«O Silêncio»
Silêncio/ Carrie Vielle
659- «O SILÊNCIO»
Era complicado. Primeiro deitou os restos de comida no
caixote do lixo. Depois passou os pratos e os talheres por água corrente
debaixo da torneira. Depois mergulhou-os numa bacia com sabão e água quente e,
com um esfregão, limpou tudo muito bem. Depois tornou a aquecer água e deitou-a
no lava-loiças com duas medidas de sonasol e de novo lavou pratos, colheres,
garfos e facas. Em seguida passou a loiça e os talheres por água limpa e pô-los
a escorrer na banca de pedra.
As suas mãos tinham ficado ásperas, estava cansada de estar
de pé e doíam-lhe um pouco as costas. Mas sentia dentro de si uma grande
limpeza como se em vez de, estar a lavar a loiça estivesse a lavar a sua alma.
A luz sem abat-jour da cozinha fazia brilhar os azulejos brancos. Lá fora, na
doce noite de Verão, um cipreste ondulava brandamente.
O pão estava no cesto, a roupa na gaveta, os copos no
armário. O vaivém, a agitação e o tumulto do dia repousavam.
Havia um grande sossego. Tudo estava arrumado e o dia estava pronto.
E Joana atravessou devagar a sua casa.
Ia abrindo e fechando as portas, abrindo e fechando as
luzes. Os quartos desapareciam no escuro e surgiam do escuro na claridade.
Um doce silêncio pairava como uma sede estendida.
O silêncio desenhava as paredes, cobria as mesas, emoldurava
os retratos. O silêncio esculpia os volumes, recortava as linhas, aprofundava
os espaços. Tudo era plástico e vibrante, denso da própria realidade. O
silêncio como um estremecer profundo percorria a casa.
As coisas conhecidas — o muro, a porta, o espelho —
mostravam uma por uma a sua beleza e a sua serenidade. E nas janelas abertas a
noite de Junho mostrava o seu rosto constelado e suspenso.
Joana deu lentamente a volta à sala. Tocou o vidro, a cal,
a madeira. Há muito já que cada coisa tinha encontrado ali o seu lugar. E era
como se esse lugar, como se a relação entre a mesa, o espelho, a porta, fossem
a expressão de uma ordem que ultrapassava a casa.
As coisas pareciam atentas. E a mulher que lavara a loiça
procurava o centro dessa atenção. Sempre o procurara, mas quem o pode captar?
O silêncio agora era maior. Era como uma flor que tivesse
desabrochado inteiramente e alisasse todas as suas pétalas.
E em roda deste silêncio os astros da noite exterior giravam
lentamente e o seu movimento imperceptível tomava em si a ordem e o silêncio
da casa.
Com as mãos tocando a parede branca Joana respirou
docemente. Era ali o seu reino, ali na paz da contemplação nocturna. Da ordem e
do silêncio do universo erguia-se uma infinita liberdade: Ela respirava essa
liberdade que era a lei da sua vida, o alimento do seu ser.
A paz que a cercava era aberta e transparente. A forma das
coisas era uma grafia, uma escrita. Uma escrita que ela não entendia mas
reconhecia.
Atravessou a sala e debruçou-se na janela aberta em frente
do puro instante azul da noite.
As estrelas brilhavam, íntimas e distantes. E pareceu-lhe
que entre ela e a casa e as estrelas fora estabelecida desde sempre uma
aliança. Era como se o peso da sua consciência fosse necessário ao equilíbrio
das constelações, como se uma intensa unidade atravessasse o universo inteiro.
E ela habitava essa unidade, estava presente e viva na
relação das coisas e a própria realidade atenta a abrigava em sua imensa e
aguda presença.
No ar, na cal, no vidro, tocava a sua felicidade e essa
felicidade era no seu centro unidade.
Debruçou-se na janela e apoiou os braços na pedra fresca do
parapeito.
Uma leve brisa agitou os ramos dos cedros. No rio, rouca,
apitou uma sereia. Na torre o sino bateu duas badaladas. Foi então que se
ouviu o grito.
Um longo grito agudo, desmedido. Um grito que atravessava as
paredes, as portas, a sala, os ramos do cedro.
Joana virou-se na janela. Houve uma pausa. Um pequeno
momento imóvel, suspenso, hesitante. Mas logo novos gritos se ergueram,
trespassando a noite. Estavam a gritar na rua, do outro lado da casa.
Era uma
voz de mulher. Uma voz nua, desgarrada, solitária. Uma voz que de grito em
grito se ia deformando, desfigurando até ficar transformada em uivo. Uivo
rouco e cego. Depois a voz enfraqueceu, baixou, tomou um ritmo de soluço, um
tom de lamentação. Mas logo voltou a crescer, com fúria, raiva, desespero,
violência.
Na paz da noite, de cima a baixo, os gritos abriram uma
grande fenda, uma ferida, E assim como a água começa a invadir o interior enxuto
quando se abre um rombo no casco de um navio, assim agora, pela fenda que os
gritos tinham aberto, o terror, a desordem, a divisão, o pânico penetravam no
interior da casa, do mundo, da noite.
Joana afastou-se da janela que dava para o jardim,
atravessou a sala, o corredor e o quarto e, no outro lado da casa, debruçou-se
na janela que dava para a rua.
A mulher via-se mal, agarrada à parede, na meia-luz, do
outro lado do passeio. Os seus gritos nus, próximos, desmedidos enchiam a
penumbra. Na sua voz a terra e a vida tinham despido os seus véus, o seu pudor
e mostravam o seu abismo, revelavam a sua desordem, a sua treva. De uma ponta à
outra da rua os gritos corriam batendo contra as portas fechadas.
Era uma rua estreita, apertada entre edifícios sem cor,
pesados e tristes. Ali a noite era cinzenta, o ar baço, parado e pegajoso.
Cães vadios farejavam o chão dos passeios e rebuscavam os
caixotes do lixo tentando agarrar sob as tampas os restos, as cascas, o
pescoço da galinha degolada.
O edifício enorme da prisão enchia todo o lado esquerdo da
rua com as altas paredes cortadas por pequenas janelas de grades. A essa
parede estava encostada a mulher. As vezes erguia a cara e então via-se o
rosto torcido e desfigurado pelo grito. Ao seu lado desenhava-se o vulto de um
homem. Era tarde. As portas e as janelas estavam fechadas sobre gente
adormecida e na rua não passava mais ninguém. Só de longe a longe se ouvia um
chiar de carros na viragem das esquinas.
O homem procurava arrastar a mulher e, quando os gritos
diminuíam um instante, implorava-lhe que se calasse, pedia:
— Vamos embora.
Mas ela não o ouvia. Gritava como se estivesse só no mundo,
como se tivesse ultrapassado toda a companhia e toda a razão e tivesse
encontrado a pura solidão. Gritava contra as paredes, contra as pedras, contra
a sombra da noite. Erguia a sua voz como se a arrancasse do chão, como se o seu
desespero e a sua dor brotassem do próprio chão que a suportava. Erguia a sua
voz como se quisesse atingir com ela os confins do universo e, aí, tocar
alguém, acordar alguém, obrigar alguém, a responder. Gritava contra o silêncio.
Às vezes calava-se um momento e inclinava a cabeça para
trás como quem espera ouvir uma resposta.
Então, de novo, o homem implorava:
— Cala-te, cala-te. Vamos embora daqui.
Mas ela recomeçava a gritar e batia com os punhos na parede
da prisão como se quisesse forçar a pedra a responder. Gritava como se quisesse
atingir um ausente, acordar um adormecido, abalar uma consciência impassível
e, alheada, tocar o coração de um morto.
Através das paredes, das portas, das ruas, da cidade,
gritava para o fundo do universo, para o fundo do espaço, para o fundo da ocultação
da noite, para o fundo do silêncio.
De repente calou-se, curvou a cabeça, tapou o rosto com as
mãos. Então o homem cobriu-lhe os cabelos com o xaile, afastou-a da parede,
passou-lhe um braço em roda dos ombros, e, devagar, juntos, desceram a rua e
viraram a esquina.
Durante algum tempo flutuou no ar pesado da rua um eco de
soluços e de passos que se afastavam e diminuíam. Depois voltou o silêncio.
Um silêncio opaco e sinistro onde se ouvia o esgravatar dos
cães.
Joana voltou para a sala. Tudo agora, desde o fogo da
estrela até ao brilho polido da mesa, se tinha tornado desconhecido. Tudo se
tinha tornado acidente absurdo, sem ligação, sem reino. As coisas não eram
dela, nem eram ela, nem estavam com ela. Tudo se tornara alheio, tudo se
tornara ruína irreconhecível.
E, tocando sem os sentir o vidro, a madeira, a cal, Joana
atravessou como estrangeira a sua casa.
Sophia de Mello Breyner Andresen
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