«Um Conto de Natal»
Escritor Português Miguel Torga
712- «UM CONTO DE NATAL»
"De sacola e bordão, o velho Garrinchas fazia os
possíveis para se aproximar da terra. A necessidade levara-o longe demais.
Pedir é um triste ofício, e pedir em Lourosa, pior. Ninguém dá nada. Tenha
paciência, Deus o favoreça, hoje não pode ser - e beba um desgraçado água dos
ribeiros e coma pedras! Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e
estender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse
de negar uma côdea a um homem a meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a
qualquer porta. Gostavam... Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa.
As boas acções é que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas, tirassem
daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim... Segue-se que só dando ao
canelo por muito largo conseguia viver.
E ali vinha demais uma dessas romarias, bem escusadas se o
mundo fosse de outra maneira. Muito embora trouxesse dez réis no bolso e o
bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas. Derreadinho!
Podia, realmente, ter ficado em Loivos.
Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a
caminho. Mas quê! Metera-se-lhe na cabeça consoar à manjedoira nativa... E a
verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o
do forno do povo, permanentemente escancarado à pobreza.
Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de
telhas conhecidas, na modorra de um borralho de estevas e giestas familiares, a
respirar o perfume a pão fresco da última cozedura... Essa regalia ao menos
dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-lhes a barriga, não. Agora albergar o
corpo e matar o sono naquele santuário colectivo da fome, podiam. O problema
estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado.
Setenta e cinco anos, parecendo que não, é um grande carrego. Ainda por cima
atrasara-se na jornada em Feitais. Dera uma volta ao lugarejo, as bichas
pegaram, a coisa começou a render, e esqueceu-se das horas. Quando foi a dar
conta passava das quatro. E, como anoitecia cedo não havia outro remédio senão
ir agora a mata-cavalos, a correr contra o tempo e contra a idade, com o
coração a refilar. Aflito, batia-lhe na taipa do peito, a pedir misericórdia.
Tivesse paciência. O remédio era andar para diante. E o pior de tudo é que
começava a nevar! Pela amostra, parecia coisa ligeira. Mas vamos ao caso que
pegasse a valer? Bem, um pobre já está acostumado a quantas tropelias a sorte
quer. Ele então, se fosse a queixar-se! Cada desconsideração do destino!
Valia-lhe o bom feitio. Viesse o que viesse, recebia tudo com a mesma cara.
Aborrecer-se para quê?! Não lucrava nada! Chamavam-lhe filósofo... Areias,
queriam dizer. Importava-se lá.
E caía, o algodão em rama! Caía, sim senhor! Bonito!
Felizmente que a Senhora dos Prazeres ficava perto. Se a brincadeira
continuasse, olha, dormia no cabido! O que é, sendo assim, adeus noite de Natal
em Lourosa...
Com patorras de elefante e branco como um moleiro, ao cabo
de meia hora de caminho chegou ao adro da ermida. À volta não se enxergava um
palmo sequer de chão descoberto. Caiados, os penedos lembravam penitentes.
Não havia que ver: nem pensar noutro pouso. E dar graças!
Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o
alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela estava apenas
encostada. Ou fora esquecimento, ou alguma alma pecadora forçara a fechadura.
Vá lá! Do mal o menos. Em caso de necessidade, podia entrar
e abrigar-se dentro. Assunto a resolver na ocasião devida... Para já, a
fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora. O diabo era arranjar lenha.
Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou
acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois de um clarão
animador, apagou-se. Recomeçou três vezes, e três vezes o mesmo insucesso. Mau!
Gastar os fósforos todos é que não.
Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e
começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado
de papel.
Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e
também agradecido ao céu por aquela ajuda, olhou o altar.
Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a
Mãe de Deus parecia sorrir-lhe. Boas festas! - desejou-lhe então, a sorrir também.
Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu
com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso,
evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o
ar canho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.
Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não
desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim
ardia que regalava; só de cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas
crescia água na boca; que mais faltava?
Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou
a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra e sentou-se.
Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de
consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia
em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda.
É servida?
A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.
E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais
cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na
imagem e trouxe-a para junto da fogueira.
— Consoamos aqui os três - disse, com a pureza e a ironia de
um patriarca.
— A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu,
embora indigno, faço de S. José."
Miguel Torga
Miguel Torga
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