«Viriato»
Romance Épico
721- «VIRIATO»
[Excerto]
Era noite velha quando Ditálcon, Andaca e Minouro
regressaram ao acampamento de Viriato. Demoraram-se mais tempo do que o
Cabecilha imaginara, revolvendo por vezes na mente que fortes motivos ou razões
políticas se debatiam na barraca do general romano, para lá se deterem. De vez
em quando ocorria-lhe a conjectura de que Cepião, não reconhecendo a
inviolabilidade dos seus parlamentários, os teria mandado passar pelas armas,
ou pelo menos os guardava como prisioneiros, como reféns para lhe impor
condições de rendição. Nesta prolongada preocupação de espírito, e sob a
pressão dos inesperados acontecimentos, que só poderiam ser contrabalançados
pela, energia e pela astúcia, Viriato caiu em um sono profundo, como aquele em
que se fica imerso antes de caminhar para a morte. Embora profundo, o sono era
agitação, como em homem costumado a estar alerta mesmo quando descansava; e
nessa agitação, debatia-se Viriato com um pesadelo, um sonho, que sem diferença
por fatalidade coincidia com o que estava prestes a acontecer. Na agitação
daquele sono dormido sobre a terra recalcada poucas horas antes pelos cavalos,
Viriato sentia os passos dos seus três Companheiros que se aproximavam
silenciosamente da barraca em que estava dormindo; um deles, Minouro, afastou o
pano e entrou escondendo de trás das costas um punhal de dois gumes.
Naquela
ansiedade cataléptica, Viriato quis erguer-se, gritar, mas era impossível
qualquer movimento; em seguida entrou Ditálcon, e Andaca ficou quase da parte
de fora, mas era ainda visto claramente. Sob o terror do sonho que o oprimia, Viriato
viu Minouro curvar-se obre ele, e erguendo ao ar o braço com o punhal
descarregar o golpe...
Nesse momento de extrema angústia acorda, e entre a ilusão e
a realidade, sentiu um golpe vibrado fortemente no pescoço; antes que o sangue
lhe embaraçasse a voz, Viriato, abrindo os olhos atónitos, pôde proferir as
palavras:
– O meu maior amigo? Minouro...
Os borbotões de sangue que lhe encheram internamente o peito
e repingaram pelos panos da barraca, não deixaram que pudesse mais exprimir-se,
e ficou exânime, arquejando, até ao último alento, passando assim,
horrorosamente, de um sonho tremendo, em que Viriato, pela sua lealdade não
ousaria acreditar, para a realidade trágica e afrontosa, que ia actuar como uma
eterna calamidade sobre o futuro da Lusitânia.
A morte de Viriato fez-se com rapidez e segurança; os três
Companheiros da Trimarkisia saíram da barraca sem ruído, e simulando ordens
recebidas de Viriato montaram nos seus cavalos e partiram à desfilada para o
arraial romano. Cepião estava dormindo; um Cavaleiro foi acordá-lo, e
dizer-lhe:
– Morreu Viriato!
Quinto Servílio Cepião, voltando-se sobre o lado direito
para continuar o sono, deu ordem ao Cavaleiro:
– Que esses entes abjectos esperem lá fora, até que seja
dia.
Viriato era sempre o primeiro que percorria o acampamento; a
sua presença era como um toque de alvorada. Naquele dia, que despontava
luminoso e sereno, não aparecera; como faltavam também os seus três
Companheiros, facilmente imaginaram os mil Soldúrios que iria reconhecer algum
fojo ou desfiladeiro para organizar uma emboscada contra o exército
considerável de Cepião. Mas o sol erguia-se; era dia claro, e a barraca do
Caudilho conservava-se fechada. Ocorreu a ideia de verificar se estaria caído
por doença; o que estava mais perto levantou resoluto o pano da barraca, e viu
o vulto de Viriato estendido em cima da relva, sobre postas de sangue coalhado;
e recuando com espanto:
– Está morto Viriato! Apunhalado, apunhalado!
Aquele brado soou como um estalido de raio, quando, ao
perto, fende o ar ambiente; o trovão foi o rumor propagado entre os Soldúrios e
por entre o Terços e Companhias, que formavam agora o pequeno exército de
Viriato.
– Apunhalado Viriato! Morto Viriato!
Para a barraca do general correram todos aterrados. o
compareceram Ditálcon, Andaca e Minouro; eram os únicos que faltavam. Sem
esforço reconheceram que esses, a quem Viriato considerava como os seus maiores
amigos, é que o tinham apunhalado traiçoeiramente, covardemente, enquanto ele
dormia!
Corriam lágrimas de desespero pelas faces dos velhos
camaradas de Viriato nesta campanha de dez anos pela independência da terra
lusitana.
A barraca foi desmantelada, ficou patente aos olhos de todos
o corpo inânime e Viriato estendido como se tivesse passado momentaneamente do
sono da vida ara o da morte; via-se-lhe o golpe profundo do pescoço dado por
mão certeira, a que teria sucumbido rapidamente e quase sem agonia. Sobre o
sangue derramado em cima de que jazi, e a seu lado, estava estendida a espada,
que o acompanhava sempre, espada invencível, à qual atribuíam poderes
maravilhosos. Vendo a espada, e não se atrevendo nenhum dos Soldúrios a tomá-la
na mão, diziam entre si:
– Agora compreendemos as vozes que corriam: Viriato não
morreu em batalha; assim lhe estava vaticinado.
– Mas o oráculo, que lhe parecia favorável, deixara no vago
a hipótese atroz, de morrer apunhalado à traição pelos seus melhores amigos!
– Antes vencido e morto na refrega, no sacrifício voluntário
da ida por uma ideia, do que esta sorte miseranda, por todo o exército, em
grupos, que se formavam em tamanha desolação. Levantavam-se alaridos prantos de
terror e de mágoa; bem reconheciam que aquele desastre era a perdição de todos
e que sem o chefe prestigioso achavam-se à mercê do Cônsul romano, e para
muitos anos abafada a resistência da Lusitânia. Na angústia em que todos se
viam, a pouca distância do exército de Quinto Servílio Cepião, o desespero a
situação causava uma apatia, uma obnubilação para planear a defesa urgente.
Neste momento, afastando os grupos que cercavam o corpo de
Viriato, chegou Tantalo, um dos bravos em que mais confiava o Caudilho, e
colocando-lhe a espada entre as mãos, cruzada sobre o peito, exclamou:
– Morreu o teu corpo, mas permanece imperecível o te ideal.
Esta Espada transmitirá o esforço truncado pela traição, àquele que cedo ou
tarde servir a aspiração de uma Lusitânia livre.
E voltando-se para o exército, que parecia reanimado por
estas palavras:
– O que temos a fazer agora, e primeiro que tudo, é prestar
a Viriato as honras do funeral.
Enquanto se davam as ordens para realizarem de pronto, com a
maior solenidade a lúgubre cerimónia, no arraial dos romanos levantavam-se
gritos de aclamação triunfal, que ecoavam de quebrada em quebrada:
– Acabou a Guerra da Lusitânia. Morreu Viriato! Morreu
Viriato.
Os cavaleiros romanos, que chegaram com a intimação
afrontosa de Cepião ao arraial lusitano, puderam ver e contaram as cerimónias
grandiosas que se praticaram no Funeral de Viriato. Dentre os Mil Soldúrios que
sempre o acompanharam, uns encarregaram-se de vesti-lo magnificentissimamente
com as mais ricas e festivas roupas que trajava em tempo de gala, quando
animava os jogos celebrando as derrotas romana. Amarraram-lhe os cabelos"
na testa, como se fosse para entrar em combate, pondo-lhe na cabeça a tríplice
cimeira e o capacete de couro; pendente do pescoço o pequeno escudo côncavo,
preso por correias, e em uma das mão um punhal largo ou faca de mato, estendida
a seu lado uma lança de ponta da bronze e gancho para não deixar fugir a presa.
Outros Soldúrios acarretaram para cima de um alto penhasco que estava na coroa
da montanha, grandes molhos de rama de pinheiro, de faias e carvalhos, formando
ali uma estupenda pira, sobre a qual, com veneração foram processionalmente
colocar o corpo rígido de Viriato. Parecia um soberbo trono a pira; e logo que
cada um dos mil Soldúrios foi junto do cadáver dar-lhe o derradeiro adeus,
dividiram-se em grupos de duzentos, e postos em frente uns dos outros, como
quem vai entrar em combate, esperando que fosse lançado fogo à enorme pira. A
chama começou a atear-se, e assim que ela irrompeu intensa, principiaram as
danças guerreiras em volta da pira, em forma agonística, batendo os escudos,
floreando as lanças, brandindo as espadas e entrecruzando-se vertiginosamente,
como se esse tripúdio santificasse mais o acto lúgubre, continuando
ininterruptamente, incansavelmente, até que a ultima labareda, tendo combusto o
corpo de Viriato, e apagasse por não ter mais que queimar.
E enquanto aquelas turmas de duzentos cavaleiros dançavam em
volta da pira, dois outros grupos conservavam-se balançando-se como a acentuar
o ritmo e um Canto, em que celebravam as virtudes e o heroísmo de Viriato.
Teófilo Braga
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