«Vivo Agora Aqui»
Quarto em Arles/ Van Gogh
606- «VIVO AGORA AQUI»
Vivo agora aqui, num quarto fechado, a tua roupa, todos os
teus
objectos caem sobre mim como trovões. Há um terror teimoso
que me prende a estas gavetas cheias, já me deixei fulminar
numa noite de onde não me queria levantar, e tu à mesma
dormindo,
sem dares por nada. A partir daí a minha testa de zombi
chocou
contra vidros, paredes e jarras de flores, é testa dura que
não se parte.
Foi missa ligeira a que assistimos sem crer, mais um dos
nossos
mortos ia a enterrar, cumprir o dever de aparecer por ali e depois,
deitados, nós dois tão afastados, tão mortos. Ver-te no
cinzeiro
fora do quarto, de calças oscilantes, arrumando na distância
Ios teus assuntos práticos, é ver-me nisso tudo que perdi e
sentir-me
frio, frio, cada vez mais frio. Tenho andado a pensar no
nosso caso
e - tirando da estante um livro - está tudo aqui bem claro,
disse.
Nunca serei para ti a Grande Mãe, esse maníaco corpo onde te
queres
enroscar e buscas protecção para os temores da noite e de Deus.
Não te acompanharei nessa viagem sexual até à exausta
escuridão
do infinito, não contes comigo para cobrar impostos à tua
amoralidade,
nem penses que me comove a tua pena, a tua dor, o teu
sofrimento.
Os teus objectos, todas as tuas coisas, os teus sapatos, a
tua tristeza,
já não são bem coisas, são palavras que eu levaria comigo
para outra casa.
Serei eu quem me lembro de ter sido? É uma questão que só
ocorre
num quarto fechado de paredes desiguais, quando a memória
não é senão um facto igual a tantos outros e o teu cordão de
histórias
repete datas - num dia de Setembro, por exemplo, amá-mo-nos.
Dez dias fora. Ao longo dos dez dias vou sentindo cada vez
mais
escuridão e contudo no dia marcado para o teu regresso há
tanta alegria
na minha boca (mesmo se fechada a boca põe os lábios
de outra maneira, deixa entrever metade dos seus dentes) que
só me apetece escrever um enorme e ridículo poema épico.
Helder Moura Pereira
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