«O Desbunde»
Conto de Adélia Prado
685- «O Desbunde»
Tinha, como direi, eu, que sou uma senhora a seu modo pacata e até pudica, uma,
ou melhor, um derrière esplendido. Não é preciso ser homem pra essas
avaliações. Firme em definidos e perfeitos contornos, rebelde ao disfarce das
saias e anáguas daquele tempo, inscrevia-se na cara de sua dona, que, movendo
os olhos como as ancas, subia a rua em falsa pudicicia, apregoando-se: tenho.
Os homens ficavam loucos.
Eu era mocinha boba e escutei no armazém do Calixto ele
dizer pro Teodoro, meu futuro marido, naquele tempo preocupado em fazer
bodoques de goma: eh, ferro! O Vicente não vai dar conta daquela ali, não. É
preciso muita saúde. Calixto falava com o Teodoro do que eu suspeitava serem os
tesouros da Oldalisa e ela nem aí, toda sobe e desce rua. Exatamente o que era
me escapava, só podia ser coisa de homem e mulher. Felicitei-me por estar viva
e participar de segredos tão excitantes.
O Vicente era muito magrinho, não jogava bola, não nadava,
"não salientava em nada", o Vicente Cisquim. Pois foi dele que a
Raimunda — como o Calixto chamou ela naquele dia — gostou. Casaram e
tiveram pencas de filhos. O Calixto ficou chupando o dedo. Ser bonitão e dono
de armazém não contou ponto pra ele.
Pois é, falou o Teodoro, hoje, assim que botou o pé em casa:
O que é a tecnologia, hein? Tecnologia? É o avanço da medicina. Teodoro falava
era do avanço do tempo. Tou aqui matutando, disse ele, porque a Oldalisa
escolheu o Vicente, não tem base. Tô vendo aquela dona pegando as compras no
caixa e... Plim! Era ela, a velha senhora. A Oldalisa do Vicente? É. O Vicente
estava junto? Não. Estava com duas alianças e um menino, neto dela com certeza.
Será que o Vicente morreu da praga do Calixto? Acho que não, porque eu procurei
o traseiro da Oldalisa e nada da olda, só mesmo a lisa, magra e murcha. Ter
encontrado a Oldalisa expropriada de seu dote mais tentador deixou Teodoro bem
filosofante sobre as agruras do corpo.
Teria ele também sido um apaixonado da Oldalisa e eu corrido
sérios riscos? Porque amor não olha idade, não é mesmo? Agora, daquela do
escritório eu tive, medo não, por causa de meus outros poderes, tive inveja. A
uma cintura de vespa seguia-se, instruída e fatal, o que a Oldalisa trazia com
inocência. Batia à máquina, agarradinha no Teodoro, de saia justa e batom cor
de sangue. O apelido dela na firma era Corrosiva, e foi Teodoro quem pôs. Se
chamava Rosiva, a perigosa. Imagina o risco que eu corri.
Adélia Prado
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