«Ressurreição»
Conto de Mário de Sá-Carneiro
792- «RESSURREIÇÃO»
Tinha sido em Paris. Uma noite, casualmente, encontrara-se
num pequeno teatro vermelho para Montmartre, bocejando o seu tédio. Mas de
súbito, entre as intérpretes da revista idiota, os seus olhos fixaram-se numa
dançarina meia nua – esplêndida, duma beleza enclavinhada: corpo agreste,
musculoso, seios oscilantes, pequenos e esguios – lábios roxos, grandes olhos
admirados, cabelos negros, - e a carne, a carne luminosa, mordorada a
trigueiro, para se cobrir de esmeraldas. Nocturnamente, seria bem aquele talvez
– excelsior! o corpo triunfal
da Salomé...
E no enlevo granate da maravilha, contemplando-a suspenso, o seu cérebro
imaginoso logo se lembrou de construir um romance sobre ela – ai, agora, bem
barato romance...
Voltara-lhe de súbito a nostalgia da gentileza – desses brandos episódios
loiros que, em todo o caso, nos desenastram a alma e agitam véus cor-de-rosa em
cerca à nossa vida.
Sim, pelas mesas dos cafés, quantas vezes invejara aqueles que esperavam uma
companheira gentil que aparecia modesta, ligeira, afável – ao passo que ele se
detinha solitário sempre, endurecido...
Todo de incoerências – embora as suas
repugnâncias, não lograra ainda renunciar definitivamente àquilo que os outros
possuíam, e devia ser em verdade de tão meigas cores...
A sua primeira amante não a buscara ele; ela própria viera ao seu encontro –
nem a possuíra ele; ela só o possuíra... As outras tinham sido tão raras, tão
distantes...
Eis pelo que em face do corpo aureoral, recordando-lhe estas invejas, estes
desgostos – o romancista começara, em inferioridade, a arquitectar um enredo...
Hoje corava de si mesmo se lhe lembrava a pobre história – nem podia acreditar
que a tivesse vivido...
Ela fora assim:
No dia seguinte pegara num exemplar luxuoso da sua última obra e enviara-o pelo
correio à bailarina, acompanhado duma carta escrita premeditadamente, em
romantismo, do Pavilhão d’Armenonville – uma carta tola onde justificava o seu
envio desta maneira: a dançarina dera-lhe uma sensação tão grande de beleza –
ah! de beleza apenas, não o fosse julgar apaixonado – que, ele, o Artista, o
divino que só procurava por toda a parte as emoções gloriosas, não resistira,
em primeiro lugar, a agradecer-lhe a visão estética sublime que o seu corpo lhe
proporcionara e, depois, a ansiar viver um pouco em torno à maravilha – de
qualquer forma referindo-se a ela.
Assim lhe mandava esse volume – que de resto a encantadora nem saberia ler,
escrito numa língua estrangeira – para que ao menos os seus dedos esguios,
maquilhados, perturbantes, uma vez tacteassem alguma coisa dele (o seu nome, as
suas palavras) – e essa carta, para que um dia, mais tarde, longos anos
volvidos, as suas mãos secas a achassem, quem sabe, entre velhos papéis... E
então, longinquamente o recordaria – isto é: fosse como fosse, ele volvera-se
uma personagem da sua existência...
Mas havia mais, pois – suave glória! – a partir da tarde em que lhe escrevera,
ele, o desconhecido, ao admirá-la nos teatros onde dançaria nua – saberia em
verdade alguma coisa do seu passado: que ela uma vez recebera uma carta sua, um
livro seu, estrangeiro...
Enfim, o certo era que, sem nunca se terem encontrado, milagrosamente iam
deixar de ser dois estranhos – uma pequenina coisa de ora avante os ligaria:
existiriam com efeito em relação um ao outro...
A rapariguinha – romanesca talvez, ou apenas interesseira – breve lhe
respondera numa pobre carta sem ortografia, acusando a recepção do livro,
afirmando que tinha gostado muito da carta, pedindo que lhe escrevesse mais.
E havia nas suas frases toscas um tal desejo de corresponder ao pensamento
delicado, de ser graciosa – que uma onda de ternura quebrantou Inácio...
Logo essa tarde, num entusiasmo, correu a um grande florista da rua Scribe e
enviou cinquenta francos de cravos à bailadeira – com um simples cartão de
visita prometendo nova carta.
Só lha escreveu no outro dia. Então, insidiosamente, ele dispunha o curso ido
enredo – cantando em audácia o esplendor da sua carne ébria, dando-lhe a
entender que não era rico, mas tinha vinte anos – para prevenir uma desilusão...
Terminava a lastimar-se, sempre em ardil, que era muito belo o seu papel
misterioso de «desconhecido» mas que ignorava se teria coragem para o
desempenhar até ao fim...
Na volta do correio, recebeu a resposta. E logo de novo se enterneceu, ondeadamente. A caligrafia era melhor – mais cuidadosas a ortografia e a gramática... Um desejo evidente de agradar... E, com uma simplicidade adorável, a rapariguinha perguntava porque se não haviam de conhecer. Ela gostaria tanto...
Um júbilo infinito, esplêndido, lhe correu na alma. Beijou a carta repetidas
vezes...
– Enfim! um pouco de sol chegava à sua vida... Ah! que triunfo admirável
passear nas ruas de Paris com essa mulher dourada, e possuí-la – estiraçar-se
imperialmente sobre a sua carne de aurora, entregar-se-lhe todo em amor e
anseio fluido!... Havia de a morder, de a ferir – sim, de a ferir! – com os
seus beijos, arroxeadamente...
... E ela parecia-lhe tão humilde, tão pobrezinha, tão pouca coisa... Pois bem!
ele a levaria aos maiores restaurantes, às casas de chá mais luxuosas...
Era-lhe impossível vesti-la de jóias, mas ensinar-lhe-ia que os grandes
perfumistas são Delettrez, Houbigant, Lanthéric – que os mais esquisitos
bombons saem das lojas do Boissier, do Marquis...
Como ia ser venturoso, como ia ser belo... Na manhã seguinte esperava três mil
francos de Lisboa!
Saiu. Após o almoço entrou na Napolitano para lhe escrever uma carta em que marcaria o primeiro rendez-vous para dali a dois dias. Pediu café, papel, sobrescritos... E, de súbito, encontrou-se a pensar:
«– Afinal para quê... para quê... Aonde vou?... Sim, de que me vale prolongar
tudo isto?... Conhecê-la-ei... beijá-la-ei, pode ser... e depois?... Que haverá
de comum entre mim e ela?... Pobre criaturinha fútil, banalizada, insensível...
Possuí-la? – oh!... possuí-la... Demais sei o que me espera!... E seguir-se-ão
mil pequenas contrariedades... mil pequenos desenganos... encontros a certas
horas... mil complicações inúteis... Para que? para quê?... Não...
Decididamente não vale a pena... de modo algum…»
E, numa resolução momentânea, limitou-se a escrever-lhe um rápido bilhete onde
lhe dizia que era na realidade tão encantadora, tão cendrada, aquela aventura
longínqua – que o melhor seria pôr-lhe termo, ser subtil até ao fim: não
prosseguir para não quebrar o encanto... Saiu. Estampilhou o bilhete no bureau
próximo do Boulevard dos Italianos – deitou-o na caixa... sem uma saudade; sem
mágoa nem arrependimento...
Ainda alguns dias pensou, é claro, no triste episódio – mas sempre levemente,
embora com ternura.
A rapariguinha não lhe tornou a escrever – e ele lembrava-se da cruel desilusão
que fora talvez para ela a sua última carta... Via-a também sonhando amor, como
ele, a certas horas – e a caminhar radiante para uma aventura literalizada em
pacotilha, mas quem sabe se ideal aos seus pobres olhos...
E chegava-lhe assim uma piedade esvaída pela bailadeira nua, perversamente: só
porque ela sofrera talvez dele, muito, um dia...
As suas cartas, guardara-as num grande sobrescrito – preciosas, pois iam-lhe
servir para fixar palpavelmente alguns instantes dessa época da sua vida,
alguns instantes do Paris dos seus vinte e três anos...
Aliás notava hoje bem como tivera razão em pôr um termo à aventura. Lançado
nela, coisa alguma o deteria – e embalde, pois o certo era que nem mesmo por
mais que beijasse esse corpo esplêndido, alcançaria nele aquilo por que uma
noite o ambicionara. Com efeito o artista só poderia saciar os seus desejos –
não estrebuchando esse corpo nu, magnífico; mas sim se ao mesmo tempo vencesse
possuir os passos da bailarina sobre aquele pequeno tablado dum teatro vermelho
para Montmartre... e os seus gestos, os seus sorrisos, o carmim dos seus
lábios, os seus véus, as suas lantejoulas, as suas jóias falsas, as luzes que a
iluminavam – todos os ritmos de cor e som que soçobravam rodopiando em volta da
sua carne, a subtilizarem-lhe, a aureolarem-lhe o corpo indistinto em vertigens
e apoteoses!...
Mário de Sá-Carneiro
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