770- «VERSOS NA LUZ»
A última pessoa deste mundo que alguém julgaria um criminoso
era a sra. Avis Lardner. Viúva do grande mártir da Astronáutica, era
filantropa, colecionadora de arte, uma extraordinária anfitriã e, todos
concordavam, um gênio artístico. Acima de tudo, era o mais gentil e bondoso ser
humano que se podia imaginar.
O marido, William J. Lardner, morreu, como todos sabemos,
devido aos efeitos da radiação da luz solar, após ter deliberadamente
permanecido no espaço, a fim de que uma espaço-nave de passageiros pudesse
levar seu veículo espacial em segurança à Estação Espacial n°5.
Por isso a sra. Lardner havia recebido uma generosa pensão,
a qual investira bem e com muita sabedoria. Ao fim da meia-idade, estava rica.
Sua casa era uma espécie de exposição permanente, um
verdadeiro museu, contendo uma colecção de lindas jóias, pequena, porém de extremo
bom-gosto. De uma dúzia de diferentes culturas havia conseguido relíquias de
quase toda peça de artesanato concebível que pudessem ser engastadas de jóias
para servir à aristocracia daquela mesma cultura. Possuía um dos primeiros
relógios de pulso, adornado de pedras preciosas, fabricado na América, uma
adaga incrustada de pedras preciosas, procedente do Camboja, um par de óculos,
decorado com jóias, vindo da Itália, e assim por diante, interminavelmente.
Tudo estava aberto ao público. As peças de artesanato não
estavam no seguro, e não havia nenhuma providência comum no sentido de
garanti-las. Não havia a necessidade de nada convencional, porquanto a sra.
Lardner mantinha um corpo de auxiliares, constituído de robôs-servos, a cada um
dos quais podia se confiar a guarda de cada um dos objectos, tendo eles
imperturbável concentração, irrepreensível honestidade e irrevogável
eficiência.
Todos sabiam da existência dos robôs e não há registo de
ter algum dia ocorrido alguma tentativa de furto.
E havia também, é claro, sua escultura-luz.
Como a sra. Lardner descobriu seu próprio génio para a arte,
nenhum convidado de suas pródigas reuniões conseguia adivinhar. Contudo, em
cada ocasião, quando a sra. Lardner abria a casa para os convidados, uma nova
sinfonia de luz percorria os aposentos de um lado ao outro; curvas e sólidos
tridimensionais, numa mescla de cores, algumas puras, outras difusas, em
surpreendentes efeitos cristalinos que mergulhavam no assombro cada convidado,
e que se ajustavam por si mesmos, de forma a embelezar os cabelos macios e
azulados e o rosto de contornos pouco definidos da sra. Lardner.
Era por causa da escultura-luz, mais do que por qualquer
outra coisa, que os convidados apareciam. Nunca era a mesma duas vezes, e nunca
deixava de explorar novos enfoques da arte.
Muitas pessoas que podiam comprar consolo-luz preparavam
esculturas-luz por diversão, mas ninguém chegava nem de longe a igualar a
perícia da sra. Lardner. Nem mesmo aqueles que se consideravam artistas
profissionais.
Ela mesma era encantadoramente modesta a respeito disso –
Não, não – dizia ela, quando alguém ressudava lirismo. – Eu não a denominaria
“poesia na luz”. Isto é ser bondosa demais. No máximo, eu diria que se trata de
meros “versos na luz” – e todos sorriam da sutil tirada de espírito.
Embora fosse solicitada frequentemente a fazê-lo, jamais
criava “escultura-luz” em outras ocasiões, salvo em suas próprias festas.
– Seria comercialização – costumava dizer.
Contudo, não objectava à preparação de elaborados hologramas
de suas esculturas, de forma que se tornassem permanentes e fossem reproduzidos
em todos os museus do mundo. Tampouco nunca cobrou nada pelo uso que pudesse
ser feito de suas “esculturas-luz”.
– Eu não teria coragem de cobrar um centavo – dizia ela,
abrindo bem os braços. – É de graça para todos. Afinal de contas, eu mesma a
uso durante pouco tempo.
Era verdade, ela nunca utilizava duas vezes a mesma
“escultura-luz”.
Ela própria cooperava quando eram feitos os hologramas.
Observando benignamente cada etapa, estava sempre pronta a mandar que os robôs
ajudassem.
– Por favor, Courtney – quer ter a bondade de ajustar a
escadinha?
Era o seu estilo. Sempre se dirigia aos robôs com a mais
formal das cortesias.
Certa ocasião, há muitos anos, quase fora repreendida por um
funcionário federal do “Bureau of Robots and Mechanical Men”:
– Não pode fazer isto – disse ele severamente. – Interfere
na eficiência deles. São construídos para cumprir ordens e quanto mais
claramente lhes der ordens, mais eficientes as cumprirão. Quando pede com
elaborada polidez, compreendem com dificuldade que está sendo dada uma ordem.
Reagem mais lentamente.
A sra. Lardner ergueu a aristocrática cabeça:
– Não exijo rapidez e eficiência – disse ela. – Peço boa
vontade. Meus robôs me amam.
O funcionário poderia ter explicado que robôs não podem
amar, mas murchou sob o olhar ofendido, ainda que meigo, dela.
Era fato conhecido de todos que a sra. Lardner jamais
remeteu um robô à fábrica para ajustamentos. Seus cérebros positrónicos eram de
enorme complexidade, e quando saem da fábrica, um em dez não está perfeitamente
regulado. Às vezes o desajuste não se revela durante um período de tempo, mas
sempre que um engano se manifesta, a “U. S. Robots and Mechanical Men
Corporation” efetua a correção gratuitamente.
A sra. Lardner sacudiu a cabeça:
– A partir do momento em que o robô está em minha casa –
disse – e cumpre com seus deveres, as excentricidades secundárias devem ser
toleradas. Não permitirei que seja maltratado.
Era a pior coisa possível tentar explicar que um robô era
apenas uma máquina. Ela dizia inflexivamente:
– Nada que seja tão inteligente como um robô pode ser apenas uma
máquina. Trato-os como gente.
E pronto!
Ela conservava até mesmo Max, embora fosse quase inútil. Mal
se podia compreender o que se esperava dele. Contudo, a sra. Lardner insistia:
– Absolutamente – dizia firmemente – ele é capaz de pegar e
guardar chapéus e casacos perfeitamente. Segura objetos para mim. Sabe fazer
muitas coisas.
– Mas por que não manda regulá-lo? – perguntou um amigo,
certa ocasião.
– Oh, eu não teria coragem. Ele é ele mesmo. É muito amável,
sabe? Afinal de contas, um cérebro positrónico é tão complexo que ninguém consegue
saber onde está enguiçado. Se fosse ajustado para a perfeita normalidade, não
haveria meios de recuperá-lo para a amabilidade que possui agora. E eu não
quero desfazer-me dele.
– Mas, se ele está mal regulado – disse o amigo, olhando
nervosamente para a sra. Lardner – não poderá ser perigoso?
– Nunca – a sra. Lardner deu uma risada. – Tenho-o há anos.
É completamente inofensivo e é um amor.
Na verdade, ele tinha a mesma aparência de todos os outros
robôs: liso, metálico, vagamente humano, mas inexpressivo.
Contudo, para a bondosa sra. Lardner, todos eram gente,
pessoas, todos meigos, todos adoráveis. Ela era assim.
Como poderia cometer um crime?
A última pessoa que alguém esperaria que fosse assassinado
seria John Semper Travis. Introvertido e de modos suaves, estava no mundo, mas
não pertencia a ele. Possuía aquele peculiar talento para a Matemática que lhe
tornava possível resolver mentalmente o complexo entrelaçamento de uma miríade
de circuitos positrônicos cerebrais da mente de um robô.
Era o engenheiro-chefe da “U. S. Robots and Mechanical Men
Corporation”.
Mas era também um entusiasmado amador em “escultura-luz”.
Havia escrito um livro sobre a matéria, no qual tentava mostrar que o tipo de
Matemática que utilizava para resolver problemas de circuitos de cérebros
positrônicos poderia ser modificado para servir de guia na produção da estética
da “escultura-luz”.
No entanto, sua tentativa de colocar a teoria em prática foi
um fracasso desanimador. As esculturas que produziu, segundo seus princípios
matemáticos, eram pesadas, mecânicas e sem interesse.
Era a única razão de infelicidade em sua vida tranquila,
introvertida e segura, no entanto era razão suficiente para sentir-se
profundamente infeliz. Ele sabia que suas teorias eram corretas, se
bem que não conseguisse pô-las em ação. Se não conseguisse produzir uma boa
peça de “escultura-luz”…
Naturalmente, estava a par da “escultura-luz” da sra.
Lardner. Ela era universalmente aplaudida como um génio, muito embora Travis
soubesse que era incapaz de compreender mesmo o mais simples aspecto da
matemática dos robôs. Havia trocado correspondência com ela, mas ela recusava-se
obstinadamente a explicar seus métodos, levando-o a perguntar-se se ela possuía
mesmo algum. Não seria mera intuição? – mas mesmo a intuição pode ser reduzida
à matemática. Finalmente, ele conseguiu receber um convite para uma das festas.
Precisava avistar-se com ela a todo custo.
O sr. Travis chegou bem tarde. Havia feito uma última
tentativa com uma peça de “escultura-luz”, que resultará num fracasso desalentador.
Cumprimentou a sra. Lardner com uma espécie de enigmático
respeito e disse:
– Estranho aquele robô que pegou meu chapéu e casaco.
– Aquele é Max – disse a sra. Lardner.
– Está muito desregulado e é um modelo bem antigo. Por que
razão não o manda para a fábrica?
– Oh, não – disse a sra. Lardner. – Seria demasiado
trabalho.
– De modo nenhum, sra. Lardner – disse Travis. – A sra.
ficaria surpresa com a simplicidade do trabalho. De vez que sou da U.S. Robots,
tomei a liberdade de ajustá-lo pessoalmente. Não levou tempo e a sra. verá que
ele está agora em perfeitas condições de funcionamento.
Uma estranha mudança ocorreu no rosto da sra. Lardner. A
fúria estampou-se nele pela primeira vez em sua existência sossegada. Era como
se os traços fisionómicos não soubessem qual posição tomar.
– Ajustou-o? – perguntou com voz aguda. – Mas foi ele que
criou as minhas “esculturas-luz”. Foi o ajustamento defeituoso, o desajuste, que
você jamais conseguirá restaurar… aquele…
Foi uma grande desgraça que ela estivesse mostrando sua
colecção naquele momento e que a adaga com cabo cravejado com pedras preciosas,
procedente do Camboja, estivesse sobre o tampo de mármore na mesa em frente
dela.
A fisionomia de Travis também se distorceu:
– A sra. quer dizer que, se eu tivesse estudado o estranho
cérebro positrónico dele, eu poderia ter aprendido…
Ela avançou com a arma com demasiada rapidez para alguém
detê-la. Ele não tentou se esquivar ao golpe. Há quem diga que foi ao encontro
dele – como se quisesse morrer.
Isaac Asimov
Sem comentários:
Enviar um comentário