«A Caminho de Barroso»
Igreja de Covas do Barroso
772- «A CAMINHO DE BARROSO»
Esta abalada para os montes de Barroso, saindo de Braga
ante-manhã, numa luz de absinto aguado e num silêncio de prece, onde se coalham
as badaladas das Ave-Marias a caírem, lentas, das torres cristas, acolá,
alem...;—faz-me pensar naquela outra viagem a essa mesma serra, feita há
trezentos e cinquenta e três anos, por Frei Bartolomeu dos Mártires, em sua
segunda visitação pastoral, longa, trabalhosa, por despenhadeiros, cheia de
casos extraordinários tidos como milagres.
Mas o enérgico arcebispo,—bondade activa o inteligente — no
meio dos seus seguido de azêmolas de carga, cobertas com velhos telizes de
veludo, brasonados, montava, paciente e contumaz, mula branca e vagarosa ; eu,
moderno e insofrido, voo num febril Buick americano, de seis cilindros e quarenta
e cinco cavalos, que come léguas à razão de cinquenta quilómetros à hora.
Há três séculos e meio, o que seria então esta «Bracara
Augusta», quási um burgo, com seus novecentos vizinhos sumidos na toca das suas
casas baixas, de pequeninas janelas bisonhas, e, graves em escuros trajes
seculares e eclesiásticos, escoados na sombra das ruas estreitas, cotoveladas,
a maior parte ainda dentro dos fossos, barbaças 6 muros de D. Denis e de D.
Fernando, com portas torreadas, nichos de santos sobre os arcos, tendo, numa
extrema, sua cidadela com albarrã no meio de quatro cubelos — capital antiga,
fidalga, de igrejas cheínhas de relíquias abastecidas nos santuários de
Roma e de Burgos ?
A vida civil e religiosa fazia-se em torno do Primaz das
Espanhas, senhor de Braga, rodeado, no coro alto da velha Sé, de sua corte
capitular, composta das dignidades de um deão, um chantre, diversos arcediagos,
um mestre-escola, um tesoureiro-mor, um arcipreste, muitos cónegos e vários
tercenários, vivendo todos fartamente das suas prebendas, visitas e igrejas
pingues.
O que seria a vida de então ?
O arcebispo chegara, havia meses, do concílio de Trento. A
ida fora uma viagem modesta, vestindo o Primaz o seu amado hábito dominicano, e
pernoitando em conventos da sua ordem, em Espanha, França, Itália, incógnito
sempre que podia, pois, nada sociável. detestava cerimónias e dispensava
hospitação e confeitos que, por não estar afeito a eles, mais o constrangiam
que o mimavam. Outros interpretarão que era propósito do humildade cristão que
o levava, como frade pobre, a saborear, em sua mesquindade, a ceia minguada e o
catre duro dos simples religiosos ordinários que vão de longada e demandam
mosteiros por uma noite de dormida.
Em Espanha, fôra-se por Zamora, atravessou o planalto da Castela-Velha
e pousara em Falência e Burgos — de grandiosas catedrais. Vitória. Transpôs a
cordilheira cantábrica, entrou em França por Baiona e seguiu por Aux e daí a
Tolosa— depois de Roma, o mais rico santuário de relíquias cristãs. Carcassona,
Narbona, Brissiers, — num lindo alto. Santuberi. Lupiana — a infiel; Mompilher—
a doutora. Carpentras. Galgou os Alpes saboianos; subiu às alturas de
Mongeneura e desceu ao raso Piemonte. Passou em Turim e na fresca Brindes;
atravessou os campos baixos da Lombardia; foi-se a Milão, depois a Cassino,
Pontóia e Hospedalete.
Em Brexa, pela primeira vez, seus pés monárquicos pisaram
terras republicanas na aristocrática Veneza; e logo em Calião. no Tirol,
entrado no vale, muito verde, do Ádige, chegou, enfim, a Trento — cidadezinha
clara de palácios de mármore, de muitas torres, entre serras azuis, cristadas
de neve.
O decidido arcebispo, que era aturado nas suas teimas, quis
— ele. o último da extrema ocidental das Espanhas — ser o primeiro a chegar a
essas distantes terras austríacas. E chegou. Não perdeu tempo; em cinquenta e
seis dias de duras jornadas venceu trezentas e trinta e duas léguas de caminhos
aspérrimos, por vales e serras — de ordem em ordem, de convento em convento,
sempre a cavalo, do nascer ao pôr do sol, e uma vez em «toboganing», deslizando
vertiginoso pelas sendas nevadas das cordilheiras alpestres do Delfinado, a
descerem para as terras lavradias do termo turinês.
Nessa longa viagem, ao atravessar regiões, como as de
Linguadoc, onde a heresia reformista alastrara, o bom e esperto arcebispo,
distanciado dos seus companheiros, só, a mula a passo, as rédeas soltas; — o
arcebispo meditava, com as mãos cruzadas no peito para que pendia a sua cabeça
pesada de pensamentos e de cuidados.
A hora era grave. O catolicismo sofrera nos últimos vinte
anos os ataques formidáveis de um Lutero, de um Zwinglio, de um Calvino. A
unidade da Igreja quebrara-se. Meia Europa estava repartida em seitas
protestantes. A política fomentava as desordens nos grandes países, para,
dividindo-os, os enfraquecer; e a terra estava inda ensopada no sangue do
massacre do dia de São Bartolomeu e no das tremendas matanças dos anabaptistas
e dos huguenotos.
O arcebispo inquietava-se. Sofria. Mas tudo nos diz que na
alma inteiriça desse homem rudo, filho de lavradores, todo dentro da letra pura
do Evangelho, havia também o espírito do um revoltado, em parte de acordo com o
pensar dos reformadores, dando-lhes plena razão nos seus ataques contra os
excessos de pompa do culto externo de uma religião humílima, que fora pregada
por homens descalços, e que devia, sobretudo, viver no fundo da consciência dos
seus crentes, que seriam tanto melhores quanto mais se parecessem com o simples
Publicano do Evangelho. Também ele protestava contra os abusos dos papas e dos
grandes eclesiásticos; contra a transigência da Igreja não só em contemporizar
com as novas ideias humanistas, mas ainda em se deixar penetrar na vida sensual
da Renascença, impregnada de orientalismo pagão, que tinha feito de Leão X um
príncipe realengo, gastando-se em banquetes, caçadas, torneios, rodeado somente
de grandes, de artistas, de letrados e de poetas, a quem pagava sonetos por
quinhentos ducados de ouro.
Na alma aparentemente serena do Primaz havia, neste aspecto,
o espírito revoltado de um Lutero. Calava-se, mas estava com elo.
No Concilio, no meio de trezentos prelados, a sua voz forte
e calma defendeu, tenaz, a disciplina do clero e atacou, alto e bom som, as
irregularidades das grandes figuras eclesiásticas por quem deviam principiar
todas as reformas nos costumes e no mais. — «Os ilustríssimos e reverendíssimos
cardiais hão mister uma ilustríssima e reverendíssima reforma» — dizia ele,
humildemente vestido de estamenha, afoito, cara a cara de magníficas
personalidades, de faces bem medradas e composturas bem cuidadas nas sedas das
suas batinas e nos seus roquetes de rendas preciosas.
- Ah, quanto a Igreja se desviara do que fora! Como São
Bernardo — seu santo predilecto — também Frei Bartolomeu podia dizer:
— «Que eu não morra sem ver a Igreja de Deus como ela era
nos seus primeiros dias». Por sua índole plebeia, tendia para os da sua igualha
e punha-se a favor dos vilões sempre que os fidalgos contendiam com eles; por
sua feição política, queria firmar-se na massa anónima, mas foi-te, do povo
numeroso; por seu pendor democrático, rebuscava direitos para os humildes; e
por sua alma de cristão primitivo, queria que a Igreja regressasse a ser tal
qual Cristo a instituíra. Nisto antecipou-se três séculos e meio ao
neo-cristianismo como hoje o anelam as almas que se alimentam exclusivamente do
Evangelho e querem construir Basílicas não de pedra mas de espírito, habitar
celas escusas em vez de Vaticanos luxuosos, deixar ao mundo temporal o que à
matéria pertence; e, todos dentro do culto interno do coração puro, viver na
essência divina do sonho religioso, — extra-humano, infinito.
No intervalo dos seus trabalhos, Frei Bartolomeu, Ádige
abaixo, visita Veneza. Depois, — constrangido no coche forrado de seda de um
grande prelado, que viaja em pomposo estadão, com batedores, a duas soltas. e
criados de libré na tábua, — segue pelas estradas que levam a Bolonha,
Florença, Sena e Roma. Aqui, Pio lV admira suas letras sábias, suas virtudes, e
repara em sua pessoa tão rasteira no aspecto e plebeia nas maneiras, como
aficada nas ideias sãs e tenaz na defesa delas.
Ao fim de três anos, tornou-se a este seu querido Reino de
Portugal e à sua muito amada arquidiocese de trezentas freguesias, em terra
meiga do Minho e em serranias trasmontanas. Regressou por Perpinhão, Barcelona,
Saragoça, {Salamanca, — sábia e católica —, entrando de noite, a ocultas, nesta
sua Braga, cujo povo, em seu coração, o recebeu com alvoroço e doçura.
Meses depois, por certa manhãzinha de madrugar brando e
bento (semelhante ao de hoje) abala para terras de Barroso. Mas não foi como eu
— amador de formas e de cores — a surpreender aspectos não marcados nos
polvilhos de luz da hora dilucular; a assistir aos triunfos da claridade nesses
céus altos; a notar qual a beleza, sempre nova, dos gumes violáceos das serras
depois que o sol se afunda por detrás delas, e, nesse crepúsculo do saudade, o
tom das tintas nas quebradas dos montes, nas ramas dos arvoredos, e como a
sombra se espiritualiza e reza em noites de luar verde… Ver como as árvores em
fila escalam as lombas dos montes para, romeiras, alcançarem ermidas milagrosas
; nas cristas das serras, no âmbar - vitral da luz poente, as copas dos
pinheiros e dos sobreiros isolados se despegam dos seus troncos, e, místicas,
se suspendem nos céus. Não foi como eu, amoroso da tradição, em busca das
pegadas do passado — poalha de luz desfeita mas que nos ilumina ainda, nos
aquece e nos arraiga à terra onde os nossos foram nados, criados o manteúdos.
Bem diferentemente, o arcebispo ia, de surpresa, conhecer do
perto esse formigueiro de gentes serranas, policiar a vida dos pastores
barregueiros dessas bravas ovelhas, cuidar da sua fazenda e de seus meneios
(entrar em muito passal e em muito casebre esfumado) e. sobretudo, curando do
desculto, que devia ser grande, doutrinar a todos com a palavra crista do
catecismo, edificando-os com os sacramentos— confessá-los, crismá-los.
Porém, repito, o prudente arcebispo, que, nas serras, se
alimentava do presigo da «vaca» e, afeito a descomodidades, da bonomia do
«riso», jornadeava vagarosamente, na sua mula romana, arreada de coiro coberto
de veludo verde, no peitoral, na retranca e nos antolhos, bifurcado em inóspita
sela de arção alto, entre coldres e alforges ; — e eu voo sobre coxins de
elásticas molas, num auto veloz, de muitos cavalos de força, leve, impulsivo,
brilhante, tomado da vertigem das velocidades do viver moderno, em que tudo se
faz de-pressa, a correr, a fugir, numa vivacidade esperta, — num relâmpago de
luminosidade estonteante.
Vou de cara para o sol nascente. Deixo a cidade. Deixo
Peões. Vê-se o Bom-Jesus-do-Monte. de perfil, com as suas capelas tocadas de
luz quente. Sameiro — torres afitadas de sol. Mais longe, no alto, a capelinha
da Falperra — de rosa. Vinhas de enforcado. Campos de trigo. Principia a serra
do Carvalho. Fresco. Em baixo, à esquerda, o vale do Fojo, cheio de prados,
campos de pão, árvores, freguesias. Larguíssimo, fertilíssimo. Um nevoeiro
branco, rés com a terra, enche-o todo. Parece um lago coalhado. Paisagem de
fumos, de vapores, de cinza clara. No fundo, de leite anilado, as frondes das
árvores saem da água — da bruma — como ilhas emergindo do mar. Nesta tinta, as
massas verdes do arvoredo transformam- se em massas azuis diluídas. No alto,
alêni; os cabeços dos montes são rosados ; e à direita, na encosta, o sol
rasteiro pincela ouro verde nos tojos e nos fetos temos
Lugar de Pinheiro.
Castelo de Lanhoso, sobre uma enorme rocha negra. Tem a sua
história de amores trágicos : Rui Pereira, alcaide-mor medieval, sabendo que
sua mulher estava lá dentro «embaraçada comum frade de Bouro», cerrou as portas
e pôs fogo ao castelo. Ardeu tudo: a adúltera, o frade, os criados. — Os
criados ?
— Sim, porque, sabedores da maldade, nada disseram ao
alcaide.
Igreja-Nova, no meio de verduras. Serra da Morosa. Vista
larga. Nos campos, punge um milhinho de mês. Serra da Cabreira ao fundo, longe.
Começa a cordilheira do Gerez, do lado de lá do vale de Vilar da Veiga, —
verde, largo, fecundo. Em baixo, o Cávado. Branqueja, no alto. São Bento da
Porta Aberta. Enorme romaria aí em Agosto. Grandes promessas : arcadas e
cordões de ouro, teias de linho, juntas de bois, e amortalhados, dentro de
caixões do defuntos, a que pegam quatro latagões a suar em bica : — família.
Sempre a seira. Cimos alcantilados ; penedos de violeta espessa; lombas
escalvadas: tufos de verdes duros nos barrancos que pregueiam os montes, de
alto a baixo. A' ilharga, verdura de milhos. O Cávado, no fundo, azul,
estreito, mas prestadio. Centeios secos. O auto roda vertiginoso, na estrada
branca, entre duas tintas: azul e verde. Azul, de lá, da massa colossal do
Gerez ; verde, de cá, nas verduras molhadas dos pastos em terras aos socalcos,
pela encosta acima, nas copas de castanheiros novos, de folha tremente.
Salamonde. Casas miúdas, caiadas. Telhados com pedras a
segurar as telhas. Alpendres. Espigueiros vermelhos. No maciço azul da
cordilheira, na encosta rasteira, lá vai o nastro amarelo e medrado da estrada
das Caldas ; no alto, trepam os riscos claros, aos zigue-zagues, dos carreiros
humildes de pé posto, — caminhos de serra. Oliveiras.
Ruivães. A' saída, luz, muita luz. Sempre o Gerez, de
espinhaço recortado. Em baixo, o Rabagão, encastoado em pedregulhos. Que
altura! Maravilhoso. O Buick pára um instante. É o Gerez em toda a sua
imponência. Formidável! Belo! Anfractuoso, de cristas recortadíssimas, alcantis
sobre alcantis, massas azuis para além de outras massas azuis, de valores diversos,
toando-se uns nos outros, inundados de luz poderosa que se esparge da
imensidade do céu de azul ferrete com nuvens de neve. Maravilha! Maravilha!
Quem me dera morar aqui defronte para estudar de perto, em estações diferentes,
a horas diferentes, como as lombas desta enorme serra, de mil quebradas, de mil
anfractuosidades misteriosas, reagem sob a luz que as desperta e as sombras que
as mancham, e que, uma e outras, as poeiram de coloridos imprevistos. Mas já o
automóvel freme, arranca, besoira, foge. A estrada desce, às voltas, seguindo
do alto penhascoso, as curvas do Rabagão azul-violeta, no fundo.
Venda-Nova.
Agora, para as Alturas, é a cavalo, através da serra sem
árvores, em chão roxo pelas flores das queirogas e amarelo pelas flores da
carqueja : — montes de mosto onde chovesse saraiva de enxofre… Ao redor,
montanhas altas e varridas. Começa a ver-se, à esquerda, em baixo, um longo
vale abeberado de verdura e de fartura, que se prolonga, formando o planalto da
aldeia das Alturas, e se estende para lá, até às veigas fartas de Boticas.
Serras em torno. Numa aberta, entre dois montes roxos, o Cubelas azul, com
claros de queimadas. Acolá, uma lomba toda topázio, — flores de carqueja; lado
a lado de outra toda ametista, — flores das carrascas. Entre os verdes das
torgas, das estevas e dos tojos, predomina a cor roxa das queirogas, a
alastrarem-se por tudo. E' uma paisagem de serranias lilases com chapadas
verdes de toucas de carvalhotos a tufarem os barrancos das serras por onde, no
inverno, galoparão enxurradas barrentas. Tintas de esmalte, claridades de
cristal. Tanta cor! Tanta luz! Que o Senhor seja louvado!
Numa dobra, Sarcuzelo. Lá em baixo, e nos pendores das
montanhas, escorridas de prados, a veiga é toda recortada em campos murados,
muitos, aos xadreses irregulares, de verdes diferentes: — os dos lameiros
húmidos, os dos centeios a acabar de secar, os do milho tenro a romper. De
castanhos diversos : — os das terras revolvidas, os das terras lavradas, os dos
campos ceifados de fresco. Fileiras de árvores. Água. Fertilidade. No meio da
verdura, do fundo i)s encostas, acolá, alem, esparsas, Pegoso; Currais,
Ladrujães — povos muito unidos, de aspecto espanhol, nas suas casas terrentas
de paredes sem cal, nos telhados de colmo enegrecido pelas invernias. Amplidão.
Imobilidade. Silêncio. Não se vê ninguém, Aquele único homemzarrão, acolá, na
lomba de um monte, isolado, sob o céu infinito, parece uma figura colossal de
Rodin a meditar a eternidade. Os pardais, distantes, cantam, o seu canto dilata
o silêncio…
Ao sul, a Portela Velha, que faz extrema para o concelho de
Basto; pegado, a serra de Maçã, onde os povos botam em comum os gados ao pasto
; a poente, a serra da Cabreira; depois, a cordilheira do Gerez; a seguir, a
Pegosa com seus pendores para o vale farto das Alturas. No horizonte, nos
confins do norte, o Pico do Larouco, e nos do sul, o Marão — manchas mal
distintas de fumo azul diluído em cinza. Vê-se daqui para muito longe, muito,
no panorama de serras desoladas onde vivem lobos e javalis, e sobre que pairam
milhafres a peneirar no ar suas asas largas — os olhos fitos nos matos, em
busca de presas. E neste ondulante mar esverdido, de montes vagueiros e
baldios, sem árvores e sem cultura, sobe aos céus, contra os homens, a queixa
amargurada das terras que querem ser mães de florestas úteis e belas, que
aproveitem às gentes e, em sua beleza vasta e religiosa, agradem a Deus.
Ninguém se serve delas. Ninguém entende seus humanos anseios de amor fecundo.
Sofrem. A única alegria destes maninhos desprezados, que os homens pisam sem
ver ou veem sem estimar, é aquela romaria anual de luz, de cores e de perfumes
silvestres.
Foi por aqui, por estas serras escalvadas, por estes prados
verdes — terras de pastores e de lavradores que viviam então (como ainda hoje,
em parte, vivem) em puro regime agrário, pegural e silvícola, para as searas,
para os gados, para os tojos, para as lenhas e para as águas; - foi por aqui
que, há trezentos anos, andou Frei Bartolomeu dos Mártires. Deve ter parado
nestas aldeias e dormido nestas casas negras, construídas de enormes pedras
desaparelhadas, postas umas sobre as outras, sem argamassa nem cal, cobertas de
canas de milho e de palhas centeias enegrecidas, seguras com pedregulhos e
compridos troncos de carvalhos novos. Deve ter representado o papel do homem do
acordo, compondo partes desavindas por causa de extremas ou do moinho do povo,
do forno do povo, do touro do povo e do carvão do povo; e assistido aos magnos
conselhos das gentes de vereio, reunidas, nos cabeços dos montes, pelo buzinar
da carrapita das selvas, a arranhar o ar, de oiteiro em oiteiro, de quebrada em
quebrada. Que espanto, quando o viram chegar sem haver publicado a sua visita!
Estou a ver o arcebispo de Braga, montado na sua mula
branca, um pouco dobrado, vestido de estamenha domínica, seu chapéu verde com
borlas pendentes. A cabeça, de fronte alta, sai-lhe da cogula do hábito.
Avoluma-se, no carão comprido e moreno, o grosso nariz ; e uns pequeninos olhos
estrábicos encovam-se sob a arcada das sobrancelhas — linha serena e de mando.
A boca, ora ruda ora de feição, sorri pausada ; e o olho direito do seu olhar
torto mira com segurança.
Está no meio de muito povo.
Frei Bartolomeu chegou de surpresa e os homens destas
montanhas não tiveram tempo de vestir a sua nissa de rabos, nem as mulheres, os
seus jaqués, com pestanas, de pano preto, ou de pôr a sua capela de briche, —
roupas dos dias de festa.
Recebem-no conforme estão : uns, do calções de alçapão,
polainos botoados ato à cinta, sombreiros bragueses de grandes abas, fartas
capas do Saragoça; outros, com suas gorras de coelho bravo, seus safões de pele
de lobo. Alguns, de coroças do palha centeia, hirsutos, parecem porcos
espinhos. Vão para o trabalho e levam ao ombro a enxada ou a foice roçadoira; outros,
sogas de bois ; e os pastores, cajados, mantas e surrões de pele de ovelha.
Todos ostentam varapau para tomar o gado — para o que for preciso. As caras são
fortes e toscas. Os olhos, negros e de espanto.
As mulheres saíram dos seus colmates, e puseram-se a clamar
umas pelas outras, em alvoroço, como se ouvissem sinos a tocar a rebate.
Acorrem apolainadas, com capuchas de burel na cabeça grenha, e mil remendos
castanhos de trapos diversos no casibeque sem cinta, atacado com atilhos de
coiro, mal achegando os seios esbamboados. Trazem um e dois filhos, ao colo,
enfaixados em fateiías de briche, e o resto da ninhada suja presa das suas
saias de xerga.
Na frente do grupo há um clérigo, sanguíneo, de táurea
cachaceira, de tamancos e barba de oito dias, — valente garanhão descido da sua
residência com a filharada atrás de si.
Os homens encaram no arcebispo com espanto ; as mulheres,
com devoção pasma. Nos seus olhares há a estranheza do isolamento e a
independência da serra. Frei Bartolomeu era a cidade que subia a eles. Era um
outro mundo.
— Como veio de tão longe ? Não pode ser ! Um arcebispo ?
Nos olhos incrédulos de algumas mulheres, com os saiotes
pela cabeça, vê-se a ânsia de pôr as mãos no corpo de Frei Bartolomeu,
tocai-lhe com os dedos, a certificarem-se se ele é de carne e osso — como os
mais. O garoto, de cabelo chamorro, cortado às escadas pelas tesouras rombas
das achavascadas das mães serranas, veio a correr, e caiu de joelhos, de mãos
postas, diante dele, como se fora santo. Vacas barrosas, de tornozelos finos,
pontas em lira e grandes olhos doces, que desciam para ao prados ; ovelhas que
iam para o monte; — param com seus guardas à frente. Os cães de gado ladram.
Ajunta-se ao grupo um almocreve de colete de lebre, com a cabeça atada num
lenço encarnado por debaixo do braguês. Ia atravessar a serra com a sua recua
de machos carregados de sacos de carvão. Parou também. Parece um contrabandista
da Serra Morena.
Nos verdes dos prados e sobre os fundos azulinos das
montanhas, formam todos, homens e mulheres, em volta do arcebispo, uma massa
parda nos tons acastanhados dos rascadilhos, dos buréis, dos briches, das
serguilhas, que lhes cobrem os corpos a rescender ao raposinho dos rebanhos, à
calentura ácida dos currais e ao bodum dos odres azeiteiros. Da estopa da
estupidez e dos tomentos da opaca incultura são também asperrimamente tecidas essas
almas de brenha. Vê-se nos rostos. Está patente. São muitos e empurram-se, e
calcam-se para, metendo as cabeças por entre as dos outros, verem mais de perto
o seu arcebispo, que quer apear-se da mula e não o consegue.
Era aqui, no meio dos seus paroquianos, o lugar de Frei
Bartolomeu, ele que, em Trento, atacou, com voz de trovão, numa assembleia
adversa, os bispos opulentos que não residiam nas suas dioceses e somente delas
se serviam para arrecadar as rendas — como pastores que das ovelhas só queriam
o «leite e a lã», não cuidando de apascentar o rebanho que Deus lhes dera para
guardar e conduzir h salvação. Era aqui o seu lugar — pobre no meio de pobres :
pequeno no meio de humildes.
Como ia longe o tempo em que um João de Médicis usufruía
três conezias, nove paróquias, quinze abadias. Um cardial de Lorena era
arcebispo de três arcebispados, bispo de quinze bispados. E um D. Jorge da
Costa, antecessor de Frei Bartolomeu dos Mártires na cadeira bracarense,
possuía ao mesmo tempo, sem nunca haver saído de Roma, dois arcebispados, cinco
bispados, treze abadias, oito deados, dez priorados, afora vários benefícios de
pingues igrejas particulares.
Ao contrário desses, Frei Bartolomeu vivia unicamente das
rendas da sua cadeira, e visitava, igreja a igreja, as trezentas freguesias do
seu arcebispado, fossem elas nas inóspitas montanhas barrosãs; entre povos
selvagens como estes.
O arcebispo, que passou o dia inteiro a pregar, a crismar,
está agora sentado, à sombra de uma velha carvalheira e ensina o catecismo a
muitos rapazinhos que estão acocorados no chão, à volta dele. E' paciente. Na
sua cara bronzeada clareia a paz do humor benévolo.
— Quantos são os mandamentos da lei de Deus? — pregunta a um
pequeno de olhitos vivazes.
— Dez! — responde, pronto o rapaz.
— Quais são ? Logo o mocinho, expedito, espalma as mãos
muito abertas, com dedos muito afastados, e. batendo no ar, diz absolutamente
seguro de si:
— São estes.
Era tudo quanto sabia.
Já cai a tarde. Voltam aos currais as vacas, as ovelhas e os
cabritos. Alastra-se o fumo nos colmos dos casais. Esfiam-se véus de bruma
anilada por sobre os ribeiros de veiga das Alturas. O arcebispo dirige-se agora
a um moço de lavoura, atarracado e achamboado, que, de longe, o olha, num
sorriso baço de estupidez estagnada.
— Oh de lá, (que entendes tu por Santíssima Trindade?
O labrosta espanta-se. Todos os da roda se voltam para ele,
que gagueja:
— Entendo, entendo… (masca as palavras, coça a cabeça,
sempre espasmado no mesmo sorriso boçal) — entendo…que ela é irmã de Nossa
Senhora.
Anoitece de todo. O arcebispo levanta-se e retira-se. O
rapazio segue-o; e as mães dos pequenos, tomadas do espírito religioso da luz
crepuscular nas serras, e vendo diante delas, naquela hora benta das
Ave-Marias, um arcebispo que se lhes afigura santo, começam a entoar o Bem-dito,
— como se fora ao Senhor fora. E assim, com as suas capuchas de burel pela
cabeça, como freiras, acompanham Frei Bartolomeu à sua humílima pousada.
Nisto, topam uma manada de apojadas vacas, que, dos prados,
seguem para os currais, e logo o boieiro põe a vacada na cauda do cortejo, como
em certas rústicas procissões daquelas aldeias, em que os gados também iam,
atrás, com os cornos festoados de rosas silvestres e os pescoços enramados de
carvalhos — procissões tão pobrinhas que, à falta de andores, os aldeões
levavam os santos nas mãos, devotadamente apegados ao peito.
E o cortejo de Frei Bartolomeu lá segue vagaroso, religioso,
pelos caminhos velhos daqueles povos serranos. De onde a onde, por entre os
cantos lamentosos do Bem-dito, ouve-se um longo mugido de vaca que se lembra da
cria — pesaroso como um sino do aldeia, a dobrar ; o todas estas vozes se toam
na tinta cinzenta do silêncio magoado do anoitecer, no fundo daquele vale entre
altas serras trasmontanas…
Há trezentos e cinquenta e três anos!
Antero de Figueiredo
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