«Ele e Ela»
Esboço/ Gustave Caillebotte
650- «ELE E ELA»
A Júlio César Machado
Meu velho amigo: - Aqui tens a história que ontem me contou,
ao separarmo-nos de ti depois de jantarmos juntos, aquele sujeito que tu
conheces.
* * *
Eu tinha chegado de um porto de França em companhia de uma
alemã, que entrevira em Paris, e com quem me encontrei depois a bordo do
paquete que tinha de nos trazer ao Tejo. Era uma senhora de maneiras muito
graves e de fisionomia perfeitamente distinta, sincera e despresumida, como
quase toda a gente dessa bela raça germânica, que floresce em todos os climas
como na sua pátria, e aceita toda a convivência como a da sua família.
Desembarcámos no Terreiro do Paço. Ela vinha tão abatida e
alquebrada pelos efeitos de uma viagem tempestuosa no grosso mar da Gasconha e
da Mancha, que eu determinei-me, contra os usos do país a que me recolhia, a
oferecer-lhe o meu braço para passearmos por um momento à réstia vivificadora
do sol de Lisboa no mês de Janeiro.
Soube então que a minha simpática dama se encontrava só na
capital, e tinha de partir para o Porto, assim como eu, no dia imediato.
Falámos por algum tempo, ela das suas saudades, eu das minhas recordações, até
que a acompanhei numa carruagem ao hotel de Bragança, onde ficámos de reunir-nos
na manhã seguinte, para seguir no caminho de ferro para a cidade das camélias.
À hora aprazada fui encontrar-me efectivamente com ela e
achei-a pronta para partir, radiante de saúde, vestida com um trajo de
primavera, tendo um ramo de flores junto do rolo do seu édredon, e mostrando-se
maravilhada da suave brandura do clima e da engenhosa convenção que levava os
habitantes a usarem paletot, com o fim de fazerem acreditar uns aos outros e a
quem viesse de fora que também por cá se tinha inverno.
Saímos a pé pelo braço um do outro, e fomos almoçar a um
café, fazendo horas para chegar a Santa Apolónia a tempo de entrar no trem e
partir.
Achámo-nos no vagão, acompanhados unicamente de um
respeitável ancião, o sr. S. M., que lia filosoficamente um número do Diário de
Notícias no canto do compartimento oposto àquele em que nós ficámos um defronte
do outro.
Estava com efeito uma bela e donosa manhã sem calor nem
frio, sem nuvens no céu, sem lama na terra e sem pó no ar.
De um lado a frescura
das laranjeiras e o reluzente viço das hortas que bordam a estrada até o
Carregado, e do outro o límpido cristal do Tejo em plena majestade iam-nos
acompanhando como um sorriso e um afago da natureza em hora de bom humor.
A minha companheira de viagem tinha remoçado cinco anos com
este brando acolhimento do amorável país do seu exílio. Estava buliçosa como um
estudantinho, tinha demolhado o seu ramalhete à força de o respirar com
frenesi, até deixar ver toda a alvura dos seus pequeninos dentes com a infantil
alegria de uma felicidade inteiramente desanuviada, e era muito bonita, assim
contente e alegre.
Pelas quatro horas da tarde estávamos perto de Aveiro e
principiava a desenrolar-se aos nossos olhos a esplêndida paisagem do norte de
Portugal. As campinas estavam virentes e viçosas como em plena primavera, o sol
inclinava-se para o ocaso entre uns ténues vapores de opala e de ouro,
respirava-se a brisa fragrante das ondas e havia no ar como um fluido de
melancolia e de saudade. Era a plácida morbidez de uma tela de Correggio.
A jovem alemã, que eu tinha defronte de mim, havia tirado o
chapéu e recostado para trás a sua bela cabeça, aureolada por uma espécie de
vaga irradiação proveniente do azul dos seus olhos e da expressão dos seus
lábios arqueados num sorriso triste como o dos sonhadores, dos namorados e dos
poetas.
Eu atirei fora um charuto que ela me permitira acender, e
perguntei-lhe como lhe parecia a paisagem que íamos vendo.
- Ideal murmurou ela, quase num suspiro.
Este laconismo deixou-me entender que estava com uma
verdadeira apreciadora do belo, uma dessas criaturas privilegiadas em quem a
contemplação dos grandes espectáculos da natureza entumece o coração e supita a
palavra fazendo bailar as lágrimas nos olhos. Entendi que não devia perturbar o
seu pensamento, a sua ilusão talvez, ou por ventura o seu êxtase, e pus-me a
olhar silenciosamente para ela.
Ao cabo porém de meia hora não pude resistir à tentação de
lhe dizer:
- Que horas estas para dois entes que se amassem!
- É verdade, confirmou ela.
- Como deve ser bom, nestes momentos em que a saudade vaga e
indefinida nos inunda como um banho de recordações, de esperanças e de afectos,
ter junto de nós um honrado e leal coração que nos entenda e nos ame, e poder a
gente casar ternamente com o hino do crepúsculo, o hino da sua alma!
Dá-me
licença que a ame...
Ela fitou-me com um olhar penetrante. - ... por cinco
minutos? terminei eu - ou por um quarto de hora?... daqui até se pôr o sol? No
fim desse prazo recebe cada um os protestos que adiantou, retira as juras que
fez, e fica senhor de si como dantes. É como quem joga a tentos.
- Assim, pode ser, disse-me ela rindo, mas verá que se
aborrece antes de chegar ao meio da partida...
- Porquê?
- Porque não faz uma
vasa.
- Quem sabe? Conforme o lado para que ficarem os trunfos.
- Demos então as
cartas.
- Eu principio. Conto
trinta anos de idade, sou pobre e tenho o coração ocupado, mas deu-me Deus um
génio apaixonado. . . sincero! Entendo eu que uns dedos fininhos, cor-de-rosa,
elegantemente tratados e perfumados são feitos para receber de quando em quando
um beijo; que um olhar inteligente e suave deve descer ao fundo da nossa alma,
se nós temos uma alma pura, e dessedentar- se nela como uma pomba em um lago;
que a elegância, o espírito e a educação de uma mulher amável devem em todo o
tempo receber o culto da admiração e do reconhecimento de um homem de bem,
porque é certamente para os homens de bem que Deus permitiu a amabilidade às
mulheres honestas...
- Mas é amizade o que me está dizendo e o que eu mais prezo!
E a única pessoa que conheço em Portugal, e já ninguém poderá agora evitar que
seja o meu primeiro amigo... Vou-lhe fazer também as minhas confidências. Tenho
contraído grandes encargos de coração. Acredita que seja possível amar-se por
cartas muito tempo?
- O amor em cartas, objectei-lhe eu, é como um jantar de que
não nos oferecem senão a lista. Nada obsta a que seja o mais sumptuoso, mas não
é por certo o mais nutriente ... No entanto como em tais banquetes dizem que é
a imaginação quem prepara as iguarias mais delicadas...
- Eu creio que sou amada...
- Por alguém que está longe! a quem escreveu esta manhã uma
carta de consolação, de resignação e de esperança... uma carta que dentro de
oito dias o há-de fazer chorar, e que ele há-de trazer por muito tempo junto do
coração como uma santa relíquia... E em troca desta carta há-de mandar-lhe
outra escrita ardentemente com as lágrimas do coração e com o sangue das veias,
a qual, antes e depois de se saber de cor, será lida e relida todos os dias
entre a oração da manhã e o piedoso beijo deposto no retrato de sua mãe. Veja
que ideal ventura! o prazer de amar sem ter do amor o que há nele mais
impertinente e mais prosaico: as imperfeições que a convivência descobre e
multiplica! E, depois, dentro de um ou dois anos, o prazer de tornarem a
ver-se! Aparecer-lhe mais bela, porque a saudade e a esperança poetizam,
melancolizam, tresdobram a beleza; e encontrá-lo mais velho, e portanto mais
expressivamente homem e mais expressivamente simpático! tê-lo finalmente ao seu
lado...
(E, nisto, passei para o lado dela, e sentei-me no mesmo
sofá em que ela se achava.)
- Ouvi-lo, continuei eu, ouvi-lo falar-lhe da ausência e do
futuro comum, pondo-lhe aos pés o seu amor, o seu nome e a sua liberdade! Possa
Deus reuni-los cedo e não o matar a ele de felicidade na hora suprema em que a
vir, sendo-lhe permitido, em paga do seu amor constante, beijá-la na fronte
longamente e inebriar-se com a certeza de ser amado pela mulher mais adoravelmente
meiga, mais terna e mais simpática!
Chegado a este ponto, e falando-lhe já, insensivelmente, com
muito mais veemência e afogo do que se emprega para conversar, peguei-lhe nas
pontas dos dedos, levantei a mão que ela tinha caída no regaço e pousei os
lábios no debrum da luva.
Ela então levantou o cabazinho de viagem, que estava
colocado entre nós ambos, segurou-o nos joelhos, desafivelou a correia que lhe
segurava a tampa, e dando-me uma laranja que tirou de dentro, disse-me com a
gravidade indulgente e bondosa de um enfermeiro ou de um médico:
- Prescrevo-lhe o regime refrigerante.
- Por Deus, me parece que estava precisando da receita!
tornei-lhe eu, pondo-me a rir.
E, voltando para o lugar que primeiramente ocupava defronte
dela, principiei a descascar a laranja e a morder com apetite nesse fruto, que
não era por certo o fruto proibido.
- Sim, senhor… ia-me
dizendo no entanto a minha graciosa companheira, baralhou bem as cartas e
arranjou bom jogo!
- Ah! então confessa . . .
- Confesso-lhe que sim.
- Posso oferecer-lhe da minha dieta? preguntei eu, dando-lhe
metade da laranja.
Ela separou um gomo.
- Quando acabar, podemos continuar.
- Continuo imediatamente, cortei eu logo, debruçando-me na
portinhola para cuspir uma pevide que tinha nos beiços.
Senão quando a corrente do ar cortado pela locomotiva
levou-me da cabeça o meu chapéu.
Preciso abrir para este objecto perdido um parêntese, de
cuja substância Deus me livre que se soubesse! Tinha sido feito em Paris por -
Pinaud & Amour - esse bonito chapéu tão flexível, que se meteria dentro de
um sobrescrito! Era de casimira azul como a minha jaqueta de viagem, forrado de
azul-claro com debrum pespontado de seda preta. O próprio Amour me tinha dito
ao vender-mo por vinte francos - Cela vous coiffc à merveille - e eu tinha tido
a criminosa fraqueza de o acreditar! Aquele chapéu não era para mim somente um
chapéu, era um elmo e um arnês. Não me considerava simplesmente coberto quando
o punha, considerava-me também armado. Queres que te confesse a verdade? Eu não
me teria nunca atrevido a apertar os dedos da minha alemã, nem a beijar-lhe
apaixonadamente a luva, se o não trouxesse na cabeça, e era realmente muito
mais com o talento dos srs. Pinaud & Arnour, do que com o meu próprio, que
eu contava para me fazer passar junto dela por um homem de espírito !
Os cabelos despenteados pelo vento tinham-me caído para cima
dos olhos; compreendi que estava ridículo, não podendo esconder este ar
sumamente tolo de todo o homem a quem de repente desaparece o chapéu na asa de
um tufão.
Ela ria às gargalhadas, as quais me caíam na cabeça... na
cabeça não - pelas costas abaixo! - como torrentes de água nevada.
O sr. S. M., de quem confesso que me tinha completamente
esquecido, e que continuava sempre a sua viagem no nosso compartimento,
apiedou-se de mim, e, lançando generosamente a mão à rede da carruagem, baixou
nos seus braços uma caixa de chapéu do tamanho de um gasómetro, e disse-me
assim:
- Tenho aqui com que lhe valer!...
Entendi que rabearia um castor inteiro para fora daquela
toca ambulante, e ia conter com um gesto a benevolência do meu delicado
companheiro, quando ele me observou, rebatendo o meu susto com um sorriso:
- Não é o que cuida! Está cá dentro o objecto que lhe
convém.
E dizendo isto, sacou da chapeleira, suspenso por uma
aparatosa borla de retrós preto, um barrete de veludo ornado de
amores-perfeitos bordados a matiz.
Hesitei por um instante entre aceitar o barrete, o que era
hediondo, e confessar-lhe medo, o que era pueril. Revesti-me finalmente de todo
o meu valor e estendi a dextra para o inocente carapuço, que estava sendo na
mão do sr. S. M. gládio da suprema justiça, alfange exterminador da minha
pecadora vaidade. Fechei em seguida os olhos como quem vai lançar-se em um
abismo, peguei no barrete com ambas as mãos, levantei-o à altura do rosto,
deixando-lhe a borla pendente, entreabri os olhos e vi o monstro boquiaberto...
Tornei logo a cerrar as pálpebras, e meti a minha infeliz cabeça no seu novo invólucro!
Estava consumado.
A minha gentil companheira deu-me o golpe de misericórdia
inclinando-se para mim, pegando-me em ambas as mãos e dizendo-me entre duas
gargalhadas:
Valor! acredite... que o amo. Respondeu-lhe o silêncio da
morte. O barrete de veludo, circundado do matiz dos amores-perfeitos, cuja
borla me caía como o crepe funerário de uma lança ao longo da orelha esquerda,
era o túmulo e o epitáfio das minhas ilusões dêsse formoso dia!
Ser amado, tendo na cabeça um barretinho de veludo com sua
borlazinha ao lado, pedindo para cima da outra orelha a pena de pato ramalhuda
e majestosa, insígnia burocrática do guarda-mor pontual e do tabelião zeloso!
Ser amado, e ouvi-lo assim dizer nessa hora tremenda pela boca mais
engraçadamente zombeteira a que Deus permitiu a momice da provocação! Que havia
de retorquir eu em tão horrorosa conjuntura? Mover-me para fazer bambolear
sobranceira ao meu coração aquela borla fatal como o espanador dos meus afectos
juvenis? ajoelhar-me aos pés dela e pôr-lhe nojosamente no regaço aquela cabeça
do feitio e da fazenda de uma afrontosa almofada de costura, ou de uma ignóbil
pregadeira de alfinetes?!…
Assim os perdi pois, para todo sempre, a ambos: a ela e a
ele; a mais encantadora alemã que meus olhos têm visto e o mais bonito chapéu
que em minha cabeça tenho posto!
* * *
Encerra esta pequena história a imagem da felicidade e por
isso ta dedico a ti, meu querido Júlio, a quem a desejo mais completa e mais
perfeita. O que é desgraçadamente a fortuna senão esse chapéu que um
pé-de-vento arrebata, e esse amor que a presença de um barrete extingue?
Ramalho Ortigão
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