«O Ousado Rapaz do Trapézio Suspenso»
Conto de William Saroyan
604- «O OUSADO RAPAZ DO TRAPÉZIO SUSPENSO»
1. Sono
Horizontalmente desperto entre as dimensões do universo,
praticando sorrisos e alegria, sátira, o fim de tudo, de Roma e também de
Babilónia, dentes trincados, um enorme calor vulcânico, as ruas de Paris, as
planícies de Jericó, muito deslizar como de réptil distraído, uma exposição de
aguarelas, o mar e o peixe com olhos, sinfonia, uma mesa num canto da Torre
Eiffel, jazz no Teatro da Ópera, um despertador e o sapateado da condenação,
conversas com uma árvore, o rio Nilo, de Cadillac cupê até Kansas, o roncar de
Dostoievsky, um sol sombrio.
Este mundo, a face de alguém que existiu, a forma sem o
peso, pranto sobre a neve, a branca música, uma flor ampliada ao duplo do
tamanho do universo, nuvens negras, o olhar fixo da pantera enjaulada, espaços
sem morte, Mr. Elliot de mangas arregaçadas torrando pão, Flauber e Guy de
Maupassant, uma rima silenciosa de sentido primitivo, Finlândia, matemática
altamente polida e untuosa como uma cebola verde para o dente, Jerusalém, o
caminho do paradoxo.
O canto profundo de um homem, os cochilos dissimulados de
alguém invisível mas vagamente conhecido, furacão no trigal, uma partida de
xadrez, faça calar a rainha, o rei, Karl Franz, o negro Titanic, Mr. Chaplin
chorando, Stalin, Hitler, a multidão de judeus, amanhã é segunda, nenhuma dança
nas ruas.
Ó fugaz minuto de vida: acabou, o mundo está de novo
presente.
2. Vigília
Ele (o sobrevivente) vestiu-se e fez a barba, olhando-se com
desgosto no espelho. “Bem antipático”, pensou. Onde está minha gravata? (Ele só
possuía uma.) Café e céu cinzento, o fogo do Oceano Pacífico, o estrépito de um
bonde de um bonde passando, gente indo à cidade, novamente a hora, o dia, prosa
e poesia. Desceu rapidamente as escadas para a rua, e saiu a caminhar,
começando inesperadamente a pensar: “é somente no sono que podemos saber se
existimos. Somente lá, naquela morte viva, poderemos encontrar a nós mesmos e à
terra distante, a Deus e aos Santos, os nomes de nossos pais, a substância de
perdidos momentos; é lá que os séculos se revelam no instante, que o
inconcebível se transforma no limitado, átomo tangível da eternidade.”
Saiu a caminhar na manhã, tão desperto quanto podia, dando
batidas secas com os calcanhares, recebendo com os olhos a verdade superficial
das ruas e das estruturas, a verdade banal da realidade. Sem que o procurasse,
viu-se a cantarolar: “Com a maior facilidade voa no imenso espaço, o ousado
rapaz do trapézio suspenso”,* e depois riu com toda a capacidade do ser.
Estava, na verdade, uma esplêndida manhã; nublada, fria e triste, uma manhã
para a vida interior; ah, Edgar Guest, que fome de tua música.
Descobriu na sarjeta uma moeda, um pêni datado de 1923, e
colocando-a na palma da mão examinou-a minuciosamente, procurando lembrar-se
daquele ano e pensando em Lincoln cujo perfil nela estava gravado. “Hei de
comprar um automóvel”, pensou. “Hei de me vestir como um grã-fino, visitar as
pensões de mulheres, beber e jantar, e voltar depois a uma vida sossegada. Ou
então, colocarei a moeda na fenda de uma balança e me pesarei.”
Era bom ser pobre, e os comunistas... ― Mas era horrível ter
fome. Que apetite o deles, como eram loucos por comida! Estômagos vazios.
Lembrou-se de quanto ele necessitava de comida. Seu único alimento era pão,
café e cigarros, e agora não tinha mais pão. Café sem pão não constituía ceia
razoável, e no parque não havia ervas que servissem para se cozinhar como
espinafre.
A dizer a verdade, embora já tivesse meio morto de fome,
compreendia haver ainda um número infindável de livros que precisava ler antes
de morrer. Lembrou-se do jovem italiano do Hospital do Brooklyn, um
insignificante e doente funcionário chamado Mollica, a dizer, desesperadamente:
“como gostaria de ver a Califórnia, ainda uma vez, antes de morrer”, e pensou
com gravidade, “preciso ao menos ler Hamlet de novo; ou talvez Huckleberry
Finn”.
Foi então que tornou-se inteiramente lúcido à ideia de
morte. A lucidez, agora, se assemelhava a um estado de choque prolongado. “A um
rapaz era muito mais fácil morrer discretamente”, pensou, e ele já estava meio
morto de fome. A água e a prosa eram boas, preenchiam muito espaço inorgânico,
mas eram insuficientes. Se ao menos houvesse algum trabalho que pudesse fazer
por dinheiro, algum trabalho vulgar, do tipo chamado comércio. Se ao menos lhe
fosse permitido sentar-se a uma cadeira, e ali, todo o dia, somar cifras,
subtrair, multiplicar, dividir, talvez então não viesse a morrer de fome.
Poderia comprar comida, todas as espécies de comida: iguarias nunca provadas da
Noruega, Itália, França; carne de vaca preparada de todas as maneiras,
carneiro, peixe, queijo; uvas, figos, pêras, maçãs, melões, coisas que ele
adoraria depois de satisfeita sua fome. Numa travessa, colocaria um cacho de
uvas vermelhas entre dois figos negros, uma grande pêra amarela e uma maçã
verde. Durante horas, levaria ao nariz uma fatia de melão. Compraria grandes formas
de pão francês, legumes de todas as qualidades, comida; haveria de comprar
vida.
De uma elevação divisou a cidade que se erguia a leste,
majestosamente, com suas grandes torres, compacta à sua maneira, e de repente
sentiu-se fora de tudo aquilo, quase, definitivamente convencido, persuadido
mesmo de que jamais conseguiria ser admitido naquele mundo injusto, ou melhor,
naqueles tempos injustos, muito embora tentasse o que quisesse... e agora, um
rapaz de 22 anos estava sendo permanentemente rejeitado desse mundo. Este
pensamento não era de entristecer. Disse consigo mesmo: “muito em breve terei
de preencher um pedido de Licença para Viver”. Aceitou a ideia de morrer sem
piedade de si mesmo ou dos homens, imaginando que ao menos dormiria ainda uma
noite. O aluguer de um outro dia estava pago: contudo, haveria sempre outro
amanhã. E além disso, podia ir onde vão os homens sem lar.
Podia mesmo visitar o Exército da Salvação ― entoar hinos a
Deus e a Jesus (desafecto de minha alma), ser salvo, comer e dormir. Mas ele bem
sabia que não iria lá. Sua vida era uma vida privada. Não desejava perder essa
qualidade. Qualquer outra solução seria melhor.
“Pelo ar, no trapézio suspenso”, murmurou seu subconsciente.
Era divertido, terrivelmente engraçado. Um trapézio até Deus ou até nada, um
trapézio suspenso em alguma eternidade; rezou objectivamente pedindo coragem
para empreender graciosamente aquele voo.
― Tenho um cêntimo ― disse. ― Uma moeda americana. Mais
tarde eu a polirei até que venha a brilhar como um sol e decifrarei suas
palavras.
Caminhava agora na própria cidade, entre gente viva. Havia
um ou dois lugares aonde ir. Entreviu sua imagem no vidro das vitrinas das
lojas e ficou desapontado com sua aparência. Não parecia absolutamente tão
disposto como se sentia; parecia, na verdade, um débil enfermo, alguém que
sofresse de cada parte do corpo, do pescoço, ombros, braços, tórax e joelhos.
Isso nunca, disse, e com esforço recompôs as peças desconjuntadas, tornando-se
tensa e artificialmente erecto e sólido.
Com magnífica disciplina, recusando-se mesmo a relanceá-los,
passou por numerosos restaurantes, e chegando, por fim, a determinado edifício,
nele entrou. Um elevador levou-o ao sétimo andar, onde ele, cruzando um
vestíbulo e abrindo uma porta, penetrou no escritório de uma agência de
empregos. Já uns vinte rapazes se achavam na sala; descobriu um canto onde, de
pé, aguardou sua vez de ser entrevistado. Por fim, este grande privilégio lhe
foi concedido e foi interrogado por uma magra e estouvada senhorita de uns cinquenta
anos.
― Agora me diga ― falou ela ―, o que sabe fazer?
Sentiu-se embaraçado.
― Sei escrever ― disse enfaticamente.
― Quer dizer... sua letra é boa? É isso? ― disse a idosa
senhorita.
― Bem... é ― replicou ele. ― Mas o que quero dizer é que sei
escrever.
― Escrever o quê? ― disse a moça, quase com raiva.
― Prosa ― respondeu ele simplesmente.
Houve uma pausa. Por fim a moça disse:
― Sabe escrever à máquina?
― Naturalmente ― disse o rapaz.
― Está bem ― continuou a moça, ficando com seu
endereço ―; estaremos em contacto com o senhor. Esta manhã não há nada,
absolutamente nada.
A mesma coisa aconteceu em outra agência; apenas ele foi
interrogado por um rapaz pretensioso, extremamente parecido com um porco. Das
agências ele foi à administração das grandes lojas; havia um grande luxo,
alguma humilhação de sua parte e finalmente a informação de que não podia ser
aproveitado. Não se sentiu aborrecido, e por mais estranho que pareça nem mesmo
sentiu que estava pessoalmente envolvido com toda aquela maluquice. Ele era um
ser vivo, que tinha necessidade de dinheiro com que continuar a sê-lo, e nenhum
meio havia de consegui-lo senão trabalhando para isso; mas não havia trabalho.
Tratava-se simplesmente de um problema abstracto que pela última vez tentara
resolver. Mas agora se alegrava de ver o assunto liquidado.
Começou a perceber toda a precisão do curso de sua vida.
excepto por momentos, ela nunca tivera uma direcção definida, mas agora, no
último minuto, ele determinara que ela devia ser tão pouco imprecisa quanto
possível.
Em seu caminho para a A.C.M., passou por cafés e
restaurantes sem conta, e lá arranjando papel e tinta começou a preencher sua
inscrição. Durante uma hora preparou esse documento, e depois, devido ao ar
abafado e à fome, sentiu subitamente que ia desmaiar. Sentia-se como se nadasse
para fora de si mesmo, em grandes braçadas, e precipitadamente abandonou o
edifício. No parque Central, enquanto se encaminhava para o edifício da Biblioteca
Pública, bebeu quase um litro de água e sentiu-se reconfortado. No centro do
passeio de tijolos, um ancião cercado de gaivotas, pombos e pintarroxos tirava
um punhado de migalhas de pão de um grande saco de papel atirando-as aos
pássaros num elegante movimento.
Secretamente sentiu-se impelido a pedir ao velho uma porção
das migalhas de pão mas não deixou mesmo que tal pensamento se tornasse
consciente. Entrou na Biblioteca Pública e, durante uma hora, leu Proust. Mas
sentindo-se novamente como se nadasse para fora de si, apressou-se em sair. Na
fonte do parque bebeu mais água e começou o longo caminho para seu quarto.
“Dormirei um pouco mais”, pensou. “Não há outra coisa a
fazer.” Compreendia agora estar muito cansado e fraco para procurar enganar-se
a respeito de seu estado. Todavia sua razão parecia ainda, de algum modo,
flexível e alerta. Ela persistia, como se fosse uma entidade diversa dele, em
inventar impertinentes brincadeiras a propósito de seu sofrimento real. Às
primeiras horas da tarde chegou a seu quarto e imediatamente preparou café no
pequeno fogareiro a gás. Não havia leite na lata e a meia libra de açúcar
comprada uma semana antes se havia acabado; tomou uma xícara de líquido quente
e negro, sentando-se no leito e sorrindo.
Da Associação Cristã de Moços ele furtara umas 12 folhas de
papel de carta com as quais pensava terminar sua inscrição, mas a simples ideia
de escrever lhe era agora desagradável. Nada tinha a dizer. Começou a polir o
pêni achado naquela manhã, e esse ato absurdo como que lhe deu um grande
prazer. Nenhuma moeda americana se podia fazer brilhar tanto como um pêni.
Quantos daqueles precisaria para continuar vivendo? Não haveria mais nada que
pudesse vender? Olhou em volta o quarto desguarnecido. Nada. Seu relógio se
fora; seus livros também. Todos aqueles belos livros; por nove deles recebera
oitenta e cinco cêntimos. Sentiu-se incomodado e envergonhado de se haver
separado de seus livros. Seu melhor terno fora vendido por dois dólares, mas
isso compreendia. Ele não ligava absolutamente para isso de roupas. Mas os
livros... Aí o caso era diferente. Deixava-o exasperado pensar que não havia
respeito pelas pessoas que escrevem.
Colocou a reluzente moeda sobre a mesa, contemplando-a com o
prazer de um avarento. Quão lindamente ela sorri ― disse. Sem que as lesse
passou os olhos sobre as palavras E Pluribus Unun Um Cêntimo Estados Unidos da América, e virando-a contemplou Lincoln e as palavras In God We
Trust Liberty 1923. “Como é lindo”, pensou.
Começou a ficar sonolento e sentiu um angustiante mal-estar
invadir seu sangue, uma impressão de náusea e desintegração. Perturbado, pôs-se
de pé ao lado da cama, imaginando que nada lhe restava fazer senão dormir.
Já se sentia dando aquelas grandes braçadas através de uma zona fluída do
universo, nadando em direcção às origens. Caiu de bruços sobre a cama, dizendo:
preciso ao menos dar a moeda a alguma criança. Qualquer criança pode comprar um
número sem fim de coisas com um pêni.
Então, rapidamente, elegantemente, com a graça do rapaz do
trapézio suspenso, afastou-se de seu próprio corpo. Durante um minuto que lhe
pareceu sem fim, ele foi todas as coisas ao mesmo tempo: pássaro, peixe, roedor,
réptil, homem. Um mar de gravura ondulava diante dele, escuro e sem fim. A
cidade ardia. Multidões aglomeradas revoltavam-se. O mundo se afastava girando,
e vendo que se afastava também, voltou sua face perdida para o céu vazio e
tornou-se sem sonhos, sem vida, perfeito.
William Saroyan
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