«A Morte Amorosa»
O Pesadelo/ Henri Fuseli
649- «A MORTE AMOROSA»
[Excerto]
Você me pergunta, irmão, se amei; respondo que sim. É uma
história singular e terrível, e, embora tenha sessenta e seis anos, mal ouso
tocar nas cinzas dessa lembrança. Não quero lhe negar nada, mas não contaria
tal história a alguém menos experiente. São acontecimentos tão estranhos que
custo a acreditar que tenham ocorrido. Durante mais de três anos fui vítima de
uma ilusão singular e diabólica. Eu, pobre pároco de aldeia, vivi em sonhos
(Deus queira que tenha sido um sonho!), durante todas as noites, uma vida de
danado, uma vida de mundano, de Saradanapalo. Um único olhar demasiado
complacente lançado sobre uma mulher quase me custou a perda da minha alma;
mas, finalmente, com a ajuda de Deus e do meu santo padroeiro, consegui
expulsar o espírito maligno que havia se apossado de mim. Minha vida
confundira-se com uma existência nocturna completamente diferente. De dia, eu
era um sacerdote do Senhor, casto, ocupado com a oração e com as coisas santas;
à noite, mal fechava os olhos, transformava-me num jovem senhor, grande
conhecedor de mulheres, vinhos, cães e cavalos, que jogava dados e blasfemava;
e quando me acordava, ao nascer do sol, parecia ao contrário que adormecia, e
que sonhava ser padre.
Dessa vida sonâmbula restou-me a lembrança de objectos e
palavras contra as quais não posso me defender, e, apesar de jamais ter
transposto as paredes do meu presbitério, quem me ouvisse, diria que sou um
homem que experimentou de tudo e que, voltando do mundo, tomou o hábito para
terminar uma existência demasiado agitada no seio de Deus, e não um humilde
seminarista que envelheceu numa paróquia ignorada, escondida no fundo de um
bosque, sem nenhum contacto com as coisas do mundo.
Sim, amei como ninguém amou neste mundo, com um amor
insensato e furioso, tão violento que me espantei que o meu coração não tenha
explodido. Ah! Que noites! Que noites!
Théophile Gautier
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