sábado, 5 de setembro de 2015

OUTROS CONTOS

«O Achado dos Irmãos Naud», por Georges Simenon.

«O Achado dos Irmãos Naud»
Conto de Georges Simenon

607- «O ACHADO DOS IRMÃOS NAUD»

(I Capítulo) 

O céu mal começava a se colorir quando Jules, o mais velho dos irmãos Naud, surgiu no convés da barca, primeiro a cabeça, depois os ombros, por fim o grande corpo desengonçado. Coçando os cabelos cor de linho ainda não penteados, ele olhou para as comportas, para o cais de Jemmapes à esquerda, o cais de Valmy à direita, e alguns minutos se passaram, o tempo de enrolar um cigarro e fumá-lo no frescor da manhã, antes que uma lâmpada se acendesse no barzinho da esquina da Rue des Récollets. Devido ao início do dia, a fachada parecia de um amarelo mais áspero que de costume. 

Popaul, o proprietário, sem colarinho e também desgrenhado, foi até a calçada para abrir as persianas. Naud atravessou o passadiço e cruzou o cais enrolando o segundo cigarro. Quando seu irmão Robert, quase tão grande e comprido, emergiu por sua vez da escotilha, pôde ver, no bar iluminado, Jules escorado ao balcão e o proprietário colocando um pouco de álcool em seu café. Robert parecia esperar sua vez. Enrolava um cigarro com os mesmos gestos do irmão. Quando o mais velho saiu do bar, o mais jovem desceu da barca, de forma que os dois se cruzaram no meio da rua. – Vou ligando o motor – anunciou Jules. Havia dias em que não trocavam mais de dez frases desse tipo. O barco se chamava Os dois irmãos. Tinham casado com irmãs gémeas, e as duas famílias viviam a bordo. 

Robert tomou o lugar do mais velho no bar de Popaul, que cheirava a café com álcool. – Belo dia – disse Popaul, curto e grosso. Naud se contentou em olhar pela janela o céu que se tingia de rosa. As chaminés acima das casas eram a primeira coisa na paisagem a ganhar vida e cor, enquanto nos telhados de ardósia ou telha, e em algumas pedras do calçamento, o frio que as últimas horas da noite cobrira com uma fina camada de gelo começava a desaparecer. Ouviu-se um ronco de diesel. A parte de trás da barca cuspiu, aos solavancos, uma fumaça preta. Naud colocou o dinheiro sobre o balcão, tocou o boné com a ponta dos dedos e cruzou de novo o cais. O guarda das comportas, de uniforme, chegara ao local e preparava a abertura delas. Ouviam-se passos, muito longe, no cais de Valmy, mas ainda não se via ninguém. Vozes de crianças chegavam de dentro do barco, onde as mulheres preparavam o café. Jules reapareceu no convés, foi se debruçar na parte de trás da barca, com o cenho franzido, e seu irmão adivinhou o que não ia bem. Eles tinham carregado pedra de cantaria em Beauval, no marco 48 do Canal de l’Ourcq. Como quase sempre, haviam embarcado algumas toneladas a mais e, já na véspera, ao saírem da bacia de La Villette para entrar no Canal Saint-Martin, tinham roçado o fundo. Em Março, geralmente, não faltava água. Naquele ano, não chovia há dois meses, e a água do canal estava sendo poupada. As comportas se abriram. Jules se instalou na roda do leme. Seu irmão desceu à terra para soltar as amarras. A hélice começou a girar e, como temiam, remexeu uma lama espessa que subiu à superfície formando grandes bolhas. Apoiado com todo o seu peso numa vara, Robert se esforçava para afastar da margem a parte dianteira do barco. A hélice parecia girar no vazio. O guarda das comportas, acostumado, esperava pacientemente, batendo as mãos para se esquentar. Houve um choque, depois um barulho preocupante de engrenagem, e Robert Naud se virou para o irmão, que desligou o motor. Nenhum dos dois sabia o que acontecera. A hélice não tocara o fundo, pois estava protegida por uma parte do leme. Alguma coisa devia ter enganchado nela, talvez uma velha amarra, como as que rolam pelo fundo dos canais e, se fosse aquilo, seria difícil retirá-la. Robert, munido de sua vara, dirigiu-se para a parte de trás, se debruçou, tentou, na água sem transparência, tocar a hélice, enquanto Jules ia buscar um arpão menor e Laurence, sua mulher, colocava a cabeça pela escotilha. – O que foi? – Não sei. Eles começaram, em silêncio, a manobrar os dois arpões em volta da hélice submersa e, depois de alguns minutos, o guarda das comportas, Dambois, que todos chamavam de Charles, foi se postar no cais para vê-los trabalhar. Não fez perguntas. 

Contentou-se em fumar silenciosamente seu cachimbo, cujo tubo quebrado consertara com um fio. Alguns pedestres, apressados, desciam para a République, e enfermeiras de uniforme se dirigiam ao Hospital Saint-Louis. – Pegou? – Acho que sim. – É um cabo? – Não sei. Jules Naud pegara alguma coisa com seu gancho e, depois de certo tempo, o objecto cedeu, novas bolhas de ar subiram à superfície. Com vagar, ele retirou sua vara de dentro d’água e, quando o gancho chegou perto da superfície, viram aparecer um estranho pacote atado em papel jornal, que arrebentara. Era um braço humano, inteiro, do ombro à mão, que na água ficara com uma cor lívida e uma consistência de peixe morto. Depoil, o cabo do 3o Batalhão, no extremo fim do cais de Jemmapes, encerrava seu serviço da noite quando a longa silhueta do mais velho dos irmãos Naud apareceu no marco da porta. – Estou acima da comporta da Rue des Récollets com o barco Os dois irmãos. A hélice trancou quando a ligamos e retiramos dela um braço de homem. Depoil, que há quinze anos trabalhava no 10o distrito, teve a reacção que teriam todos os policiais que ficariam sabendo do caso. 

– De homem? – repetiu incrédulo. – De homem, sim. A mão está coberta de pelos escuros e... 

Periodicamente, um cadáver era retirado do Canal Saint-Martin, quase sempre devido à movimentação da hélice de algum barco. Na maioria das vezes, o cadáver estava inteiro, e às vezes se tratava de um homem, um velho mendigo, por exemplo, que, ao beber demais, caíra no canal, ou um marginal morto por um bando rival com uma facada. Corpos cortados em pedaços não eram raros, dois ou três por ano, em média, mas invariavelmente, até onde a memória do cabo Depoil ia, eram de mulheres. De imediato sabia-se onde procurar. Nove em cada dez vezes, se não mais, eram prostitutas de baixo escalão, daquelas vistas à noite rondando os terrenos baldios. “Crime sádico”, concluía o relatório. A polícia conhecia a fauna do bairro, tinha listas actualizadas dos maus elementos e indivíduos suspeitos. Bastavam alguns dias, em geral, para a prisão do autor de um delito qualquer, fosse um roubo doméstico ou um ataque à mão armada. Mas era raro colocar as mãos num daqueles assassinos. – Você o trouxe? – perguntou Depoil. – O braço? – Onde o deixou? – No cais. Podemos ir embora? Precisamos descer ao cais do Arsenal, onde somos esperados para descarregar. O cabo acendeu um cigarro, começou por anunciar o incidente à central da polícia, depois pediu o número da casa do comissário do bairro, o sr. Magrin. – Desculpe acordá-lo. Alguns marinheiros acabaram de retirar um braço humano do canal... Não! Um braço de homem... Foi o que me perguntei também... 

Como?... Ele está aqui, sim... Vou perguntar... Ele se virou para Naud, sem largar o aparelho. – Ele parece ter ficado muito tempo dentro d’água? Naud, o mais velho, coçou a cabeça. – Depende do que for muito tempo. – Está muito decomposto? – Não dá para dizer. Na minha opinião, pode estar há dois ou três dias... O cabo repetiu no telefone: – Dois ou três dias...

Georges Simenon

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