«Bar Don Juan»
Conto de Antonio Callado
718- «BAR DON JUAN»
Quando estacionou diante do edifício, na Lagoa, Karin já
estava na calçada à sua espera, sapatos de corda, um impermeável por cima da
roupa de banho, e, no bolso, um frasco de prata com vodka.
Escandalizou-se ao ver que Mansinho não vinha de calção de
banho por baixo da capa.
— Você não vai cair n'água?
— E você? Está querendo me ver, depois desse tempo todo, ou
só quer tomar banho de mar?
No apartamento de Karin tinha uísque, vodka, sardinha e pão.
Que besteira tomar banho de mar. Foram subindo a Rua Montenegro e, ao chegarem
à praia, dobraram à direita. Resignado que estava de andar até o Arpoador,
Mansinho se animou, achando que iam parar talvez diante do Country, mas Karin
prosseguiu pela calçada. Pelas alturas do Cinema Miramar, Mansinho teve uma
dúvida atroz.
Será que a Karin queria andar pela Avenida Niemeyer até o
Vidigal, a Gávea, a própria Barra? Karin parou no fim do Leblon e obrigou
Mansinho a tirar os sapatos para andarem na beira do mar. Entre as pedras achou
flores da véspera, três copos-de-leite de talos amarrados com fita branca.
Karin declamou para o mar, restituindo as flores às ondas;
Todo coberto de lírios
de velas, fogos e círios
o ano estava estendido
das areias de Ipanema
aos rochedos do Leblon.
Diante do ano morto
lemanjá dá reveillon.
— O que é isso? — disse Mansinho.
— Ora! O poema do Murta.
. -
— Você sabe tudo de cor, hem!
— Claro! Pois o poema foi feito para mim.
Mansinho ficou meio amuado. Karin tomou um trago de vodka.
Apesar da ressaca, Mansinho, resignado, bebeu também. Estava se sentindo
mofado, húmido.
— Por que é que Murta depois começou a fugir de mim? Eu
sempre tive tanta vontade de ser amada por uma poeta.
— Murta é cineasta. Pelo menos é o que ele diz.
— Quem faz versos é poeta. Onde é que ele anda?
— Em caso de dúvida, procure no Don Juan’s. Se formos até lá
é quase certo encontrar o Murta.
— Ele me adorou aquela noite na areia, se lembra, de
joelhos, e depois deixou a festa e veio me procurar, andou comigo pela praia
inteira, recitando os versos que tinha feito. Mas não me propôs nada.
Mansinho deu de ombros. Puseram-se a andar pela beira da
praia, Karin apanhando conchas, cantarolando, inventando uma música para cantar
com o poema:
Dançando no gume fino
da meia-noite lunar!
Mansinho foi ficando mais emburrado e Karin cada vez mais
alegre e cantadeira. Ao passarem pela frente da Rua General Urquiza ele propôs
que fossem para o Bar Don Juan mas Karin, sem responder, enfiou o braço no
braço dele andando e cantando. Quando chegaram à desembocadura do canal do
Jardim de Alá, sentou-se no paredão que avançava pelas ondas cinzentas.
Mansinho já tinha molhado as calças até os joelhos e a garoa lhe pingava dos
cabelos. Dois desocupados, no paredão oposto, olhavam em frente, ou vagamente
estudavam a grande escavadeira empregada no alargamento do canal. Enquanto os
trabalhadores, na areia, enchiam a boca com a comida tirada da marmita, a
bocarra de ferro da escavadeira descansava, os dentes imensos imobilizados em
torno de uma rocha.
Karin passou a mão nos cabelos encharcados de Mansinho e
tomou mais vodka.
— Fala alguma coisa
— Você gosta de versos e eu só tenho prosa. De mais a mais
você é que deve ter alguma coisa a contar. O que é que fez durante uma semana
inteira?
Karin o olhou séria.
— Aproveitei o pretexto de estudar a festa do Círio de
Nazaré e fui conhecer a tua terra.
Mansinho arregalou os olhos.
— Você foi a Belém do Pará?
Karin fez que sim com a cabeça e tomou as mãos de Mansinho
nas suas. Mansinho teve grande desejo dela e vontade de deitá-la ali mesmo, na
areia ou até no dorso do paredão, mas ao mesmo tempo sentiu com certa
melancolia aquele princípio de enjoo que sempre lhe davam as mulheres quando
passavam da porra da posse e da boa cegueira física inicial para uma fixação de
sentimentos.
Domesticadas e ciscando o chão até as garças viram galinhas.
Da janela do escritório do Bar Don Juan, Aniceto viu
Mansinho e Karin que chegavam da praia e ficou pensando na Da Glória. Que
estaria fazendo em Pão de Açúcar da beira do São Francisco, ela da voz rouca e
que sabia falar longa e misteriosamente —como se tivesse aprendido a falar com
o rio — mas que era tão breve de carta e de escrita tão vazia? Tinha medo dos
escritos.
“Palavra escrita é feito passarinho na gaiola”, dizia. “Se
um dia eu receber um telegrama me mato mas não abro.”
Antonio Callado
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