«Por Extenso»
Conto de Luísa Costa Gomes
760- «POR EXTENSO»
Quero o maior! – desde pequeníssima, sempre o maior. O urso:
o maior. O cãozinho: o maior. O livro, se o escolhia: o maior, o com mais cores,
o com a letra mais gorda. E, na comida: o prato maior, a fatia maior, a posta
maior. O bolo: evidentemente, o maior. Poupada apenas nisto das letras.
Abreviaturas, simplificações. Escolhido para nome Nê, porque encontra muito
comprido o que lhe impuseram – Ana Lúcia é o seu nome da escola, com que assina
os testes e os trabalhos, e Nê o seu nome livre.
Vai agora a atravessar a passadeira de peões e a escrever
uma sms ao mesmo tempo. É um truque que costuma fazer para mostrar que tanto se
lhe dá. Que é forte. Um carro pára, os travões guincham, os pneus até deitam fumo,
a mulher baixa o vidro e grita-lhe:
- Ó menina, quer ir já para o céu, tão novinha?
Nê treme tanto que os dentes chocalham na boca, o carro a
dois milímetros dos ténis de plataforma que nesse dia estreia, o telemóvel na
mão onde a sms começada ainda enlanguesce: “vmos hje ao cc cnema k v o k?”; e a
condutora olha-a de dentro da carrinha familiar, sorrindo, cínica e arrancando,
em esfogueteada primeira, grita:
- Menina (...) ! Menina qualquer coisa, palavra que ela não
percebe e escreve no tlm “ia sendo atropelada! tou aq td a trmer!” e envia à
Ana Márcia que lhe responde logo “táse!”.
Aquela palavra que ela não percebeu teve um efeito curioso
em Ana Lúcia. Começou a tomar mais atenção ao mundo, a estar mais alerta para tudo
o que ia e vinha à sua volta, à espera de a reconhecer. Podia acontecer em
qualquer lado, na piscina, a meio de um salto da prancha, e ter a orelha tapada
pela touca. No polivalente, à passagem de alguém, embora lhe parecesse pouco
provável. No polivalente havia sobretudo ruído. Mas era preciso estar
preparada. No café, ao intervalo do almoço, no meio da vozearia dos rapazes que
se batiam por tudo e por nada, ouviu a palavra “desconchavada” vinda de uma
mesa de mulheres-gralhas e achou q não era aquela a que demandava, mas acabou
por ficar.
Agora, em vez de responder “táse” quando o tio António, o
meio tolinho meio-irmão do pai que vive na cave, lhe pergunta com um olho meio
fechado: “Q tal o dia...? Na escola...?”, ela diz “Olha, tive um dia mesmo
desconchavado”, deixando a Leila interdita, com a franja a encaracolar-se-lhe e
a escova de alisar o cabelo a pilhas rodando estupidamente na mão. Foi lanchar,
quase sem fome, escolhendo a fatia maior. Leila disse, no dia seguinte,
afundada na torrente de palavras sem sentido com que normalmente a enviava para
a escola: “encardida”. “O quê?”, perguntou. “O quê o quê?”, perguntou a Leila.
“Disseste que a camisola estava o quê?”. “Encardida?”. A palavra que Ana Lúcia
buscava não era “encardida”, mas passou a usá-la também na frase “ Sinto esta
fase da minha vida um bocado encardida”. E comeu pouco ao pequeno-almoço.
SMS para cá e para lá nas aulas. O tema: um MMS da Ana
Sandra que mostrava um homem todo nu com uma grande cabeça de abóbora. Mas Nê
já estava noutra. Achou os colegas todos “lúgubres”. E, no intervalo das dez e
meia, espantou a Ana Margarida ao dizer que a comida do refeitório era
“sórdida”, que o Paulo andava “sorumbático” e “extravagante”, mas sorriu ao
nome da namorada dele, quando lho disseram: Mirtília Túlia. Não era de troça,
era um nome verdadeiro. E a frase favorita: “O Paulo é cá um lapa”. E o filme
de murros no centro comercial? “Inane”, comentou. Procurou (sem realmente
procurar) os sítios onde seria mais provável ouvir o que não percebera da
primeira vez. A casita onde morava com o meio tio e a mulher, Leila, passou a
ser uma “choça” e o carro deles um “chaço”. Olhou Silvestre, o misterioso
vizinho que estudava matérias misteriosas, com nova motivação. Espiava-o do seu
pátio em frente à garagem e achava tudo feio – fora a cameleira,
“deslumbrante”. E pequenos musgos no muro, “pitoresco”. Não falava muito.
Ficava a apreciar o pouco que tinha, procurando as palavras mais apropriadas
com gula. Não era, por exemplo, paixão o que sentia por Silvestre, mas
“encantamento”, e em outros momentos, “delírio”. De vez em quando escrevia uma
palavra no muro, de líquen a líquen. Silvestre, entretanto conquistado pelo prolongado
silêncio dela, convidou-a para tomar um café. Acompanhou-a à vitrina.
- É um pastelzinho, por favor – pediu Ana Lúcia - aquele
ali.
E apontou, discreta. Era o mais humilde, mas foi dito por
extenso, com um belo sorriso de amor, com as letras todas.
Luísa Costa Gomes
Luísa Costa Gomes
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