«Serão»
A Família/ Tarsila do Amaral
799- «SERÃO»
A noite tinha para nós o atractivo das histórias. Depois da
ceia, mamãe arrumava tudo e lavava a cara a Lela e Nanduca. Já não havia o
receio de sairmos para a cabritagem da rua. Àquela hora tolhia-nos o medo do
escuro… Tudo arrumado e rezadas as orações, mamãe e mamãe velha iam sentar-se
na salinha, onde já estávamos, acomodados em bancos. A casa enchia-se de
meninos. A nossa imaginação vivia apaixonadamente no mundo variado que as
histórias criavam. Acaçapado ao pé de mamãe velha, o Baluca também
fazia parte do serão, de orelhas caídas e cabeça pensativa, como se estivesse
recordando as roncações da sua mocidade com as cadelinhas levianas que lhe
davam trela.
Grande contadeira de histórias era Nhá Rosa Calita, velha
pretona a quem os rapazes trocistas chamavam Camões, por lhe faltar um olho em
virtude de pau-de-finado mal curado. E que lábia que ela tinha! Era um gosto
ouvir-lhe referir aqueles casos todos, contos de meninos presos, a engordar,
dentro de caixas grandes, por velhas feiticeiras, pastorinhos que casavam com a
filha do rei, rapazotinhos sabidos que tinham enganado Aquele Homem – pelo
sinal da Santa Cruz – e as demoniarias das feiticeiras que iam ao Esponjeiro
tomar ordens do seu chefe, um diabo trocista, de cara descarada, e depois
saíam, transformadas em bichos, a agoirentar a vida da criatura.
História, história!
Fartura do Céu, ámen!
― Era uma vez uma princesa que andava a correr mundo à
procura de Passo-Amor, seu noivo, mas para o alcançar tinha de furar a sola a
sete sapatos de ferro:
Acorda, Passo-Amor,
há mil léguas em procura de ti…
Chegou a casa da mãe do vento, e esta escondeu-a dentro de
um cancarã. Entrou o filho, muito malcriado, com grande barulho, catã, catã, e
disse:
― Aqui cheira-me a sangue real…
Nós todos queríamos mais e mais histórias. A ouvir Nhá Rosa
Calita o sono fugia-nos totalmente…
― Certa ocasião havia grande fome na terra. Desde dois anos
o mês de Outubro não dera pinga de água para refrescar a planta, já amorrinhada
do léu-léu escasso de Setembro. Um homem de Fajã de Baixo vivia na sua casinha
com duas filhas, já raparigas, na vida castigada da pobreza. Vocês sabem, pobre
é como cama de chão, todos lhe passam por cima. Um dia, assim que os galos
deram a última pousa (tinham dormido sem cear), saiu com as filhas a furar a
vida onde Deus fosse servido de mostrar a Sua misericórdia. Andou, andou,
passou a Assomada do Mancebo, e ali em direitura de Fragatinha encontrou grande
estendal de batata conteira num fundo de quebrada. Encheram os balaios, mas o
homem, com a voz cheia de respeito, recomendou às filhas:
― Oh, minhas filhas, vocês não dêem a ninguém conta desta
senhora comida!
Baltasar Lopes
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