«O Idiota»
Fiódor Dostoiévski/ CarlosCartoons
731- «O IDIOTA»
[Excerto]
— Não estaria mal que jogássemos algum petit
jeu – disse a senhora espevitada
— Conheço um petit jeu novo e magnífico –
encareceu Fierdíchtchenco — Embora tivesse sido jogado uma vez só no mundo e
mesmo então não obteve êxito
— E qual é? – perguntou a senhora espevitada.
— Vão ver: estávamos uma vez reunidos e havíamos bebido, a
verdade é esta, quando, de repente, um de nós propôs que cada um, sem
levantar-se de sua cadeira, contasse algo de seu, muito íntimo, em voz alta,
mas algo que ele próprio, sinceramente, em consciência, considerasse a mais
feia de todas as suas acções, feias, no decurso de toda sua vida; mas com a
condição de que fosse sincero, isto era o principal, que fosse sincero, que não
mentisse.
— Estranha ideia – disse o general.
— Mas quanto mais estranha, general, tanto melhor.
— Pensamento ridículo – disse Tótski – embora, afinal,
compreensível vaidade de uma índole especial.
— Talvez tivesse algo disso, Afanássi Ivânovich.
— Mas tal petit jeu faria a gente chorar e não
rir! – observou a senhora espevitada.
— A coisa é totalmente impossível e absurda – declarou
Ptísin.
— E teve êxito? – indagou Nastássia Filípovna.
— Já lhe disse que não, tornou-se antipática. Todos,
efectivamente, contaram alguma anedota, muitos disseram a verdade e, imaginem,
houve quem fizesse o relato com satisfação. Mas depois todos ficaram com
vergonha e não puderam mais suportar aquilo. No fundo, aliás, foi uma coisa
muito divertida, embora, está claro, em seu estilo.
— Mas na verdade não seria nada mal – observou Nastássia
Filípovna, animando-se subitamente. — Não quereriam os senhores, deveras, experimentar?
Na realidade, não parece que estejamos muito alegres. Se cada um dos senhores
consente em contar algo…nesse estilo… é claro que espontaneamente, por sua
própria vontade. Talvez nós pudéssemos suportar. Pelo menos, trata-se de algo
enormemente original.
— Genial ideia – encareceu Fierdíchtchenco — as senhoras,
naturalmente, ficam excluídas. Comecem os cavalheiros. A coisa se fará por
sorte, como fizemos naquela ocasião. Vamos, vamos! Se alguém fizer muita
questão de não tomar parte, não contará nada; mas será de sua parte muito pouco
amável. Tirem a sorte senhores, aqui em meu chapéu. O príncipe a tirará. A
coisa não pode ser mais simples. Referir à ação mais feia de toda a vida que se
tenha praticado. Isto é muito fácil, senhores! Aqui está, vejam! Se alguém se
esquecer, eu imediatamente o chamarei à ordem.
A ideia não foi do agrado de ninguém. Uns franziram a testa,
outros sorriram ladinamente. Alguns fizeram objecções, embora não com muita
energia, pois não queriam incorrer no desagrado de Nastássia Filípovna e tinham
podido observar quão de seu agrado era aquela estranha ideia. Em seus caprichos
era Nastássia Filipovna sempre irascível e implacável, quando se decidia
a manifestá-los, ainda que se tratasse dos desejos mais voluntariosos e mais
inúteis para ela. E agora estava como que atacada de histerismo: tremia, ria
convulsivamente, como presa de uma indisposição repentina, sobretudo diante das
objecções do alarmado Tótski. Seus escuros olhos cintilavam; em suas faces
pálidas acusavam-se duas manchas rubras. Os matizes de
contrariedade e de esquivança da fisionomia de algum de seus amigos,
talvez contribuíssem para tornar mais ousado ainda seu ridículo capricho:
talvez o que mais precisamente lhe agradasse fossem o cinismo e a crueldade
daquela ideia. Alguns tinham até a convicção de que tinha ela um especial
objectivo nisso. Afinal de contas, acederam. Em todo o caso era curioso e, para
mais de um, muito atraente. Fierdíchtchenco era o que mais barulho armava.
Fiódor Dostoiévski
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