Por aqui- OUTROS
CONTOS/ [I Capítulo/ O Cego]
«A Abóbada»
Mosteiro da Batalha
614- «A ABÓBADA»
[II Capítulo/ Mestre Ouguet]
Uma das inumeráveis questões que, em nosso entender, eternamente ficarão por
decidir, é a que versa sobre qual dos dois ditados Voz do povo é voz de Deus ou
Voz do povo é voz do Diabo seja o que exprima a verdade. É indubitável que o
povo tem uma espécie de presciência inata, de instinto divinatório. Quantas
vezes, sem que se saiba como ou porquê, corre voz entre o povo que tal navio
saído do porto, tão rico de mercadorias como de esperanças, se perdeu em tal
dia e a tal hora em praias estranhas. Passa o tempo, e a voz popular realiza-se
com exacção espantosa. Assim de batalhas; assim de mil factos. Quem dá estas
notícias? Quem as trouxe? Como se derramaram? Mistério é esse que ainda ninguém
soube explicar. Foi um anjo? Foi um demónio? Foi algum feiticeiro? Mistério.
Não há, nem haverá, talvez, nunca, filósofo que o explique; salvo se tal
fenómeno é uma das maravilhas do magnetismo animal. Esse meio ininteligível de
dar solução a tudo o que se não entende é acaso a única via de resolver a
dúvida. Se o é, os sábios explicarão o que nesse momento ocorria na Igreja de
Santa Maria da Vitória.
Foi o caso: quando a cavalgada de que fizemos menção no fim do antecedente
capítulo vinha descendo a encosta sobranceira à planície do mosteiro, entre o
povo que estava dentro da igreja, impaciente já pela demora do auto, começou-se
a espalhar um sussurro, que cada vez crescia mais. O motivo dele, não era fácil
sabê-lo: nenhuma novidade ocorrera; ninguém tinha entrado ou saído. De repente,
toda aquela multidão se agitou, remoinhou pela igreja e principiou a borbulhar
pelo portal fora, como por bico de funil o líquido deitado de alto. Tinham
sabido que el-rei chegava, e todos queriam vê-lo descavalgar, porque D. João I,
plebeu por herança materna, nobre por ser filho de D. Pedro, rei eleito por uma
revolução e confirmado por cinquenta vitórias, era o mais popular, o mais amado
e o mais acatado de todos os reis da Europa. Vinha montado em uma possante
mula, e, assim mesmo, em outras os fidalgos e cavaleiros de sua casa. Trazia vestida
sobre o brial uma jórnea de veludo carmesim, monteira preta, e nebri em punho,
em maneira de caçada. Chegando à porta do mosteiro, onde o esperava já Frei
Lourenço com parte da comunidade, apeou-se de um salto e, com rosto risonho e a
mão no barrete, agradeceu sua cortesia e aquelas mostras de amor aos populares,
que gritavam, apinhados à roda dele: «Viva D. João I de Portugal; morram os
Castelhanos!», grito absurdo, mas semelhante aos vivas de todos os tempos;
porque o povo, bem como o tigre, mistura sempre com o rugido de amor o bramido
que revela a sua índole sanguinária.
Por baixo daquelas soberbas arcadas desapareceu brevemente el-rei da vista da
multidão, que tornou a sumir-se no templo para ver o auto, que não podia
tardar.
– Muito receoso estava de que vossa real senhoria nos não honrasse nosso auto;
porque o Sol não tarda a sumir-se no poente – dizia Frei Lourenço a el-rei, a
cujo lado ia para o guiar ao seu aposento.
– Bofé, mui devoto padre-prior, que, por pouco, estive a ponto de ter que levar
a vossos pés mais uma mentira, com os outros pecados, que me não falecem, se
amanhã me quisesse confessar ao meu antigo confessor – tornou-lhe el-rei,
sorrindo-se.
– E certo estou de que, entre todos os pecados de que teríeis de vos acusar,
este não fora o menos grave, e de que eu a muito custo absolveria vossa mercê –
retrucou o prior, que tinha aprendido ainda mais depressa as manhas cortesãs no
paço, do que a teologia no noviciado da sua Ordem.
– Mas, para onde me guiais, reverendíssimo prior? – disse el-rei, parando antes
de subir uma escada, para a qual Frei Lourenço o encaminhava.
– Ao vosso aposento, real senhor; por que tomeis alguma refeição e repouseis um
pouco do trabalho do caminho.
– Não foi grande o feito, para tomar repouso – acudiu el-rei –, que de Santarém
aqui é uma corrida de cavalo; muito mais para quem, em vez de cota de malha,
arnês e braçais, traz vestidos de seda. Despi-los-ei bem depressa, já que
el-rei de Castela quer jogar mais lançadas, e não vieram a conclusão de tréguas
o Mestre de Sant’Iago com o Condestável. Mas vamos, meu doutíssimo padre;
mostrai-me a Casa do Capítulo, a que mestre Ouguet acabou de pôr seu fecho e
remate. Onde está ele? Quero agradecer-lhe a boa diligência.
– Beijo-vos as mãos pela mercê – disse mestre Ouguet, que, sabendo da chegada
de el-rei, e certo de que ele desejaria ver aquela grande obra, tinha corrido
ao mosteiro, e estava entre os da comitiva. – Se quereis ver a Casa do
Capítulo, vamos para a banda da crasta.
Dizendo isto, sem cerimónia tomou a dianteira e encaminhou-se ao longo de um
dos cobertos do claustro.
David Ouguet era um irlandês, homem mediano em quase tudo; em idade, em
estatura, em capacidade e em gordura, salvo na barriga, cujos tegumentos tinham
sofrido grande distensão em consequência da dura vida que a tirania do filho de
Erin lhe fazia padecer havia bem vinte anos.
Desde muito moço que começara a
produzir grande impressão no seu espírito a invectiva do apóstolo contra os
escravos do próprio ventre, e, para evitar essa condenável fraqueza, resolvera
trazê-lo sempre sopeado. Não lhe dava tréguas; se em Inglaterra o fizera muitos
anos vergar sob o peso de dez atmosferas de cerveja, em Portugal submetia-o ao
mais fadigoso mister de canjirão permanente. Mortificava-o assim, para que não
lhe acudissem soberbas e veleidades de senhorio e dominação. De resto, David
Ouguet era bom homem, excelente homem: não fazia aos seus semelhantes senão o
mal absolutamente indispensável ao próprio interesse; nunca matara ninguém, e
pagava com pontualidade exemplar ao alfaiate e ao merceeiro. Prudente,
positivo, e prático do mundo, não o havia mais: seria capaz de se empoleirar
sobre o cadáver de seu pai para tocar a meta de qualquer desígnio ambicioso.
Com três lições de frases ocas, dava pano para se engenharem dele dois grandes
homens de estado. Tendo vindo a Portugal como um dos cavaleiros do duque de
Lencastre, procurou obter e alcançou a protecção da rainha D. Filipa, que,
havendo Afonso Domingues cegado, o fez nomear mestre das obras do Mosteiro da
Batalha, mostrando ele por documentos autênticos ter na sua mocidade subido ao
grau de mestre na sociedade secreta dos obreiros edificadores.
Esta é, em breve resumo, a história de David Ouguet, tirada de uma velha
crónica, que, em tempos antigos, esteve em Alcobaça encadernada em um volume
juntamente com os traslados autênticos das Cortes de Lamego, do Juramento de
Afonso Henriques sobre a aparição de Cristo, da Carta de feudo a Claraval, das
Histórias de Laimundo e Beroso, e de mais alguns papéis de igual veracidade e
importância que, por pirraça às nossas glórias, provavelmente os Castelhanos
nos levaram durante a dominação dos Filipes.
O lanço da crasta, fronteira ao coberto por onde ia el-rei, estava ainda por
acabar. Apenas D. João I entrou naquele magnífico recinto, olhou para lá e,
voltando-se para mestre Ouguet, disse:
– Parece-me que não vão tão aprimorados os lavores daquelas arcarias como os
destas. Que me dizeis, mestre Ouguet?
– Seguiu-se à risca nesta parte – tornou o arquitecto – o desenho geral do
edifício, feito por mestre Afonso Domingues; porque seria grave erro destruir a
harmonia desta peça: mas se vossa mercê mo permite, antes de entrardes no
Capítulo tenho alguma cousa que vos dizer acerca do que ides presenciar.
– Falai desassombradamente – respondeu el-rei –, que eu vos escuto.
– Tomei a ousadia – prosseguiu mestre Ouguet – de seguir outro desenho no
fechar da imensa abóbada que cobre o Capítulo. O que achei na planta geral
contrastava as regras da arte que aprendi com os melhores mestres de pedraria.
Era, até, impossível que se fizesse uma abóbada tão achatada, como na primitiva
traça se delineou: eu, pelo menos, assim o julgo.
– E consultastes o arquitecto Afonso Domingues, antes de fazer essa mudança no
que ele havia traçado? – interrompeu el-rei.
– Por escusado o tive – replicou David Ouguet. – Cego, e por isso inabilitado
para levar a cabo a edificação, porfiaria que o seu desenho se pode executar,
visto que hoje ninguém o obriga a prová-lo por obras. Sobra-lhe orgulho:
orgulho de imaginador engenhoso. Mas que vale isso sem a ciência, como dizia o
venerável mestre Vilhelmo de Wykeham? Menos engenho e mais estudo, eis do que
havemos mister.
Dizendo isto, o arquitecto metera ambas as mãos no cinto, estendera a perna
direita excessivamente empertigada e, com a fronte erecta, volvera os olhos
solene e lentamente para os circunstantes.
– Mestre Ouguet – acudiu el-rei, com aspecto severo –, lembrai-vos de que
Afonso Domingues é o maior arquitecto português. Não entendo de vossas
distinções de ciência e de engenho: sei só que o desenho de Santa Maria da
Vitória causa assombro a vossos próprios naturais, que se gabam de ter no seu
país os mais afamados edifícios do Mundo: e esse mestre Afonso, de quem vós
falais com pouco respeito, foi o primeiro arquitecto da obra que a vosso cargo
está hoje.
– Vossa mercê me perdoe – tornou mestre Ouguet, adocicando o tom orgulhoso com
que falara. – Longe de mim menoscabar mestre Domingues: ninguém o venera mais
do que eu; mas queria dar a razão do que fiz, seguindo as regras do mui
excelente mestre Vilhelmo de Wykeham, a quem devo o pouco que sei, e cuja obra
da Catedral de Winchestria tamanho ruído tem feito no Mundo.
Com este diálogo chegou aquela comitiva ao portal que dava para a Casa do
Capítulo. Frei Lourenço Lampreia, como dono da casa, correu o ferrolho com
certo ar de autoridade, e encostado ao umbral cortejou a el-rei no momento de
entrar e aos mais fidalgos e cavaleiros que o acompanhavam. Mestre Ouguet, como
pessoa também principalíssima naquele lugar, colocou-se junto do umbral
fronteiro, repetindo com aspecto sobranceiro-risonho as mesuras do mui devoto
padre-prior.
Quando el-rei entrou dentro daquela espantosa casa, apenas através da grande
janela que a alumia entrava uma luz frouxa, porque o Sol estava no fim de sua
carreira, e o tecto profundo mal se divisava sem se afirmar muito a vista.
Mestre Ouguet ficara à porta, mas Frei Lourenço tinha entrado.
– Reverendo prior – disse el-rei, voltando-se para Frei Lourenço –, vim tarde
para gozar desta maravilhosa vista: vamos ao auto da adoração, e amanhã
voltaremos aqui a horas de sol.
E seguiu para a banda da sacristia, cuja porta lhe foi abrir o prior.
Mestre Ouguet entrou na Casa do Capítulo, quando já os últimos cavaleiros do
séquito real iam saindo pelo lado oposto, caminho da igreja. Com as mãos
metidas no cinto de couro preto que trazia, e o passo mesurado, o arquitecto
caminhou até o meio daquela desconforme quadra. O som dos passos dos cavaleiros
tinha-se desvanecido, e mestre Ouguet dizia consigo, olhando para a porta por
onde eles haviam passado:
– Pobres ignorantes! Que seria o vosso Portugal sem estrangeiros, senão um país
sáfaro e inculto? Sois vós, homens brigosos, capazes dos primores das artes ou,
sequer, de entendê-los?... Lá vão, lá vão os frades celebrar um auto! Não serei
eu que assista a ele: eu que vi os mistérios de Covêntria e de Widkirk!
Miseráveis selvagens, antes de tentardes representar mistérios, fora melhor que
mandásseis vir alguns irmãos da Sociedade dos Escrivães de Paróquia de
Londres(4), que vos ensinassem os verdadeiros mornos, ademanes e trejeitos
usados em semelhantes autos.
Mestre Ouguet estava embebido neste mudo solilóquio em louvor da nação que lhe
dava de comer, e, o que deveria pesar-lhe ainda mais na consciência, da nação
que lhe dava de beber, quando, erguendo casualmente os olhos para a maciça
abóbada que sobre ele se arqueava, fez um gesto de indizível horror e, como
doido, correu a bom correr pela crasta solitária, apertando a cabeça entre as
mãos, e gritando a espaços:
– Oh, mal-aventurado de mim!
Alexandre Herculano
(Amanhã III Capítulo/ O Auto)
Poet'anarquista
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