradas principais
cruzavam a cidade. Durante o dia, era uma trovejante corrente de carros, os
postos de gasolina abertos, um grande farfalhar de insectos, e um incessante
mudar de posição, enquanto os carros-escaravelho, uma névoa de incenso saindo
de seus escapamentos, deslizavam para casa, nas mais diversas direcções. Mas
agora, estas estradas, eram como rios temporários no verão, só pedra, leito, e
luar.
Virou por uma rua secundária, fazendo a volta para casa.
Estava a um quarteirão de seu destino, quando aquele carro solitário virou uma
esquina, repentinamente, e acendeu um forte cone de luz branca sobre ele. Ficou
em transe, não muito diferente de uma mariposa, atordoada pela iluminação, e
então, atraído para ela.
Uma voz metálica dirigiu-se a ele:
– Fique parado. Fique onde está! Não se mova!
Ele parou.
– Erga as mãos!
– Mas... – ele falou.
– Mãos para cima! Ou atiramos!
A polícia, claro, mais que coisa rara, incrível; numa cidade
de três milhões, restava só um carro de polícia, não era isso? Já
havia um ano, desde 2052, o ano das eleições, que a força policial havia sido
cortada de três para um carro. O crime estava desaparecendo; não havia
necessidade de polícia, excepto este carro solitário vagando e vagando pelas
ruas desertas.
– Seu nome? – disse o carro, num chiado
metálico. Ele não podia ver os guardas lá dentro, por causa da luz muito forte
em seus olhos.
– Leonard Mead – respondeu.
– Mais alto!
– Leonard Mead!
– Negócio, ou profissão?
– Acho que me pode chamar de escritor.
– Sem profissão – disse o carro de polícia,
como se falando sozinho. A luz mantinha-o transfixado como um espécime de
museu, agulha espetada no meio do peito.
– Pode-se dizer que sim – afirmou o Sr. Mead.
Havia anos que não escrevia. Não se vendiam mais livros e revistas. Tudo
continuava como sempre nas casas-tumbas, à noite, ele pensou. Os túmulos,
mal-iluminados pela luz da televisão, onde as pessoas sentavam-se como os
mortos, as luzes cinzentas ou multicoloridas tocando suas faces, mas nunca de
fato tocando a eles.
– Sem profissão – disse a voz de vitrola,
chiando. – Que está fazendo aqui fora?
– Andando – disse Leonard Mead.
– Andando!
– Só andando – ele disse, simplesmente, mas
seu rosto gelou.
– Andando, só andando, andando?
– Sim, senhor.
– Andando para onde? Para quê?
– Para tomar ar. Andando para ver.
– Seu endereço.
– Onze, Sul, rua Saint James.
– E há ar na sua casa; o senhor não tem
um condicionador de ar, Sr. Mead?
– Sim.
– E tem uma tela para ver, na sua casa?
– Não.
– Não? – Houve uma interrupção cheia de
estalidos, que em si era uma acusação.
– É casado, Sr. Mead?
– Não.
– Não casado – disse a voz policial atrás do
facho, que queimava. A luz estava alta e clara, por entre as estrelas, e as
casas eram cinzentas e caladas.
– Ninguém me queria – disse Leonard Mead,
sorrindo.
– Não fale, a menos que seja interpelado!
Leonard Mead esperou, sob a fria noite.
– Apenas andando, Sr. Mead?
– Sim.
– Mas ainda não explicou com que propósito.
– Já expliquei; para tomar ar, e ver, e simplesmente,
só para andar um pouco.
– Já fez isso muitas vezes?
– Toda noite, há anos.
O carro de polícia estava estacionado no meio da rua, com
sua garganta de rádio zumbindo fracamente.
– Bem, Sr. Mead – disse.
– Isso é tudo? – ele perguntou, polidamente.
– Sim – respondeu a voz. – Por
aqui. – Houve um sopro, e um estalido. A porta traseira do carro da
polícia escancarou-se. – Entre.
– Espere, não fiz nada!
– Entre.
– Eu protesto.
– Sr. Mead.
Ele caminhou como um homem subitamente bêbado. Ao passar
pela janela dianteira do carro, olhou para dentro. Como esperava, não havia
ninguém no assento dianteiro, não havia ninguém no carro.
– Entre.
Pôs a mão na porta e olhou para o banco traseiro, que era
uma pequena cela, uma jaulinha escura, com barras. Cheirava a aço rebitado.
Cheirava a anti-séptico forte; cheirava a coisa muito limpa, e dura, e
metálica. Não havia nada macio, ali.
– Se você tivesse uma esposa, para dar-lhe um álibi – disse
a voz de aço. – Mas...
– Para onde está me levando?
O carro hesitou, ou melhor, deu um estalido e um zunido,
como se a informação, em algum lugar, estivesse sendo dada por cartões
perfurados, e olhos eléctricos. – Ao Centro Psiquiátrico para
Pesquisa de Tendências Regressivas.
Ele entrou. A porta fechou com um som abafado. O carro da
polícia rodou pelas avenidas, em meio da noite, com as lanternas acesas.
Passaram por uma casa, numa rua, um momento depois, uma
casa, em toda uma cidade de casas escuras, mas esta casa, em particular, tinha
todas as suas luzes bem acesas, cada janela uma berrante iluminação amarela,
quadrada e quente na fria escuridão.
– Aquela é minha casa – disse Leonard Mead.
Ninguém respondeu.
O carro foi pelas ruas vazias de leitos de rios,
afastando-se, deixando as ruas vazias, com suas calçadas vazias, sem som nem
movimento, por todo o resto da fria noite de Novembro.
Ray Bradbury
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