«Os Olhos que Comiam Carne»
Conto de Humberto de Campos
621- «OS OLHOS QUE COMIAM CARNE»
Na manhã seguinte à do aparecimento, nas livrarias, do oitavo
e último volume da História do Conhecimento Humano, obra em que havia gasto
catorze anos de uma existência consagrada, inteira, ao estudo e à meditação, o
escritor Paulo Fernandes esperava, inutilmente, que o sol lhe penetrasse no
quarto. Estendido, de costas, na sua cama de solteiro, os olhos voltados na
direção da janela que deixara entreaberta na véspera para a visita da claridade
matutina, ele sentia que a noite se ia prolongando demais. O aposento
permanecia escuro. Lá fora, entretanto, havia rumores de vida. Bondes passavam
tilintando. Havia barulho de carroças no calçamento áspero. Automóveis
buzinavam como se fosse dia alto. E, no entanto, era noite, ainda. Atentou
melhor, e notou movimento na casa. Distinguia perfeitamente o arrastar de uma
vassoura, varrendo o pátio. Imaginou que o vento tivesse fechado a janela,
impedindo a entrada do dia. Ergueu, então, o braço e apertou o botão da
lâmpada. Mas a escuridão continuou. Evidentemente, o dia não lhe começava bem.
Comprimiu o botão da campainha. E esperou.
Ao fim de alguns instantes, batem docemente à porta.
- Entra, Roberto.
O criado empurrou a porta, e entrou.
- Esta lâmpada está queimada, Roberto? - indagou o escritor,
ao escutar os passos do empregado no aposento.
- Não, senhor. Está até acesa..
- Acesa? A lâmpada está acesa, Roberto? - exclamou o patrão,
sentando-se repentinamente na cama.
- Está, sim, senhor. O doutor não vê que está acesa, por
causa da janela que está aberta.
- A janela está aberta, Roberto? - gritou o homem de letras,
com o terror estampado na fisionomia.
- Está, sim, senhor. E o sol está até no meio do quarto.
Paulo Fernando mergulhou o rosto nas mãos, e quedou-se
imóvel, petrificado pela verdade terrível. Estava cego. Acabava de realizar-se
o que há muito prognosticavam os médicos.
A notícia daquele infortúnio em breve se espalhava pela
cidade, impressionando e comovendo a quem a recebia. A morte dos olhos daquele
homem de quarenta anos, cuja mocidade tinha sido consumida na intimidade de um
gabinete de trabalho, e cujos primeiros cabelos brancos haviam nascido à
claridade das lâmpadas, diante das quais passara oito mil noites estudando,
enchia de pena os mais indiferentes à vida do pensamento. Era uma força
criadora que desaparecia. Era uma grande máquina que parava. Era um facho que
se extinguia no meio da noite, deixando desorientados na escuridão aqueles que
o haviam tomado por guia. E foi quando, de súbito, e como que
providencialmente, surgiu na imprensa a informação de que o professor Platen,
de Berlim, havia descoberto o processo de restituir a vista aos cegos, uma vez
que a pupila se conservasse íntegra, e se tratasse, apenas, de destruição ou
defeito do nervo óptico. E, com essa informação, a de que o eminente oculista
passaria em breve pelo Rio de Janeiro, a fim de realizar uma operação desse
gênero em um opulento estancieiro argentino, que se achava cego há seis anos e
não tergiversara em trocar a metade da sua fortuna pela antiga luz dos seus
olhos.
A cegueira de Paulo Fernando, com as suas causas e sintomas,
enquadrava-se rigorosamente no processo do professor alemão: dera-se pelo
seccionamento do nervo óptico. E era pelo restabelecimento deste, por meio de
ligaduras artificiais com uma composição metálica de sua invenção, que o sábio
de Berlim realizava o seu milagre cirúrgico. Esforços foram empregados, assim,
para que Platen desembarcasse no Rio de Janeiro por ocasião de sua viagem a
Buenos Aires.
Três meses depois, efetuava-se, de fato, esse desembarque.
Para não perder tempo, achava-se Paulo Fernando, desde a véspera, no Grande
Hospital das Clínicas. E encontrava-se já na sala de operações, quando o famoso
cirurgião entrou, rodeado de colegas brasileiros, e de dois auxiliares alemães,
que o acompanhavam na viagem, e apertou-lhe vivamente a mão.
Paulo Fernando não apresentava, na fisionomia, o menor sinal
de emoção. O rosto escanhoado, o cabelo grisalho e ondulado posto para trás, e
os olhos abertos, olhando sem ver: olhos castanhos, ligeiramente saídos, pelo
hábito de vir beber a sabedoria aqui fora, e com laivos escuros de sangue, como
reminiscência das noites de vigília. Vestia pijama de tricoline branca, de gola
caída. As mãos de dedos magros e curtos seguravam as duas bordas da cadeira,
como se estivesse à beira de um abismo, e temesse tombar na voragem.
Olhos abertos, piscando, Paulo Fernando ouvia, em torno,
ordens em alemão, tinir de ferros dentro de uma lata, jorro d'água, e passos
pesados ou ligeiros, de desconhecidos. Esses rumores eram, no seu espírito, causa
de novas reflexões.
Só agora, depois de cego, verificara a sensibilidade da
audição, e as suas relações com a alma, através do cérebro. Os passos de um
estranho são inteiramente diversos daqueles de uma pessoa a quem se conhece.
Cada criatura humana pisa de um modo. Seria capaz de identificar, agora, pelo
passo, todos os seus amigos, como se tivesse vista e lhe pusessem diante dos
olhos o retrato de cada um deles. E imaginava como seria curioso organizar para
os cegos um álbum auditivo, como os de datiloscopia, quando um dos médicos lhe
tocou no ombro, dizendo-lhe amavelmente:
- Está tudo pronto... Vamos para a mesa... Dentro de oito
dias estará bom. .
O escritor sorriu, cético. Lido nos filósofos, esperava,
indiferente, a cura ou a permanência na treva, não descobrindo nenhuma
originalidade no seu castigo e nenhum mérito na sua resignação. Compreendia a
inocuidade da esperança e a inutilidade da queixa. Levantou-se, assim,
tateando, e, pela mão do médico, subiu na mesa de ferro branco, deitou-se ao
longo, deixou que lhe pusessem a máscara para o clorofórmio, sentiu que ia
ficando leve, aéreo, imponderável. E nada mais soube nem viu.
O processo Platen era constituído por uma aplicação da lei
de Roentgen, de que resultou o Raio-X, e que punha em contacto, por meio de
delicadíssimos fios de "hêmera", liga metálica recentemente
descoberta, o nervo seccionado. Completava-o uma espécie de parafina adaptada
ao globo ocular, a qual, posta em contacto direto com a luz, restabelecida
integralmente a função desse órgão. Cientificamente, era mais um mistério do
que um fato. A verdade, era que as publicações europeias faziam, levianamente
ou não, referências constantes às curas miraculosas realizadas pelo cirurgião
de Berlim, e que seu nome, em breve, corria o mundo, como o de um dos grandes
benfeitores da Humanidade.
Meia hora depois as portas da sala de cirurgia do Grande
Hospital de Clínicas se reabriam e Paulo Fernando, ainda inerte, voltava, em
uma carreta de rodas silenciosas, ao seu quarto de pensionista. As mãos
brancas, postas ao longo do corpo, eram como as de um morto. O rosto e a cabeça
envoltos em gaze, deixavam à mostra apenas o nariz afilado e a boca entreaberta.
E não tinha decorrido outra hora, e já o professor Platen se achava, de novo, a
bordo, deixando a recomendação de que não fosse retirada a venda, que pusera no
enfermo, antes de duas semanas.
Doze dias depois passava ele, de novo, pelo Rio, de regresso
para a Europa. Visitou novamente o operado, e deu novas ordens aos enfermeiros.
Paulo Fernando sentia-se bem. Recebia visitas, palestrava com os amigos. Mas o
resultado da operação só seria verificado três dias mais tarde, quando se
retirasse a gaze. O santo estava tão seguro do seu prestígio que ia embora sem
esperar pela verificação do milagre.
Chega, porém, o dia ansiosamente aguardado pelos médicos,
mais do que pelo doente. O Hospital encheu-se de especialistas, mas a direção
só permitiu, na sala em que se ia cortar a gaze, a presença dos assistentes do
enfermo. Os outros ficaram fora, no salão, para ver o doente, depois da cura.
Pelo braço de dois assistentes, Paulo Fernando atravessou o
salão. Daqui e dali, vinham-lhe parabéns antecipados, apertos de mão vigorosos,
que ele agradecia com um sorriso sem endereço. Até que a porta se fechou, e o
doente, sentado em uma cadeira, escutou o estalido da tesoura, cortando a gaze
que lhe envolvia o rosto.
Duas, três voltas são desfeitas. A emoção é funda, e o
silêncio completo, como o de um túmulo. O último pedaço de gaze rola no balde.
O médico tem as mãos trêmulas. Paulo Fernando, imóvel, espera a sentença final
do Destino.
- Abra os olhos! - diz o doutor.
O operado, olhos abertos, olha em torno. Olha e, em
silêncio, muito pálido, vai se pondo de pé. A pupila entra em contacto com a
luz, e ele enxerga, distingue, vê. Mas é espantoso o que vê. Vê, em redor,
criaturas humanas. Mas essas criaturas não têm vestimentas, não têm carne; são
esqueletos apenas; são ossos que se movem, tíbias que andam, caveiras que abrem
e fecham as mandíbulas! Os seus olhos comem a carne dos vivos. A sua retina,
como os raios-X, atravessa o corpo humano e só se detém na ossatura dos que a
cercam, e diante das cousas inanimadas! O médico, à sua frente, é um esqueleto
que tem uma tesoura na mão! Outros esqueletos andam, giram, afastam-se,
aproximam-se, como um bailado macabro!
De pé, os olhos escancarados, a boca aberta e muda, os
braços levantados numa atitude de pavor, e de pasmo, Paulo Fernando corre na
direção da porta, que adivinha mais do que vê, e abre-a. E o que enxerga, na
multidão de médicos e de amigos que o aguardam lá fora, é um turbilhão de
espectros, de esqueletos que marcham e agitam os dentes, como se tivessem
aberto um ossuário cujos mortos quisessem sair. Solta um grito e recua. Recua,
lento, de costa, o espanto estampado na face. Os esqueletos marcham para ele,
tentando segurá-lo.
- Afastem-se ! Afastem-se - intima, num urro que faz
estremecer a sala toda.
E, metendo as unhas no rosto, afunda-as nas órbitas, e
arranca, num movimento de desespero, os dois glóbulos ensanguentados, e tomba
escabujando no solo, esmagando nas mãos aqueles olhos que comiam carne, e que,
devorando macabramente a carne aos vivos, transformavam a vida humana, em
torno, em um sinistro baile de esqueletos...
Humberto de Campos
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