terça-feira, 29 de setembro de 2015

OUTROS CONTOS

«No Alto», conto poético por Machado de Assis.

«No Alto»
Conto Poético de Machado de Assis

629- «NO ALTO»

O poeta chegara ao alto da montanha,
E quando ia a descer a vertente do oeste,
Viu uma cousa estranha,
Uma figura má.

Então, volvendo o olhar ao subtil, ao celeste,
Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha,
Num tom medroso e agreste
Pergunta o que será.

Como se perde no ar um som festivo e doce,
Ou bem como se fosse
Um pensamento vão,

Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta.
Para descer a encosta 
O outro lhe deu a mão.

Machado de Assis

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

STING 
«Saint Agnes And The Burning Train»

Poet'anarquista

Sting
Músico Britânico, Mentor dos Police

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

OUTROS CONTOS

«Cão na Horta», por Matias José.

Apareceu na Horta da Vinha um cão. Passou por baixo da vedação eléctrica e dirigiu-se ao combustor que está na extrema da horta. Quando começou a anoitecer, enxotei-o para que seguisse o caminho de volta ao dono. 

No dia seguinte, quando minha companheira chegou à horta, lá estava ele deitado na valeta junto ao portão. Vai para uma semana que isto aconteceu. O animal tinha fome, e o seu corpo estava cravado de parasitas (carraça chumbo). 

Tem comido bem, e já lhe dei banho especial para se ver livre dos malditos vampiros. É muito brincalhão (adora abocanhar bosta de vaca seca), e segue-nos para todo o lado na horta (não descola). Ainda é novo, a sua pelagem é negra e tem uma malha esbranquiçada no peito. 

Se alguém perdeu um animal com estas características é favor dirigir-se à Horta da Vinha, ou contactar através do número 916892739. 

Cão na Horta
Aqui está ele, o Rantanplan

628- «CÃO NA HORTA»

Novo amigo lá na horta
Tal qual o Rantanplan...
Chegou cedo pela manhã,
Entrou sem bater à porta.
Que bem se comporta
Ficando à nossa espera,
Parece amizade sincera
Foi ele quem nos escolheu...
Não é meu nem é teu,
Eis a regra que impera!

Matias José
  

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

GEORGE HARRISON - «Something»

Poet'anarquista

George Harrison
Guitarrista Britânico, membro dos Beatles

domingo, 27 de setembro de 2015

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

MEAT LOAF
«Paradise By The Dashboard Light»

Poet'anarquista

PARAÍSO PELA LUZ DO PAINEL

Lembro-me de cada pequena coisa
Como se tivesse acontecido ontem
Estacionamento junto ao lago
E não havia outro carro à vista
E eu nunca tive uma menina
Procurando nada melhor do que você fez
E todas as crianças na escola
Eles estavam desejando que eles me estavam naquela noite
E agora nossos corpos são oh tão perto e apertado
Nunca me senti tão bem, nunca me senti tão bem
E nós estamos brilhando como o metal na ponta de uma faca
Brilhando como o metal na ponta de uma faca
Vamos lá! Segure-se firme!
Vamos lá! Segure-se firme!
Apesar de ser frio e solitário no fundo noite escura
Eu posso ver o paraíso pela luz do painel

Não há dúvida sobre isso
Fomos duplamente abençoados
Porque estávamos mal aos dezassete anos
E nós estávamos mal vestidos
Não há dúvida sobre isso
Bebé tem que ir e gritar
Não há dúvida sobre isso
Fomos duplamente abençoados

Porque estávamos mal aos dezassete anos
E nós estávamos mal vestidos
Querida não vai ouvir meu coração
Você entendeu abafando o rádio
Eu tenho esperado tanto tempo
Para que você possa vir e se divertir um pouco
E eu tenho que deixar você saber
Sim você nunca vai se arrepender
Então abra seus olhos
Eu tenho uma grande surpresa
Ele vai se sentir bem
Bem, eu quero fazer o motor funcionar
E agora nossos corpos são oh tão perto e apertado
Nunca me senti tão bem, nunca me senti tão bem
E nós estamos brilhando como o metal na ponta de uma faca
brilhando como o metal na ponta de uma faca
Vamos lá! Segure-se firme !
Vamos lá! Segure-se firme !

Apesar de ser frio e solitário no fundo da noite escura
Eu posso ver o paraíso pela luz do painel
Paraíso pela luz do painel
Você tem que fazer o que puder
E deixar a Mãe Natureza fazer o resto
não há dúvida sobre isso
Fomos duplamente abençoados
Porque estávamos mal aos dezassete anos
E nós estávamos mal vestidos

Vamos percorrer todo o caminho esta noite
Vamos percorrer todo o caminho
E esta noite é a noite ...
Nós vamos percorrer todo o caminho esta noite
Vamos percorrer todo o caminho. E hoje à noite é a noite ...

Ok, aqui vamos nós, temos uma verdadeira panela de pressão aqui vai,
Dois para baixo, ninguém relativos, nenhuma pontuação, fundo do nono,
Não é a conclusão, e lá está ele, uma linha de tiro até o meio,
Olhe para ele ir. Esse garoto pode realmente voar!

Ele está no arredondamento primeiro e realmente
Ligá-lo agora, ele não está deixando-se em tudo, ele vai tentar
Segundo; a bola é colocada no centro, e aqui vem o jogador, e que lance!
 Ele tem o slide na cabeça pela primeira vez, aqui está ele
Vem, ele está fora! Não, espere, seguro, safe na segunda base, esse garoto
Realmente faz as coisas acontecerem lá fora. Bater etapas até a
Placa, aqui está o arremesso ele vai, e que salto ele tem,
Ele está tentando para terceiro, aqui está o lance, é na sujeira, safe em
Terceiro! Vaca sagrada, base roubada! Ele está tomando uma grande ligação para fora
Lá, quase desafiando-o para tentar pegá-lo fora. O arremessador
olha por cima, acaba, e é fundo, fundo para baixo o terceiro
Linha de base, o aperto de suicídio é relativo! Aí vem ele, aperto
No jogo, que vai ser perto, vaca santamente, eu acho que ele vai fazê-lo !

Pare aí !
Eu tenho que saber agora !
Antes de ir mais longe !
Você me ama ?
Você vai me amar para sempre ?
Você precisa de mim ?
Você nunca vai me deixar ?
Você vai me fazer tão feliz para o resto da minha vida ?
Você vai me levar embora e você vai me fazer sua esposa ?
Você me ama!?
Você vai me amar para sempre!?
Você precisa de mim!?
Você nunca vai me deixar!?
Você vai me fazer feliz para o resto da minha vida!?
Você vai me levar embora e você vai me fazer sua esposa!?
Eu tenho que saber agora
Antes de ir mais longe
Você me ama!?
Você vai me amar para sempre!?

Deixe-me dormir com ela
Querida, querida deixe-me dormir com ela
Deixe-me dormir com ela
E eu vou lhe dar uma resposta na parte da manhã
Deixe-me dormir com ela
Querida, querida deixe-me dormir com ela
Deixe-me dormir com ela
E eu vou lhe dar uma resposta na parte da manhã
Deixe-me dormir com ela
Querida, querida deixe-me dormir com ela
Deixe-me dormir com ela
E eu vou lhe dar uma resposta na parte da manhã

Eu tenho que saber agora
Você me ama ?
Você vai me amar para sempre ?
Você precisa de mim ?
Você nunca vai me deixar ?
Você vai me fazer tão feliz para o resto da minha vida ?
Você vai me levar embora e você vai me fazer sua esposa ?
Eu tenho que saber agora !
Antes de ir mais longe
Você me ama ?
E você vai me amar para sempre ?

Deixe-me dormir com ela
Querida, querida deixe-me dormir com ela
Deixe-me dormir com ela
E eu vou lhe dar uma resposta na parte da manhã
Deixe-me dormir com ela

Você vai me amar para sempre ?
Deixe-me dormir com ela
Você vai me amar para sempre !!!!

Eu não podia levá-la por mais tempo
Senhor eu estava enlouquecido
E quando o sentimento se apoderou de mim
Como uma onda de título
Eu comecei jurando ao meu Deus e sobre o túmulo de minha mãe
Que eu te amo até o fim dos tempos
Eu jurei que eu te amaria até o fim do tempo !
Então agora eu estou rezando para o fim dos tempos
Para apressar e chegar
Porque se eu tenho que gastar mais um minuto com você
Eu não acho que eu realmente possa sobreviver
Eu nunca vou quebrar minha promessa ou esquecer o meu voto
Mas só Deus sabe o que eu posso fazer agora
Eu estou rezando para o fim dos tempos
É tudo que eu posso fazer
Rezando para o final do tempo ,
Para que eu possa terminar o meu tempo com você!!

Foi há muito tempo e foi muito longe
E era muito melhor que é hoje

Meat Loaf
Banda Norte-Americana

OUTROS CONTOS

«O Cego», conto poético por Rainer Maria Rilke.

«O Cego»
A Refeição do Homem Cego/ Picasso

627- «O CEGO»

Ele caminha e interrompe a cidade,
que não existe em sua cela escura,
como uma escura rachadura
numa taça atravessa a claridade.

Sombras das coisas, como numa folha,
nele se riscam sem que ele as acolha:
só sensações de tato, como sondas,
captam o mundo em diminutas ondas:

serenidade; resistência -
como se à espera de escolher alguém, atento,
ele soergue, quase em reverência,
a mão, como num casamento.

Rainer Maria Rilke

sábado, 26 de setembro de 2015

CITAÇÃO

T. S. Eliot
Poeta e Dramaturgo Norte-Americano

Citação…

«A única sabedoria que uma pessoa pode esperar adquirir é a da humildade.»

T. S. Eliot

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(26 de Setembro de 1937, morre a cantora de blues norte-americana Bessie Smith)

BESSIE SMITH
«Nobody Knows When Your Down And Out»

Poet'anarquista

NINGUÉM TE CONHECE QUANDO VOCÊ ESTÁ NA PIOR

Uma vez vivi a vida de um milionário,
Gastando meu dinheiro, eu não ligava
Eu levava meus amigos para nos divertirmos
Comprando licor contrabandeado, champanhe e vinho
Então comecei a cair tanto
Eu não tinha amigos e nenhum lugar para ir
Então se eu um dia pegar um dólar
Eu vou segura-lo com unhas e dentes
Ninguém te conhece quando você está na pior
Em meu bolso não há um centavo
E não tenho meus amigos
Mas eu me restabeleço de novo
Então encontrarei meu amigo perdido
É bem estranho sem dúvida
Ninguém te conhece quando você está na pior
Eu qeuro dizer, quando você está na pior
Mmmmmmm, quando você está na pior
Mmmmm, sem um centavo,
E sem meus amigos
Mmmmmmm eu caí tanto
Ninguém me quer perto de suas portas
Mmmmmmm, sem dúvida
Nenhum homem pode te usar quando você está na pior
Quero dizer, quando você está na pior

Bessie Smith
Cantora Norte-Americana

OUTROS CONTOS

«Chuva de Maio», por Alberto Moravia.

«Chuva de Maio»
Ainda Chove/ Edmundo Cruz

626- «CHUVA DE MAIO» 

Um dia desses voltarei a Monte Mario, na Taverna dos Caçadores, mas irei com amigos, aqueles do domingo, que tocam acordeão e, na falta de moças, dançam entre si. Sozinho, nunca teria coragem. 

De noite, às vezes, sonho com as mesas da taverna, com a chuva quente de maio caindo em cima da gente, as árvores encrespadas que gotejam sobre as mesas, e entre as árvores, no fundo, as nuvens brancas passando e, sob as nuvens, o panorama das casas de Roma. E parece que estou ouvindo a voz do taverneiro, Antonio Tocchi, como a ouvi naquela manhã, chamando da adega, curiosa: -Dirce, Dirce.

- E parece que o revejo me lançando um olhar de cumplicidade, antes de descer à adega, com aquele seu passo duro que ressoa nos degraus.

Fora parar ali por acaso, vindo do interior; e quando me ofereceram para fazer as vezes de empregado, sem me pagar, pensei:

-Dinheiro não vou ter, mas pelo menos estarei em família.

- Mas que família qual nada, ao invés de família, encontrei o inferno. O taverneiro era gordo e redondo como uma bola de manteiga, mas de uma gordura má, ácida. Tinha uma cara larga, cinzenta, com muitas rugas finas em volta do rosto por causa da gordura e dois olhinhos pequenos, pontiagudos, iguais aos das cobras: sempre de jaleco e em mangas de camisa, com um boné de pala cinza enterrado até os olhos.

A filha Dirce, quanto ao carácter, não era melhor que o pai, dura ela também, maldosa, áspera; porém bonita: daquelas mulheres pequenas e musculosas, bem feitas, que caminham mexendo os quadris e batendo os pés, como que dizendo:

-Esta terra é minha.

- Tinha uma cara larga, de olhos negros e cabelos negros, pálida que parecia uma morta. Apenas a mãe, naquela casa, talvez fosse boa: uma mulher que devia ter uns quarenta anos e aparentava sessenta, magra, com um nariz de velha e os cabelos escorridos de velha, mas talvez fosse apenas abobada, pelo menos era a impressão que dava vê-la de pé diante do fogão com a cara toda repuxada num riso mudo; se se virava, a gente via que tinha um dente ou dois e só. A taverna se debruçava com uma tabuleta em arco, vermelho-sangue, com a inscrição: “Taverna dos Caçadores, proprietário Antonio Tocchi” em letras amarelas. Depois, por uma alameda, chegava-se às mesas, debaixo das árvores, diante do panorama de Roma. A casa era rústica, só paredes e quase sem janelas, coberta de telhas. No verão era a melhor época, vinha gente de manhã até à meia-noite: famílias com crianças, casais de namorados, grupos de homens, e sentavam às mesas, bebiam vinho e comiam a comida dos Tocchi, admirando o panorama. Não tínhamos tempo de respirar: nós homens sempre servindo, as duas mulheres sempre cozinhando e lavando, e à noite estávamos arrebentados e íamos para a cama sem sequer nos olharmos. Mas no inverno, ou mesmo no verão, se chovia, começavam os problemas. 

Pai e filha se odiavam, mas odiar é dizer pouco, se matariam. O pai era autoritário, avarento, estúpido, e por um nadinha já ia avançando com as mãos, a filha era dura como uma pedra, fechada, sempre ela a dar a última palavra, arrogante. Odiavam-se, talvez, sobretudo, porque eram do mesmo sangue e, como se sabe, não há nada como o mesmo sangue para se odiar; mas se odiavam também por questões de interesse. A filha era ambiciosa: dizia que eles com aquele panorama de Roma tinham um capital a ser aproveitado e que o deixavam, ao contrário, entregue aos cachorros. Dizia que o pai deveria construir uma pista de cimento para dançar, contratar uma orquestra e pendurar balõezinhos venezianos, e transformar a casa em restaurante moderno e chamá-lo de Restaurante Panorama. Mas o pai não se atrevia, um pouco porque era avarento e inimigo das novidades, outro, porque era a filha que estava propondo, e ele preferia se deixar degolar que dar o braço a torcer à filha. Os choques entre pai e filha ocorriam sempre à mesa: ela implicava, com maldade, ofendendo, contra alguma coisa de pessoal, contra o fato de que o pai, comendo, soltava um arroto, por exemplo, ele respondia com palavrões e xingos; a filha insistia; o pai dava-lhe um tapa. É preciso dizer que devia sentir algum prazer em esbofeteá-la, porque fazia uma certa cara, prendendo o lábio inferior com os dentes e piscando os olhos. Mas para a, filha aquele tapa era como água fresca numa flor: ficava verde de ódio e de maldade. Então o pai a agarrava pelos cabelos e lá vinha pancadaria. Caíam pratos e copos, sobrava também para a mãe que, de boba, ficava no meio, com aquele riso eterno na boca desdentada e eu, o coração cheio de veneno, saía e ia dar uma volta pela rua que leva a Camillucia.

 Teria ido embora há tempo se não tivesse me apaixonado pela Dirce.
Não sou do tipo que se apaixona com facilidade, porque sou positivo e as palavras e os olhares não me encantam.

Porém, quando uma mulher, em lugar de palavras e olhares, oferece a si mesma, inteirinha, em carne e osso e, ainda por cima, de surpresa, então o sujeito fica preso como numa armadilha, e quanto mais esforço faz para se soltar, mais se afundam os dentes da armadilha na carne. Dirce devia ter a intenção antes mesmo de me conhecer, eu ou outro qualquer para ela era a mesma coisa, porque, no dia de minha chegada, entrou de noite no meu quarto quando eu já dormia; e assim, entre o sono e a vigília, que quase eu não entendia se era sonho ou realidade, me fez passar repentinamente da indiferença à paixão. Não houve entre nós nem conversas, nem olhares, nem toques de mão, nem todos os demais subterfúgios a que recorrem os namorados para dizer que se amam; ao contrário, foi como com uma mulher de rua, das baratas. Só que a Dirce não era uma mulher de rua e até passava por virtuosa e cheia de orgulho, e essa diferença foi para mim, justamente, a armadilha em que fiquei preso.

Tenho génio paciente, razoável, mas também sou violento e, se me espicaçam, o sangue me sobe à cabeça facilmente. Dá para ver pelo físico: loiro, com o rosto pálido, mas basta um nada para que se torne escarlate. Ora, Dirce vivia me espicaçando e logo entendi por que: queria que me pusesse contra seu pai.

Dizia que eu era um patife por tolerar que em minha presença seu pai a esbofeteasse e depois a agarrasse pelos cabelos e até, como aconteceu uma vez, a jogasse no chão e lhe desse pontapés. E não digo que não tivesse razão: éramos amantes e devia defendê-la. Mas eu sabia que seu objectivo era outro e entre a raiva que me dava aquele insulto de patife e a raiva de saber que dizia de propósito, eu não dava mais conta.

Depois, um belo dia mudou de conversa: como seria bonito se pudéssemos nos casar e montar o Restaurante Panorama, eu e ela, sozinhos. Tornara-se boazinha, gentil, amorosa, doce. Foi essa a melhor época do nosso amor; mas eu não mais a reconhecia e pensava: aqui tem coisa. E de fato, de repente, mudou a toada pela terceira vez e disse que, casados ou não casados, não podíamos esperar nada enquanto existisse o pai, e, resumindo, me disse abertamente: devíamos matá-lo. Foi como na primeira noite que entrou no meu quarto, sem preparo nem fingimentos: jogou a proposta ali e foi embora para eu pensar nela sozinho.

No dia seguinte disse-lhe que estava enganada se achava que ia ajudá-la numa coisa como aquela e ela me respondeu que nesse caso eu fosse tratando de ir logo embora porque para ela eu não existia mais. E manteve a palavra porque desde aquele dia nem sequer me olhava. Quase não nos falávamos e por tabela comecei a odiar o pai porque achava que a culpa era dele.

Por coincidência, naquela época, o pai aprontava uma todos os dias e parecia que aprontava de propósito para se fazer odiar. Era maio que é a boa estação e as pessoas vêm à taverna para tomar vinho e comer fava fresca; mas, ao contrário, só dava pancada de chuva naquele campo verde e denso, à taverna nem cachorro vinha e ele ficava sempre de mau humor.

Uma manhã, à mesa, ele afastou o prato, dizendo:

-É de propósito que você me dá esta nojeira de sopa grudenta.

E ela:

-Se fosse de propósito, teria posto veneno nela.

Ele olha para ela e dá-lhe um tapa, que faz seu pente saltar longe. Estávamos quase no escuro por causa da chuva e o rosto da Dirce naquele escuro era branco e duro como o mármore, com os cabelos que de um dos lados, onde se soltara o pente, se desmanchavam bem devagarinho, iguais a serpentes acordando.

Eu disse ao Tocchi:

-Quer parar com isso de uma vez?

Ele respondeu:

-Não se meta, mas estarrecido porque era a primeira vez que eu intervinha. Eu tive, então, quase que uma sensação de vaidade, como se defendesse um ser frágil, que não era bem o caso, e achei que assim eu a recuperaria e que era o único modo de recuperá-la e disse com força:

-Pare, entendeu, não permito isso.

Estava vermelho feito fogo, com o sangue nos olhos, e a Dirce por baixo da mesa pegou minha mão e vi que tinha caído, mas então já era tarde demais. Ele se levantou e disse:

-Está querendo levar o seu também?

Pegou na bochecha, meio de atravessado, e eu agarrei um copo e atirei todo o vinho na cara dele. No copo e no vinho, pode-se dizer que já vinha pensando neles há um mês, tanto me agradava o gesto quanto odiava o Tocchi. E agora ele estava com o vinho na cara e eu tinha feito o gesto e dava o fora pela escada.

Ouvi ele gritar:

-Eu te mato, viu, vagabundo, mendigo, então, fechei a porta do meu quarto e fui até a janela olhar a chuva caindo e de raiva peguei uma Chuva de maio faca que eu tinha na gaveta e a finquei no peitoril com tanta força que a lâmina partiu.

Chega, estávamos lá em cima, no topo do Monte Mario do mau agouro, e talvez, se estivesse em Roma, não teria aceito, mas ali tudo se tornava natural e o que no dia anterior era impossível, no dia seguinte já estava decidido. Assim, eu e a Dirce combinamos e estabelecemos juntos o modo, o dia e a hora. Tocchi, de manhã, descia à adega para pegar o vinho do dia, junto com a Dirce que lhe trazia o garrafão. A adega era subterrânea e para descer havia uma escadinha montada em cima de um tear e apoiada na parede: seriam sete degraus. Decidimos que eu os alcançaria e, enquanto Tocchi se abaixava para espichar o vinho, eu lhe bateria na cabeça com uma barra curta, de ferro, que servia para atiçar carvões. Em seguida, retiraríamos a escadinha e diríamos que ele tinha caído e ferido a cabeça. Eu queria e não queria; e de raiva disse:

-Estou fazendo isso para te mostrar que eu não tenho medo… mas depois eu vou embora e não volto mais.

E ela:

-Então é melhor que você não faça nada e vá indo depressa… eu gosto de você e não quero te perder.

- Sabia quando queria, simular a paixão: e assim eu disse que faria e depois ficaria e abriríamos o restaurante.

No dia marcado Tocchi disse à Dirce que pegasse o garrafão e dirigiu-se à porta da adega, no fundo da taverna. Chovia, o de sempre, e a taverna estava quase às escuras. Dirce pegou o garrafão e seguiu o pai; mas, antes de descer, virou-se e me fez um gesto de cumplicidade, às claras. A mãe, que estava diante do fogão, viu o gesto e ficou de boca aberta, olhando a gente. Eu me ergui da mesa, fui até o fogão e peguei o atiçador em cima da chaminé, passando na frente da mãe. Essa, então, me olhava, olhava a Dirce, ficava olhando, olhando, mas via-se que não iria falar. O pai berrou da adega:

-Dirce, Dirce, e ela respondeu -

-Estou indo.

Lembro que me agradou fisicamente pela última vez, enquanto descia a escada, com aquele seu andar duro e sensual, dobrando o pescoço branco e roliço sob a viga mestra.

Naquele instante, a porta que dava para o jardim se abriu e entrou um homem com um saco molhado nas costas: um carroceiro.

Sem me olhar, disse:

-Moço, me dá uma mãozinha?, e eu, maquinalmente, com o ferro na mão, o acompanhei. Ali ao lado, numa chácara, estavam construindo uma cocheira, e a carroça carregada de pedras ficara atolada na passagem da porteira e o carvão não conseguia sair. O carroceiro parecia fora de si, um homem torto e feio, quase um animal. Pousei o ferro em cima de uma das pilastras da porteira, pus duas pedras em baixo das rodas e empurrei o carroceiro puxava o cavalo pelo cabresto. Chovia a cântaros sobre as sebes de sabugueiro verdes e cerradas e sobre as acácias floridas que cheiravam forte; a carroça não se movia e o carroceiro praguejava.

Pegou o chicote e bateu no cavalo com o cabo, depois, enfurecido, agarrou o ferro que eu deixara em cima da pilastra. Dava para ver que estava fora de si não pela carroça, mas pela vida inteira, e que odiava o cavalo como uma pessoa.

Pensei:

-Agora vai matá-lo e quase gritei:

-Não, largue esse ferro.

Mas depois pensei que se ele matasse o cavalo, eu estava salvo. Achava que toda minha raiva estava passando para o corpo daquele carroceiro que parecia um possesso, e de fato, ele se atirou sobre os varais, empurrou de novo e depois bateu na cabeça do cavalo, com o ferro. Eu, ante o golpe, fechei os olhos, e ouvi que ele continuava batendo, e ao mesmo tempo eu me esvaziava e quase desmaiava, e depois voltei a abrir os olhos e vi que o cavalo tinha caído de joelhos e que ele continuava batendo, agora não para fazê-lo levantar, mas para matá-lo. O cavalo arreou de costas, escoiceou o ar, mas debilmente e aí largou a cabeça na lama. O carroceiro arquejante, a cara transtornada, jogou o ferro e deu um safanão no cavalo, porém sem convicção: sabia que o tinha matado.

Eu passei a seu lado, sem sequer tocá-lo, e pus-me a caminhar pela estrada. Passou o bonde que ia para Roma, eu o peguei na corrida e depois olhei para trás e vi pela última vez a tabuleta:

-Taverna dos Caçadores, proprietário Antonio Tocchi, entre a folhagem de maio, lavada pela chuva.

Alberto Moravia

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

OUTROS CONTOS

«Nada de Novo no Front», por Erich Maria Remarque.

«Nada de Novo no Front»
Escritor Alemão Erich Maria Remarque

625- «NADA DE NOVO NO FRONT»

[Excertos]

“Este livro não pretende ser um libelo nem uma confissão, e menos ainda uma aventura, pois a morte não é uma aventura para aqueles que se deram face a face com ela. Apenas procura mostrar o que foi uma geração de homens que, mesmo tendo escapado às granadas, foram destruídos pela guerra.”

“Naquela época, até nossos pais usavam facilmente a palavra ‘covarde’. As pessoas não tinham nenhuma ideia do que estava por vir. Os mais sensatos eram realmente os pobres, os simples: viram logo que a guerra era uma desgraça, enquanto as classes mais altas não se continham de alegria...”

“Sob a pele, a vida não palpita mais, foi sendo expulsa do corpo; a morte avança de dentro para fora e já domina os olhos. Lá está nosso companheiro Kemmerich, que até há pouco ainda assava carne de cavalo e se agachava junto connosco nos buracos abertos pelas granadas; ainda é ele, porém já não é mais ele; suas feições ficaram imprecisas, indistintas, como duas fotografias sobrepostas na mesma chapa. Até sua voz soa como se viesse do túmulo.”

Erich Maria Remarque

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(25 de Setembro de 1906, nasce o compositor russo e nome essencial da música no século XX, 
autor do «Requiem à Memória das Vítimas da Guerra e do Fascismo», para quarteto, 
Dmitri Shostakovich)

DMITRI SHOSTAKOVICH 
«Eyes Wide Schut - Waltz No 2 from Jazz Suite No 2»

Poet'anarquista

Dmitri Shostakovich
Compositor Russo

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

CARTOON versus DÉCIMA

A Teia das Sondagens
HenriCartoon

«A TEIA DAS SONDAGENS»

A teia das sondagens
Só favorece a abstenção,
Esqueço o dia da votação
Enleado nas percentagens.
Não encontro vantagens
Se tudo já está decidido,
Dou o caso por perdido
Tenho mais o que fazer…
Sou eu que me vou foder,
E queixo-me de ser fodido!

POETA

CARTOON versus DÉCIMA

Visita Inesperada
HenriCartoon

«VISITA INESPERADA»

Uma visita inesperada
A altas horas da noite…
Entra pra que o acoite,
E dá-me real cacetada!
7,2 por cento à entrada
É então a percentagem,
Só pode ser gatunagem
Que me anda a tramar…
Nunca mais vou escapar
Desta péssima imagem!!

POETA

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

TEN YEARS AFTHER - «Slow Blues In C»

Poet'anarquista

BLUES LENTO EM C

Sim , eu tenho o blues, e me dói no fundo;
Sim, fico com o blues, e me dói no fundo;
É por isso que eu vou arrumar minhas malas,
Eu vou deixar esta cidade e montar.

Ontem à noite eu estava dormindo, te digo querida, eu estava dormindo sozinho;
Ontem à noite eu estava dormindo, te digo querida, eu estava dormindo sozinho;
O que eu realmente amo
é do outro lado da cidade, dormir com outra pessoa.

Eu amo minha querida , sim, só Deus sabe que eu faço;
Eu amo minha querida, eu amo minha querida, vai dizer ao mundo eu sei que eu faço;
É por isso que eu vou deixar a minha mulher,
Sim e dizer ao mundo que eu sei que é verdade.

Ten Years Afther
Banda Britânica

OUTROS CONTOS

«Ensaio sobre a Lucidez», por José Saramago.

Lembram-se?... numas eleições regionais grande percentagem de votos em branco (83%) fez abanar o poder político, e os partidos. Disse a propósito José Saramago:

«Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso.»

«Ensaio sobre a Lucidez»
José Saramago, Nobel da Literatura

624- «ENSAIO SOBRE A LUCIDEZ»

[Excerto]

O presidente da câmara municipal arrumou sumariamente os documentos espalhados sobre a mesa de trabalho, na sua maioria eram já como se tivessem que ver com outro país e outro século, não com esta capital em estado de sítio, abandonada pelo seu próprio governo, cercada pelo seu próprio exército.

Se os rasgasse, se os queimasse, se os atirasse para o cesto dos papeis, ninguém lhe viria pedir contas pelo que tinha feito, as pessoas agora têm coisas muito mais importantes em que pensar, a cidade, reparando bem, já não faz parte do mundo conhecido, tornou-se numa panela cheia de comida podre e de vermes, numa ilha empurrada para um mar que não é o seu, um lugar onde rebentou um perigoso foco de infecção e que, à cautela, foi posto em regime de quarentena, à espera de que a peste perca a virulência ou, por não ter mais a quem matar, acabe por se devorar a si mesma.

José Saramago

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

HUMOR NO CONSULTÓRIO

«Quadra»/ POETA
Humor no Consultório
Poet'anarquista

CARTOON versus DÉCIMA + 1

Sócrates e o Voto não Autorizado
HenriCartoon

«SÓCRATES E O VOTO NÃO AUTORIZADO»

- Senhor Trócas-te… o senhor
Não vota sem autorização
Do meritíssimo juiz doutor…
Lamento, caro concidadão.
- Bolas, isto é descriminação!...
Preparei-me de cara tapada
Pra não haver palhaçada…
Como foi que me conheceu?
- O seu nariz sempre cresceu,
E a mala de luxo é Prada.

- Boicoto esta Bosta cagada!!

POETA

OUTROS CONTOS

«O Êxtase», conto poético por John Donne.

«O Êxtase»
Pintura corporal luminescente
(Daria Khoroshavina)

623- «O ÊXTASE»

Onde, qual almofada sobre o leito,
A areia grávida inchou para apoiar
A inclinada cabeça da violeta, 
Nós nos sentamos, olhar contra olhar. 

Nossas mãos duramente cimentadas
No firme bálsamo que delas vem,
Nossas vistas trançadas e tecendo
Os olhos em um duplo filamento;

Enxertar mão em mão é até agora
Nossa única forma de atadura
E modelar nos olhos as figuras
A nossa única propagação.

Como entre dois exércitos iguais,
Na incerteza, o Acaso se suspende,
Nossas almas (dos corpos apartadas
Por antecipação) entre ambos pendem.

E enquanto alma com alma negocia,
Estátuas sepulcrais ali quedamos
Todo o dia na mesma posição,
Sem mínima palavra, todo o dia.

Se alguém - pelo amor tão refinado
Que entendesse das almas a linguagem,
E por virtude desse amor tornado
Só pensamento - a elas se chegasse,

Pudera (sem saber que alma falava
Pois ambas eram uma só palavra),
Nova sublimação tomar do instante
E retornar mais puro do que antes.

Nosso Êxtase - dizemos - nos dá nexo
E nos mostra do amor o objetivo,
Vemos agora que não foi o sexo,
Vemos que não soubemos o motivo.

Mas que assim como as almas são misturas
Ignoradas, o amor reamalgama
A misturada alma de quem ama,
Compondo duas numa e uma em duas.

Transplanta a violeta solitária:
A força, a cor, a forma, tudo o que era
Até aqui degenerado e raro
Ora se multiplica e regenera.

Pois quando o amor assim uma na outra
Interanimou duas almas,
A alma melhor que dessas duas brota
A magra solidão derrota,

E nós que somos essa alma jovem,
Nossa composição já conhecemos
Por isto: os átomos de que nascemos
São almas que não mais se movem.

Mas que distância e distração as nossas!
Aos corpos não convém fazermos guerra:
Não sendo nós, não convém fazermos guerra:
Inteligências, eles as esferas.

Ao contrário, devemos ser-lhes gratas
Por nos (a nós) haverem atraído,
Emprestando-nos forças e sentidos.
Escória, não, mas liga que nos ata.

A influência dos céus em nós atua
Só depois de se ter impresso no ar.
Também é lei de amor que alma não flua
Em alma sem os corpos transpassar.

Como o sangue trabalha para dar
Espíritos, que às almas são conformes,
Pois tais dedos carecem de apertar
Esse invisível nó que nos faz homens,

Assim as almas dos amantes devem
Descer às afeições e às faculdades
Que os sentidos atingem e percebem,
Senão um Príncipe jaz aprisionado.

Aos corpos, finalmente, retornemos,
Descortinando o amor a toda a gente;
Os mistérios do amor, a alma os sente,
Porém o corpo é as páginas que lemos.

Se alguém - amante como nós - tiver
Esse diálogo a um ouvido a ambos,
Que observe ainda e não verá qualquer
Mudança quando aos corpos nos mudamos.

John Donne 

MEDITAÇÃO

Meditação
Retrato do Poeta John Donne

MEDITAÇÃO

[Trecho]

Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todo homem é um pedaço do continente, uma parte da terra firme. Se um torrão de terra for levado pelo mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar dos teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do género humano, e por isso não me perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.

John Donne

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

JOHN COLTRANE - «Mr. Knight»

Poet'anarquista

John Coltrane
Saxofonista Norte-Americano

terça-feira, 22 de setembro de 2015

CARTOON versus DÉCIMA

Quem Diz a Verdade?
HenriCartoon

«QUEM DIZ A VERDADE?»

Diz o Tonho: - Eu faço!
- É mentira, esclareço…
Dois em um: - Eu aconteço!
- Ó Diabo!... assim passo!…
O destino que traço:
- Pra estes gajos cago… (?)
Mas voto neles e amago
Por gostar do inimigo…
Só olho pró meu umbigo,
Depois sou eu que pago!!

POETA

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

INCA SONGS - «Illimani»

Poet'anarquista

Inca Songs
Grupo Peruano

OUTROS CONTOS

«A Moral», conto poético por Edmond Rostand.

«A Moral»
Conto Poético de Edmond Rostand

622- «A MORAL»

Somente na moral se vê minha elegância.
Enfeitar-me não sei; nem dou para casquilho,
Julgo estar muito bem, não sendo peralvilho.
O que eu não faço nunca é, franco e por incúria,
Sair sem lavar bem a recebida injúria.
Trazer o pundonor ébrio de sono e vinho,
Ter os brios de luto e a honra em desalinho!
Ando, sem nada ter que pela cor agrade,
Emplumado de orgulho e garbo e liberdade;
Se não prendo a cintura esbelta num corpete
A vergonha ajustou minh’alma num colete.
São-me os feitos e acções as fitas que apresento;
Qual bigode gentil, retorço o meu talento;
Faço, por onde vou, tornando-as bem sonoras,
As verdades vibrar como tlintlins de esporas!

Edmond Rostand

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

DÉCIMA/ «SAUDADE»

Meu Neto André/ Foto através do Skipe
Décima por Matias José

SAUDADE

Desejo de o abraçar,
Um abraço aconchegado...
P'la distância separado
Não lhe consigo chegar.
No Skipe esse lindo olhar
Cativa o avô Cabé,
Quase andas pelo teu pé
Com enorme à vontade...
De ti tenho saudade,
Ó meu rico neto André!

Matias José

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

STATUS QUO - «Roadhouse Blues»

Poet'anarquista

BLUES DA HOSPEDARIA DA ESTRADA  

Mantenha seus olhos na estrada, suas mãos no volante,
Estamos indo para a hospedaria da estrada
E vamos nos divertir bastante.

Atrás da hospedaria da estrada existem alguns bangalós,
E isso é para as pessoas
Que gostam de ir bem devagar.

Deixe rolar, baby, rolar...
Deixe rolar
A noite inteira.

Faça isso, amor, faça isso!

Você tem que rolar, rolar, rolar...
Você tem que excitar minha alma, isso aí!
Role, role, role, role...
Excite minha alma!

Dama apaixonada, dama apaixonada,
Desista de seus votos...
Salve a nossa cidade, salve a nossa cidade
Agora mesmo.

Bem, eu acordei essa manhã e tomei uma cerveja...
O futuro é incerto e o fim está sempre perto

Deixe rolar, baby, rolar...
Deixe rolar
A noite inteira.

Status Quo
Banda Britânica

OUTROS CONTOS

«Os Olhos que Comiam Carne», por Humberto de Campos.

«Os Olhos que Comiam Carne»
Conto de Humberto de Campos

621- «OS OLHOS QUE COMIAM CARNE»

Na manhã seguinte à do aparecimento, nas livrarias, do oitavo e último volume da História do Conhecimento Humano, obra em que havia gasto catorze anos de uma existência consagrada, inteira, ao estudo e à meditação, o escritor Paulo Fernandes esperava, inutilmente, que o sol lhe penetrasse no quarto. Estendido, de costas, na sua cama de solteiro, os olhos voltados na direção da janela que deixara entreaberta na véspera para a visita da claridade matutina, ele sentia que a noite se ia prolongando demais. O aposento permanecia escuro. Lá fora, entretanto, havia rumores de vida. Bondes passavam tilintando. Havia barulho de carroças no calçamento áspero. Automóveis buzinavam como se fosse dia alto. E, no entanto, era noite, ainda. Atentou melhor, e notou movimento na casa. Distinguia perfeitamente o arrastar de uma vassoura, varrendo o pátio. Imaginou que o vento tivesse fechado a janela, impedindo a entrada do dia. Ergueu, então, o braço e apertou o botão da lâmpada. Mas a escuridão continuou. Evidentemente, o dia não lhe começava bem. Comprimiu o botão da campainha. E esperou.

Ao fim de alguns instantes, batem docemente à porta.

- Entra, Roberto.

O criado empurrou a porta, e entrou.

- Esta lâmpada está queimada, Roberto? - indagou o escritor, ao escutar os passos do empregado no aposento.

- Não, senhor. Está até acesa..

- Acesa? A lâmpada está acesa, Roberto? - exclamou o patrão, sentando-se repentinamente na cama.

- Está, sim, senhor. O doutor não vê que está acesa, por causa da janela que está aberta.

- A janela está aberta, Roberto? - gritou o homem de letras, com o terror estampado na fisionomia.

- Está, sim, senhor. E o sol está até no meio do quarto.

Paulo Fernando mergulhou o rosto nas mãos, e quedou-se imóvel, petrificado pela verdade terrível. Estava cego. Acabava de realizar-se o que há muito prognosticavam os médicos.

A notícia daquele infortúnio em breve se espalhava pela cidade, impressionando e comovendo a quem a recebia. A morte dos olhos daquele homem de quarenta anos, cuja mocidade tinha sido consumida na intimidade de um gabinete de trabalho, e cujos primeiros cabelos brancos haviam nascido à claridade das lâmpadas, diante das quais passara oito mil noites estudando, enchia de pena os mais indiferentes à vida do pensamento. Era uma força criadora que desaparecia. Era uma grande máquina que parava. Era um facho que se extinguia no meio da noite, deixando desorientados na escuridão aqueles que o haviam tomado por guia. E foi quando, de súbito, e como que providencialmente, surgiu na imprensa a informação de que o professor Platen, de Berlim, havia descoberto o processo de restituir a vista aos cegos, uma vez que a pupila se conservasse íntegra, e se tratasse, apenas, de destruição ou defeito do nervo óptico. E, com essa informação, a de que o eminente oculista passaria em breve pelo Rio de Janeiro, a fim de realizar uma operação desse gênero em um opulento estancieiro argentino, que se achava cego há seis anos e não tergiversara em trocar a metade da sua fortuna pela antiga luz dos seus olhos.

A cegueira de Paulo Fernando, com as suas causas e sintomas, enquadrava-se rigorosamente no processo do professor alemão: dera-se pelo seccionamento do nervo óptico. E era pelo restabelecimento deste, por meio de ligaduras artificiais com uma composição metálica de sua invenção, que o sábio de Berlim realizava o seu milagre cirúrgico. Esforços foram empregados, assim, para que Platen desembarcasse no Rio de Janeiro por ocasião de sua viagem a Buenos Aires.

Três meses depois, efetuava-se, de fato, esse desembarque. Para não perder tempo, achava-se Paulo Fernando, desde a véspera, no Grande Hospital das Clínicas. E encontrava-se já na sala de operações, quando o famoso cirurgião entrou, rodeado de colegas brasileiros, e de dois auxiliares alemães, que o acompanhavam na viagem, e apertou-lhe vivamente a mão.

Paulo Fernando não apresentava, na fisionomia, o menor sinal de emoção. O rosto escanhoado, o cabelo grisalho e ondulado posto para trás, e os olhos abertos, olhando sem ver: olhos castanhos, ligeiramente saídos, pelo hábito de vir beber a sabedoria aqui fora, e com laivos escuros de sangue, como reminiscência das noites de vigília. Vestia pijama de tricoline branca, de gola caída. As mãos de dedos magros e curtos seguravam as duas bordas da cadeira, como se estivesse à beira de um abismo, e temesse tombar na voragem.

Olhos abertos, piscando, Paulo Fernando ouvia, em torno, ordens em alemão, tinir de ferros dentro de uma lata, jorro d'água, e passos pesados ou ligeiros, de desconhecidos. Esses rumores eram, no seu espírito, causa de novas reflexões.

Só agora, depois de cego, verificara a sensibilidade da audição, e as suas relações com a alma, através do cérebro. Os passos de um estranho são inteiramente diversos daqueles de uma pessoa a quem se conhece. Cada criatura humana pisa de um modo. Seria capaz de identificar, agora, pelo passo, todos os seus amigos, como se tivesse vista e lhe pusessem diante dos olhos o retrato de cada um deles. E imaginava como seria curioso organizar para os cegos um álbum auditivo, como os de datiloscopia, quando um dos médicos lhe tocou no ombro, dizendo-lhe amavelmente:

- Está tudo pronto... Vamos para a mesa... Dentro de oito dias estará bom. .

O escritor sorriu, cético. Lido nos filósofos, esperava, indiferente, a cura ou a permanência na treva, não descobrindo nenhuma originalidade no seu castigo e nenhum mérito na sua resignação. Compreendia a inocuidade da esperança e a inutilidade da queixa. Levantou-se, assim, tateando, e, pela mão do médico, subiu na mesa de ferro branco, deitou-se ao longo, deixou que lhe pusessem a máscara para o clorofórmio, sentiu que ia ficando leve, aéreo, imponderável. E nada mais soube nem viu.

O processo Platen era constituído por uma aplicação da lei de Roentgen, de que resultou o Raio-X, e que punha em contacto, por meio de delicadíssimos fios de "hêmera", liga metálica recentemente descoberta, o nervo seccionado. Completava-o uma espécie de parafina adaptada ao globo ocular, a qual, posta em contacto direto com a luz, restabelecida integralmente a função desse órgão. Cientificamente, era mais um mistério do que um fato. A verdade, era que as publicações europeias faziam, levianamente ou não, referências constantes às curas miraculosas realizadas pelo cirurgião de Berlim, e que seu nome, em breve, corria o mundo, como o de um dos grandes benfeitores da Humanidade.

Meia hora depois as portas da sala de cirurgia do Grande Hospital de Clínicas se reabriam e Paulo Fernando, ainda inerte, voltava, em uma carreta de rodas silenciosas, ao seu quarto de pensionista. As mãos brancas, postas ao longo do corpo, eram como as de um morto. O rosto e a cabeça envoltos em gaze, deixavam à mostra apenas o nariz afilado e a boca entreaberta. E não tinha decorrido outra hora, e já o professor Platen se achava, de novo, a bordo, deixando a recomendação de que não fosse retirada a venda, que pusera no enfermo, antes de duas semanas.

Doze dias depois passava ele, de novo, pelo Rio, de regresso para a Europa. Visitou novamente o operado, e deu novas ordens aos enfermeiros. Paulo Fernando sentia-se bem. Recebia visitas, palestrava com os amigos. Mas o resultado da operação só seria verificado três dias mais tarde, quando se retirasse a gaze. O santo estava tão seguro do seu prestígio que ia embora sem esperar pela verificação do milagre.

Chega, porém, o dia ansiosamente aguardado pelos médicos, mais do que pelo doente. O Hospital encheu-se de especialistas, mas a direção só permitiu, na sala em que se ia cortar a gaze, a presença dos assistentes do enfermo. Os outros ficaram fora, no salão, para ver o doente, depois da cura.

Pelo braço de dois assistentes, Paulo Fernando atravessou o salão. Daqui e dali, vinham-lhe parabéns antecipados, apertos de mão vigorosos, que ele agradecia com um sorriso sem endereço. Até que a porta se fechou, e o doente, sentado em uma cadeira, escutou o estalido da tesoura, cortando a gaze que lhe envolvia o rosto.

Duas, três voltas são desfeitas. A emoção é funda, e o silêncio completo, como o de um túmulo. O último pedaço de gaze rola no balde. O médico tem as mãos trêmulas. Paulo Fernando, imóvel, espera a sentença final do Destino.

- Abra os olhos! - diz o doutor.

O operado, olhos abertos, olha em torno. Olha e, em silêncio, muito pálido, vai se pondo de pé. A pupila entra em contacto com a luz, e ele enxerga, distingue, vê. Mas é espantoso o que vê. Vê, em redor, criaturas humanas. Mas essas criaturas não têm vestimentas, não têm carne; são esqueletos apenas; são ossos que se movem, tíbias que andam, caveiras que abrem e fecham as mandíbulas! Os seus olhos comem a carne dos vivos. A sua retina, como os raios-X, atravessa o corpo humano e só se detém na ossatura dos que a cercam, e diante das cousas inanimadas! O médico, à sua frente, é um esqueleto que tem uma tesoura na mão! Outros esqueletos andam, giram, afastam-se, aproximam-se, como um bailado macabro!

De pé, os olhos escancarados, a boca aberta e muda, os braços levantados numa atitude de pavor, e de pasmo, Paulo Fernando corre na direção da porta, que adivinha mais do que vê, e abre-a. E o que enxerga, na multidão de médicos e de amigos que o aguardam lá fora, é um turbilhão de espectros, de esqueletos que marcham e agitam os dentes, como se tivessem aberto um ossuário cujos mortos quisessem sair. Solta um grito e recua. Recua, lento, de costa, o espanto estampado na face. Os esqueletos marcham para ele, tentando segurá-lo.

- Afastem-se ! Afastem-se - intima, num urro que faz estremecer a sala toda.

E, metendo as unhas no rosto, afunda-as nas órbitas, e arranca, num movimento de desespero, os dois glóbulos ensanguentados, e tomba escabujando no solo, esmagando nas mãos aqueles olhos que comiam carne, e que, devorando macabramente a carne aos vivos, transformavam a vida humana, em torno, em um sinistro baile de esqueletos...

Humberto de Campos