quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

OUTROS CONTOS

«O Piano Velho», por Gabriela Carvalho.

«O Piano Velho»
Limpando o Pó/ Théophile Duverger

732- «O PIANO VELHO»

Quando ela vem e se senta, o meu coração começa a bater mais forte.
Os seus dedos, macios de veludo, seguram-me a tampa, encostam-na, com cuidado, à parte de trás. Dois panos do pó que um dia a avó bordou, que me tapam e protegem as teclas, são atirados para cima da escrivaninha, ao meu lado, onde ela costuma sentar-se a estudar e a ler.

É então que sinto as cordas do meu coração quase a estoirar de alegria, pois que é agora que lhe posso dizer tudo o que me vai na alma!!!

Os seus deditos a medo, titubeantes, começam a arrancar os primeiros acordes. E eu a fazer todo o possível para que tudo saia bem e ela não desista e me tape outra vez. Que esforço eu faço!… Mas alguns dos meus dentes brancos já não correspondem totalmente ao acorde que ela pretende. E eu esforço-me…

Ela levanta-se, e eu penso sempre, de cada vez, que se vai embora, que já não quer mais,… mas não! São sobressaltos do vem-que-não-vem, do fica-que-não-fica,… mas a vida é isso mesmo!
Só que desta vez ela não foi. Procurou apenas a partitura de Beethoven.

Que lindo! Toda a minha sensibilidade se motiva e canaliza nesta bonita sonata. Todo eu estou ali, inteiro, a dar o meu melhor; eu e ela numa música só, em uníssono, na produção da música-vida-beleza que Beethoven nos deu.

São os meus melhores momentos…! Em que eu dou conta que sou mais que um simples móvel de quarto…; em que sinto que faço parte da vida presente-futuro dela, pois sou eu que a ajudo a criar, a ser capaz de transmitir a todo o universo o que sente, o que lhe vai na alma e que lhe sai pelas pontas dos dedos.

Quando ela acaba, e me tapa outra vez, já não me importa! Demos a nossa contribuição à vida, por hoje.

O que me entristece e me faz infeliz, isso sim, é o facto de ela deixar o amanhã para depois de amanhã. O de ela, pequenina ainda, não compreender que a vida se vive em cada minuto, que o dia que passa se não recupera mais!

Mas só lho posso dizer através dela e é ela que tem de o compreender sozinha, enquanto eu, fechado, tapado, espero o toque da sua mão.

Gabriela de Carvalho

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