«O Achado dos Irmãos Naud»
Conto de Georges Simenon
607- «O ACHADO DOS IRMÃOS NAUD»
(I Capítulo)
O céu mal começava a se
colorir quando Jules, o mais velho dos irmãos Naud, surgiu no convés da barca,
primeiro a cabeça, depois os ombros, por fim o grande corpo desengonçado.
Coçando os cabelos cor de linho ainda não penteados, ele olhou para as
comportas, para o cais de Jemmapes à esquerda, o cais de Valmy à direita, e
alguns minutos se passaram, o tempo de enrolar um cigarro e fumá-lo no frescor
da manhã, antes que uma lâmpada se acendesse no barzinho da esquina da Rue des
Récollets. Devido ao início do dia, a fachada parecia de um amarelo mais áspero
que de costume.
Popaul, o proprietário, sem colarinho e também desgrenhado, foi
até a calçada para abrir as persianas. Naud atravessou o passadiço e cruzou o
cais enrolando o segundo cigarro. Quando seu irmão Robert, quase tão grande e
comprido, emergiu por sua vez da escotilha, pôde ver, no bar iluminado, Jules
escorado ao balcão e o proprietário colocando um pouco de álcool em seu café.
Robert parecia esperar sua vez. Enrolava um cigarro com os mesmos gestos do
irmão. Quando o mais velho saiu do bar, o mais jovem desceu da barca, de forma
que os dois se cruzaram no meio da rua. – Vou ligando o motor – anunciou Jules.
Havia dias em que não trocavam mais de dez frases desse tipo. O barco se
chamava Os dois irmãos. Tinham casado com irmãs gémeas, e as duas famílias
viviam a bordo.
Robert tomou o lugar do mais velho no bar de Popaul, que
cheirava a café com álcool. – Belo dia – disse Popaul, curto e grosso. Naud se
contentou em olhar pela janela o céu que se tingia de rosa. As chaminés acima
das casas eram a primeira coisa na paisagem a ganhar vida e cor, enquanto nos
telhados de ardósia ou telha, e em algumas pedras do calçamento, o frio que as
últimas horas da noite cobrira com uma fina camada de gelo começava a
desaparecer. Ouviu-se um ronco de diesel. A parte de trás da barca cuspiu, aos
solavancos, uma fumaça preta. Naud colocou o dinheiro sobre o balcão, tocou o
boné com a ponta dos dedos e cruzou de novo o cais. O guarda das comportas, de
uniforme, chegara ao local e preparava a abertura delas. Ouviam-se passos,
muito longe, no cais de Valmy, mas ainda não se via ninguém. Vozes de crianças
chegavam de dentro do barco, onde as mulheres preparavam o café. Jules
reapareceu no convés, foi se debruçar na parte de trás da barca, com o cenho
franzido, e seu irmão adivinhou o que não ia bem. Eles tinham carregado pedra
de cantaria em Beauval, no marco 48 do Canal de l’Ourcq. Como quase sempre,
haviam embarcado algumas toneladas a mais e, já na véspera, ao saírem da bacia
de La Villette para entrar no Canal Saint-Martin, tinham roçado o fundo. Em Março, geralmente, não faltava água. Naquele ano, não chovia há dois meses, e a
água do canal estava sendo poupada. As comportas se abriram. Jules se instalou
na roda do leme. Seu irmão desceu à terra para soltar as amarras. A hélice
começou a girar e, como temiam, remexeu uma lama espessa que subiu à superfície
formando grandes bolhas. Apoiado com todo o seu peso numa vara, Robert se
esforçava para afastar da margem a parte dianteira do barco. A hélice parecia
girar no vazio. O guarda das comportas, acostumado, esperava pacientemente,
batendo as mãos para se esquentar. Houve um choque, depois um barulho
preocupante de engrenagem, e Robert Naud se virou para o irmão, que desligou o
motor. Nenhum dos dois sabia o que acontecera. A hélice não tocara o fundo,
pois estava protegida por uma parte do leme. Alguma coisa devia ter enganchado
nela, talvez uma velha amarra, como as que rolam pelo fundo dos canais e, se
fosse aquilo, seria difícil retirá-la. Robert, munido de sua vara, dirigiu-se
para a parte de trás, se debruçou, tentou, na água sem transparência, tocar a
hélice, enquanto Jules ia buscar um arpão menor e Laurence, sua mulher,
colocava a cabeça pela escotilha. – O que foi? – Não sei. Eles começaram, em
silêncio, a manobrar os dois arpões em volta da hélice submersa e, depois de
alguns minutos, o guarda das comportas, Dambois, que todos chamavam de Charles,
foi se postar no cais para vê-los trabalhar. Não fez perguntas.
Contentou-se em
fumar silenciosamente seu cachimbo, cujo tubo quebrado consertara com um fio.
Alguns pedestres, apressados, desciam para a République, e enfermeiras de
uniforme se dirigiam ao Hospital Saint-Louis. – Pegou? – Acho que sim. – É um
cabo? – Não sei. Jules Naud pegara alguma coisa com seu gancho e, depois de
certo tempo, o objecto cedeu, novas bolhas de ar subiram à superfície. Com
vagar, ele retirou sua vara de dentro d’água e, quando o gancho chegou perto da
superfície, viram aparecer um estranho pacote atado em papel jornal, que
arrebentara. Era um braço humano, inteiro, do ombro à mão, que na água ficara
com uma cor lívida e uma consistência de peixe morto. Depoil, o cabo do 3o
Batalhão, no extremo fim do cais de Jemmapes, encerrava seu serviço da noite
quando a longa silhueta do mais velho dos irmãos Naud apareceu no marco da porta.
– Estou acima da comporta da Rue des Récollets com o barco Os dois irmãos. A
hélice trancou quando a ligamos e retiramos dela um braço de homem. Depoil, que
há quinze anos trabalhava no 10o distrito, teve a reacção que teriam todos
os policiais que ficariam sabendo do caso.
– De homem? – repetiu incrédulo. –
De homem, sim. A mão está coberta de pelos escuros e...
Periodicamente, um
cadáver era retirado do Canal Saint-Martin, quase sempre devido à movimentação
da hélice de algum barco. Na maioria das vezes, o cadáver estava inteiro, e às
vezes se tratava de um homem, um velho mendigo, por exemplo, que, ao beber
demais, caíra no canal, ou um marginal morto por um bando rival com uma facada.
Corpos cortados em pedaços não eram raros, dois ou três por ano, em média, mas
invariavelmente, até onde a memória do cabo Depoil ia, eram de mulheres. De
imediato sabia-se onde procurar. Nove em cada dez vezes, se não mais, eram
prostitutas de baixo escalão, daquelas vistas à noite rondando os terrenos
baldios. “Crime sádico”, concluía o relatório. A polícia conhecia a fauna do
bairro, tinha listas actualizadas dos maus elementos e indivíduos suspeitos.
Bastavam alguns dias, em geral, para a prisão do autor de um delito qualquer,
fosse um roubo doméstico ou um ataque à mão armada. Mas era raro colocar as
mãos num daqueles assassinos. – Você o trouxe? – perguntou Depoil. – O braço? –
Onde o deixou? – No cais. Podemos ir embora? Precisamos descer ao cais do
Arsenal, onde somos esperados para descarregar. O cabo acendeu um cigarro,
começou por anunciar o incidente à central da polícia, depois pediu o número da
casa do comissário do bairro, o sr. Magrin. – Desculpe acordá-lo. Alguns
marinheiros acabaram de retirar um braço humano do canal... Não! Um braço de
homem... Foi o que me perguntei também...
Como?... Ele está aqui, sim... Vou
perguntar... Ele se virou para Naud, sem largar o aparelho. – Ele parece ter
ficado muito tempo dentro d’água? Naud, o mais velho, coçou a cabeça. – Depende
do que for muito tempo. – Está muito decomposto? – Não dá para dizer. Na minha
opinião, pode estar há dois ou três dias... O cabo repetiu no telefone: – Dois
ou três dias...
Georges Simenon
Georges Simenon
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