«Centauro»
Júpiter e Sémele/ Gustave Moreau
814- «CENTAURO»
O cavalo parou. Os cascos sem ferraduras firmaram-se nas
pedras redondas e resvaladiças que cobriam o fundo quase seco do rio. O homem
afastou com as mãos, cautelosamente, os ramos espinhosos que lhe tapavam a
visão para o lado da planície. Amanhecia já. Ao longe, onde as terras subiam,
primeiro em suave encosta, como tinha lembrança se eram ali iguais à passagem
por onde descera muito ao norte, depois abruptamente rasgadas por um espinhaço
basáltico que se erguia em muralha vertical, havia umas casas àquela distância
baixíssimas, rasteiras, e umas luzes que pareciam estrelas. Sobre a montanha,
que barrava todo o horizonte daquele lado, via-se uma linha luminosa, como se
uma pincelada subtil tivesse percorrido os cimos, e, húmida, aos poucos se
derramasse pela vertente. Dali viria o sol. O homem largou os ramos com um
movimento descuidado e arranhou-se: soltou um ronco inarticulado e levou o dedo
à boca para chupar o sangue. O cavalo recuou batendo as patas, varreu com a
cauda as ervas altas que absorviam os restos da humidade ainda conservada na
margem do rio pelo abrigo que os ramos pendentes faziam, cortina àquela hora
negra. O rio estava reduzido ao fio de água que corria na parte mais funda do
leito, entre pedras, de longe em longe aberta em charcos onde sobreviviam e
ansiavam peixes. Havia no ar uma humidade que prenunciava chuva, tempestade,
decerto não nesse dia, mas no outro, ou passados três sóis, ou na próxima lua.
Muito lentamente, o céu aclarava. Era tempo de procurar um esconderijo, para
descansar e dormir.
O cavalo teve sede. Aproximou-se da corrente de água, que
estava como parada sob a chapa da noite, e quando as patas da frente sentiram a
frescura líquida, deitou-se no chão, de lado. O homem, com o ombro assente na
areia áspera, bebeu longamente, embora não tivesse sede. Por cima do homem e do
cavalo, a parte ainda escura do céu rodava devagar, arrastando atrás de si uma
luz pálida, apenas por enquanto amarelada, primeiro e, se não conhecido,
enganador anúncio do carmim e do vermelho que depois explodiriam por cima da
montanha, como em tantas outras montanhas de tão diferentes lugares vira
acontecer ou ao rés das planícies. O cavalo e o homem levantaram-se. Em frente
estava a espessa barreira das árvores, com defesas de silvados entre os troncos.
No alto dos ramos já piavam pássaros. O cavalo atravessou o leito do rio num
trote inseguro e quis romper a direito pelo emaranhado vegetal, mas o homem
preferia uma passagem mais fácil. Com o tempo, e tivera muito e muito tempo
para isso, aprendera os modos de moderar a impaciência animal, algumas vezes
opondo-se a ela com uma violência que eclodia e prosseguia toda no seu cérebro,
ou porventura num ponto qualquer do corpo onde se entrechocavam as ordens que
do mesmo cérebro partiam e os instintos obscuros alimentados talvez entre os
flancos, onde a pele era negra; outras vezes cedia, desatento, a pensar noutras
coisas, coisas que eram sim deste mundo físico em que estava, mas não deste
tempo. O cansaço tornara o cavalo nervoso: a pele estremecia como se quisesse
sacudir um tavão frenético e sequioso de sangue, e os movimentos das patas
multiplicavam-se desnecessários e ainda mais fatigantes. Seria uma imprudência
tentar abrir caminho através do entrelaçado das silvas. Havia demasiadas
cicatrizes no pêlo branco do cavalo. Uma delas, muito antiga, traçava na garupa
um rasto largo, oblíquo. Quando o sol batia forte, de chapa, ou quando, pelo
contrário, o frio arrepanhava e eriçava o pêlo, era como se ali, faixa sensível
e desprotegida, assentasse incandescente um fio de espada. Apesar de muito bem
saber que nada iria encontrar a não ser uma cicatriz maior do que as outras, o
homem, nessas ocasiões, torcia o tronco e olhava para trás, como para o fim do
mundo.
A pequena distância, para jusante, a margem do rio recolhia-se
para o interior do campo: havia decerto ali uma albufeira, ou seria um
afluente, tão seco ou mais ainda. O fundo era lodoso, tinha poucas pedras. Ao
redor desta espécie de bolsa, afinal simples braço do rio que enchia e vazava
com ele, havia árvores altas, negras sob a escuridão que só lentamente se ia
levantando da terra. Se a cortina dos troncos e dos ramos derrubados fosse
suficientemente densa, poderia passar ali o dia, bem escondido, até que fosse
outra vez noite e pudesse continuar o seu caminho. Afastou com as mãos as
folhas frescas e, impelido pela força dos jarretes, venceu a ribanceira na
escuridão quase total que as copas fartas das árvores defendiam naquele lugar.
Logo a seguir, o terreno tornava a descer para uma vala que, mais adiante,
provavelmente, atravessaria o campo a descoberto. Encontrara um bom esconderijo
para descansar e dormir. Entre o rio e a montanha havia campos de cultivo,
terras amanhadas, mas aquela vala, profunda e estreita, não mostrava sinais de
ser lugar de passagem. Deu mais alguns passos, agora em completo silêncio. Os
pássaros assustados observavam. Olhou para cima: viu iluminadas as pontas altas
dos ramos. A luz rasante que vinha da montanha roçava agora a alta franja
vegetal. Os pássaros recomeçaram a chilrear. A luz descia pouco a pouco, poeira
esverdeada que se mudava em róseo e branco, neblina subtil e instável do
amanhecer. Os troncos negríssimos das árvores, contra a luz, pareciam ter
apenas duas dimensões, como se tivessem sido recortados do que restava da noite
e colados sobre a transparência luminosa que mergulhava na vala. O chão estava
coberto de espadanas. Um bom sítio para passar o dia dormindo, um refúgio
tranquilo.
Vencido por uma fadiga de séculos e milénios, o cavalo
ajoelhou-se. Encontrar posição para dormir que a ambos conviesse, era sempre
uma operação difícil. Em geral, o cavalo deitava-se de lado e o homem repousava
também assim. Mas enquanto o cavalo podia ficar uma noite inteira nessa
posição, sem se mexer, o homem, para não mortificar o ombro e todo o mesmo lado
do tronco, tinha de vencer a resistência do grande corpo inerte e adormecido
para o fazer voltar-se para o lado oposto: era sempre um sonho difícil. Quanto
a dormir de pé, o cavalo podia, mas o homem não. E quando o esconderijo era demasiado
estreito, a mudança tornava-se impossível e a exigência dela ansiedade. Não era
um corpo cómodo. O homem nunca podia deitar-se de bruços sobre a terra, cruzar
os braços sob o queixo e ficar assim a ver as formigas ou os grãos de terra, ou
a contemplar a brancura de um caule tenro saindo do negro húmus. E sempre para
ver o céu tivera de torcer o pescoço, salvo quando o cavalo se empinava nas
patas traseiras, e o rosto do homem, no alto, podia inclinar-se um pouco mais
para trás: então, sim, via melhor a grande campanula nocturna das estrelas, o
prado horizontal e tumultuoso das nuvens, ou o sino azul e o sol, como o último
vestígio da forja original.
O cavalo adormeceu logo. Com as patas metidas entre as
espadanas, as crinas da cauda espalhadas pelo chão, respirava profundamente,
num ritmo certo. O homem, meio reclinado, com o ombro direito fincado na parede
da vala, arrancou alguns ramos baixos e cobriu-se com eles. Em movimento
suportava bem o frio e o calor, ainda que não tão bem como o cavalo. Mas quando
quieto e adormecido arrefecia rapidamente. Agora, pelo menos enquanto o sol não
aquecesse a atmosfera, iria sentir-se bem sob o conforto das folhagens. Na
posição em que estava, podia ver que as árvores não se fechavam completamente
em cima: uma faixa irregular, já matinal e azul, prolongava-se para diante e,
de vez em quando, atravessando-a de uma banda para a outra, ou seguindo-a na
mesma direcção por instantes, voavam velozmente os pássaros. Os olhos do homem
cerraram-se devagar. O cheiro da seiva dos ramos arrancados entontecia-o um
pouco. Puxou para cima do rosto um ramo mais farto de folhas e adormeceu. Nunca
sonhava como sonha um homem. Também nunca sonhava como sonharia um cavalo. Nas
horas em que estavam acordados, as ocasiões de paz ou de simples conciliação
não eram muitas. Mas o sonho de um e o sonho do outro faziam o sonho do
centauro.
Era o último sobrevivente da grande e antiga espécie dos
homens-cavalos. Estivera na guerra contra os Lápitas, sua primeira e dos seus
grande derrota. Com eles, vencidos, se refugiara em montanhas de cujo nome já
se esquecera. Até que acontecera o dia fatal em que, com a parcial protecção
dos deuses, Héracles dizimara os seus irmãos, e ele só escapara porque a
demorada batalha de Héracles e Nesso lhe dera tempo para se refugiar na
floresta. Tinham acabado então os centauros. Porém, contra o que afirmavam os
historiadores e os mitólogos, um ficara ainda, este mesmo que vira Héracles
esmagar num abraço terrível o tronco de Nesso e depois arrastar o seu cadáver
pelo chão, como a Heitor viria a fazer Aquiles, enquanto se ia louvando aos
deuses por ter vencido e exterminado a prodigiosa raça dos Centauros. Talvez
repesos, os mesmos deuses favoreceram então o centauro escondido, cegando os
olhos e o entendimento de Héracles por não se sabia então que desígnios.
Todos os dias, em sonho, lutava com Héracles e vencia-o. No
centro do círculo dos deuses, de cada vez e sempre reunidos às ordens do seu
sonho, lutava braço a braço, furtava a garupa escorregadia ao salto astuto que
o inimigo tentava, esquivava-se à corda que lhe assobiava entre as patas, e
obrigava-o a lutar de frente. O seu rosto, os braços, o tronco, suavam como
pode suar um homem. O corpo do cavalo cobria-se de espuma. Este sonho
repetia-se há milhares de anos, e sempre nele o desenlace se repetia: pagava em
Héracles a morte de Nesso, chamava aos braços e aos músculos do torso toda a
sua força de homem e de cavalo: assente nas quatro patas como se fossem estacas
enterradas no chão, erguia Héracles ao ar e apertava, apertava, até que ouvia a
primeira costela estalar, depois outra, e finalmente a espinha que se partia.
Héracles, morto, escorregava para o chão como um trapo e os deuses aplaudiam.
Não havia nenhum prémio para o vencedor. Os deuses levantavam-se das suas
cadeiras de ouro e afastavam-se, alargando cada vez mais o círculo até
desaparecerem no horizonte. Da porta por onde Afrodite entrava no céu, saía
sempre e brilhava uma grande estrela.
Há milhares de anos que percorria a terra. Durante muito
tempo, enquanto o mundo se conservou também ele misterioso, pôde andar à luz do
Sol. Quando passava, as pessoas vinham ao caminho e lançavam-lhe flores
entrançadas por cima do seu lombo de cavalo, ou faziam com elas coroas que ele
punha na cabeça. Havia mães que lhe davam os filhos para que os levantasse no
ar e assim perdessem o medo das alturas. E em todos os lugares havia uma
cerimónia secreta: no meio de um círculo de árvores que representavam os
deuses, os homens impotentes e as mulheres estéreis passavam por baixo do
ventre do cavalo: era crença de toda a gente que assim floria a fertilidade e
se renovava a virilidade. Em certas épocas, levavam uma égua ao centauro e
retiravam-se para o interior das casas: mas um dia, alguém que por esse
sacrilégio veio a cegar, viu que o centauro cobria a égua como um cavalo e que
depois chorava como um homem. Dessas uniões nunca houve fruto.
Então chegou o tempo da recusa. O mundo transformado
perseguiu o centauro, obrigou-o a esconder-se. E outros seres tiveram de fazer
o mesmo: foi o caso do unicórnio, das quimeras, dos lobisomens, dos homens de
pés de cabra, daquelas formigas que eram maiores que raposas, embora mais
pequenas que cães. Durante dez gerações humanas, este povo diverso viveu
reunido em regiões desertas. Mas, com o passar do tempo, também ali a vida se
tornou impossível para eles, e todos dispersaram. Uns como o unicórnio,
morreram; as quimeras acasalaram com os musaranhos, e assim apareceram os
morcegos; os lobisomens introduziram-se nas cidades e nas aldeias e só em
noites marcadas correm o seu fado; os homens de pés de cabra extinguiram-se
também, e as formigas foram perdendo tamanho e hoje ninguém é capaz de as
distinguir entre aquelas suas irmãs que sempre foram pequenas. O centauro
acabou por ficar sozinho. Durante milhares de anos, até onde o mar consentiu,
percorreu toda a terra possível. Mas em todos os seus itinerários passava de
largo sempre que pressentia as fronteiras do seu primeiro país. O tempo foi
passando. Por fim, já lhe não sobrava terra para viver com segurança. Passou a
dormir durante o dia e a caminhar de noite. Caminhar e dormir. Dormir e
caminhar. Sem nenhuma razão que conhecesse, apenas porque tinha patas e sono.
Comer, não precisava. E o sono só era necessário para que pudesse sonhar. E a
água, apenas porque era a água.
Milhares de anos tinham de ser milhares de aventuras.
Milhares de aventuras, porém, são demasiadas para valerem uma só verdadeira e
inesquecível aventura. Por isso, todas juntas não valeram mais do que aquela,
já neste milénio último, quando no meio de um descampado árido viu um homem de
lança e armadura, em cima de um mirrado cavalo, investir contra um exército de
moinhos de vento. Viu o cavaleiro ser atirado ao ar e depois um outro homem
baixo e gordo acorrer, aos gritos, montado num burro. Ouviu que falavam numa
língua que não entendia, e depois viu-os afastarem-se, o homem magro
maltratado, e o homem gordo carpindo-se, o cavalo magro coxeando, e o burro
indiferente. Pensou sair-lhes ao caminho para os ajudar, mas, tornando a olhar
os moinhos, foi para eles a galope, e, postado diante do primeiro, decidiu
vingar o homem que fora atirado do cavalo abaixo. Na sua língua natal, gritou:
«Mesmo que tivesses mais braços do que o gigante Briareu, a mim haverias de o
pagar.» Todos os moinhos ficaram com as asas despedaçadas e o centauro foi
perseguido até à fronteira de um outro país. Atravessou campos desolados e
chegou ao mar. Depois voltou para trás.
Todo o centauro dorme. Dorme todo o seu corpo. Já o sonho
veio e passou, e agora o cavalo galopa por dentro de um dia antiquíssimo para
que o homem possa ver desfilarem as montanhas como se por seu pé andassem, ou
por veredas delas subir ao alto e dali olhar o mar sonoro e as ilhas espalhadas
e negras, rebentando a espuma em redor delas como se da profundidade acabassem
de nascer e de lá surgissem deslumbradas. Não é isto um sonho. Vem do largo um
cheiro salino. As narinas do homem dilatam-se sôfregas, e os braços estendem-se
para o alto, enquanto o cavalo, excitado, bate com os cascos em pedras que são
mármore e afloram. As folhas que cobriam a cara do homem escorregaram, já
emurchecidas. O sol, alto, cobre o centauro de manchas de luz. Não é um rosto
velho, o do homem. Novo, também não, porque não o poderia ser, porque os anos
se contam por milhares. Mas pode comparar-se com o duma estátua antiga: o tempo
gastou-o, não tanto que apagasse as feições, o bastante apenas para as mostrar
ameaçadas. Uma pequena lagoa luminosa cintila sobre a pele, desliza muito
lentamente para a boca, aquece-a. O homem abre os olhos de repente, como o
faria a estátua. Pelo meio das ervas, afasta-se ondulando uma cobra. O homem
leva a mão à boca e sente o sol. Nesse mesmo instante, a cauda do cavalo
agita-se, varre a garupa e sacode um moscardo que sondava a pele fina da grande
cicatriz. Rapidamente, o cavalo põe-se de pé e o homem acompanha-o. O dia vai
por metade, outro tanto falta para que chegue a primeira sombra da noite, mas
não há mais dormir. O mar, que não foi sonho, ainda ressoa nos ouvidos do homem,
ou não o real ruído do mar, talvez o bater visto das ondas que os olhos
transformam em ondas sonoras que vêm sobre as águas, sobem pelas gargantas
rochosas até ao alto, até ao sol e ao céu azul de outra vez água.
Está perto. A vala por onde segue é apenas um acidente, leva
a qualquer lado, é obra de homens e caminho para chegar aos homens. Porém,
aponta na direcção do sul, e é isso que conta. Avançará por ali até onde Ihe
for possivel, mesmo sendo dia, mesmo com o sol cobrindo toda a planície e
denunciando tudo, homem ou cavalo. Uma vez mais vencera Héracles no sonho,
diante de todos os deuses imortais, mas, acabado o combate, Zeus retirara-se
para o sul, e foi depois que desfilaram as montanhas e do ponto mais alto
delas, onde havia umas colunas brancas, viam-se as ilhas e a espuma em redor.
Está perto a fronteira e Zeus afastou-se para o sul.
Caminhando ao longo da vala estreita e funda, o homem pode
ver o campo de um lado e do outro. As terras parecem agora abandonadas. Já não
sabe onde ficou a povoação que vira na hora do amanhecer. O grande espinhaço
rochoso cresceu de altura, ou está talvez mais próximo. As patas do cavalo
afundam-se no chão mole que aos poucos vai subindo. Todo o tronco do homem está
já fora da vala, as árvores tornam-se mais espaçadas, e de súbito, quando o
campo ficou todo aberto, a vala acaba. O cavalo vence com um simples movimento
o último declive, e o centauro aparece todo no claro do dia. O sol está à mão
direita e bate com força na cicatriz, que, ferida, arde. O homem olha para
trás, segundo o seu costume. A atmosfera está abafada e húmida. Não é porém que
o mar esteja tão perto. Esta humidade promete chuva e este brusco sopro de
vento também. Ao norte, juntam-se nuvens.
O homem hesita. Há muitos anos que não ousa caminhar a descoberto,
sem a protecção da noite. Mas hoje sente-se tão excitado como o cavalo. Avança
pelo terreno coberto de mato donde se desprendem cheiros fortes de flores
bravas. A planicie terminou, e agora o chão ergue-se em corcovas e limita o
horizonte ou alarga-o cada vez mais, porque as elevações já são colinas e
adiante levanta-se uma cortina de montes. Começam a surgir arbustos e o
centauro sente-se mais protegido. Tem sede, muita sede, mas ali não há sinal de
água. O homem olha para trás e vê que metade do céu está já coberto de nuvens.
O sol ilumina o bordo nítido de um grande nimbo cinzento que avança.
É neste momento que se ouve ladrar um cão. O cavalo
estremece de nervosismo. O centauro lança-se a galope entre duas colinas, mas o
homem não perde o sentido: seguir na direcção do sul. O ladrar está mais perto,
e ouve-se também um tilintar de campainhas e depois uma voz falando a gado. O
centauro parou para se orientar, porém os ecos enganaram-no e, de súbito, num
terreno baixo e húmido inesperado, aparece-lhe um rebanho de cabras e à frente
dele um grande cão. O centauro estacou. Algumas das cicatrizes que Ihe riscavam
o corpo, devia-as aos cães. O pastor deu um grito espavorido e largou a fugir,
como louco. Chamava em altos berros: devia haver uma povoação ali perto. O
homem dominou o cavalo e avançou. Arrancou um ramo forte de um arbusto para
afastar o cão, que se estrangulava a ladrar, de fúria e medo. Mas foi a fúria
que prevaleceu: o cão ladeou rapidamente umas pedras e tentou apanhar o
centauro de flanco, pelo ventre. O homem quis olhar para trás, ver donde vinha
o perigo, mas o cavalo antecipou-se, e rodando veloz sobre as patas da frente,
desferiu um violento coice que apanhou o cão no ar. O animal foi bater contra
as pedras, morto. Não era a primeira vez que o centauro se defendia assim, mas
de todas as vezes o homem se sentia humilhado. No seu próprio corpo batia a
ressaca da vibração geral dos músculos, a vaga de energia que deflagrava, ouvia
o bater surdo dos cascos, mas estava de costas voltadas para a batalha, não era
parte nela, espectador quando muito.
O sol escondera-se. O calor desapareceu subitamente do ar e
a humidade tornou-se palpável. O centauro correu entre as colinas, sempre para
o sul. Ao atravessar um pequeno regato viu terrenos cultivados, e quando
procurava orientar-se esbarrou com um muro. Para um lado, havia algumas casas.
Foi então que se ouviu um tiro. Como de um enxame, sentiu o corpo do cavalo
crispar-se sob as picadas. Havia gente que gritava e depois deram outro tiro. A
esquerda estralejaram ramos dilacerados, mas nenhum bago de chumbo o atingiu
desta vez. Recuou para ganhar balanço, e num impulso venceu o muro. Passou
sobre ele, voando, homem e cavalo, centauro, quatro patas estendidas ou
dobradas, dois braços abertos para o céu ainda para além azul. Soaram mais
tiros, e depois foi o tropel dos homens que o perseguiam pelos campos, dando
gritos, e o ladrar dos cães.
Tinha o corpo coberto de espuma e de suor. Houve um momento
em que parou para procurar caminho. O campo em redor tornou-se também
expectante, como se estivesse de ouvido à escuta. E então caíram as primeiras e
pesadas gotas de chuva. Mas a perseguição continuava. Os cães seguiam um rasto
para eles estranho, mas de mortal inimigo: um misto de homem e de cavalo, umas patas
assassinas. O centauro correu mais, correu muito, até que percebeu que os
gritos se tinham tornado diferentes e o ladrar dos cães era já de frustração.
Olhou para trás. A uma boa distância, viu os homens parados, ouviu-lhes as
ameaças. E os cães que tinham avançado voltavam para os donos. Mas ninguém se
adiantava. O centauro vivera tempo bastante para saber que isto era uma
fronteira, um limite. Os homens, segurando os cães, não ousavam atirar-lhe
tiros: apenas um foi disparado, mas de tão longe que não ouviu sequer cair o
chumbo. Estava salvo, sob a chuva que desabava em torrente e abria regos
rápidos entre as pedras, sobre esta terra onde nascera. Continuou a caminhar
para o sul. A água ensopava-lhe o pêlo branco, lavava a espuma, o sangue e o
suor e toda a sujidade acumulada. Regressava muito velho, coberto de
cicatrizes, mas imaculado.
De repente, a chuva parou. No momento seguinte, o céu ficou
todo varrido de novens, e o sol caiu de chapa sobre a terra molhada donde,
ardendo, fez levantar nuvens de vapor. O centauro caminhava a passo, como se
viajasse sobre uma neve imponderável e tépida. Não sabia onde estava o mar, mas
ali era a montanha. Sentia-se forte. Matara a sede com a água da chuva,
levantando o rosto para o céu, de boca aberta, bebendo em longos haustos, com a
torrente a deslizar-lhe pelo pescoço, pelo tronco abaixo, lustralmente. E agora
descia para o lado sul da montanha, devagar, rodeando os enormes pedregulhos
que se amontoavam e escoravam uns aos outros. O homem apoiava as mãos nos penedos
mais altos, sentindo debaixo dos dedos os musgos macios, os líquenes ásperos,
ou a rugosidade estreme da pedra. Em baixo havia, de largo a largo, um vale que
àquela distância parecia estreito, enganadoramente. Ao longo dele, com grandes
intervalos, via três povoações, ao meio a maior, e o sul para além dela.
Cortando o vale a direito, teria de passar perto da povoação. Passaria?
Lembrava-se da perseguição, dos gritos, dos tiros, dos outros homens do lado de
lá da fronteira. Do incompreensível ódio. Esta terra era a sua, mas quem eram
os homens que nela viviam? O centauro continuava a descer. O dia ainda estava
longe de acabar. O cavalo, exausto, pousava os cascos com cuidado, e o homem
pensou que lhe conviria descansar antes de se aventurar na travessia do vale.
E, sempre pensando, decidiu que esperaria pela noite, que antes dormiria em
qualquer refúgio que encontrasse, para ganhar as forças necessárias à longa
caminhada que lhe restava fazer até ao mar.
Continuou a descer, cada vez mais lentamente. E quando enfim
se dispunha a ficar entre duas pedras, viu a entrada negra duma caverna, alta
bastante para que todo ele pudesse entrar, homem e cavalo. Ajudando-se com os
braços, assentando ao de leve os cascos rapados pelas pedras duríssimas,
introduziu-se na gruta. Não era muito funda, nenhuma caverna se prolongava pela
montanha dentro, mas havia espaço bastante para mover-se nela à vontade. O
homem apoiou os antebraços na parede rochosa e deixou pender a cabeça sobre
eles. Respirava fundo, procurando resistir, não acompanhar o ofegar ansioso do
cavalo. O suor escorria-lhe pela cara. Depois o cavalo dobrou as patas da
frente e deixou-se cair no chão coberto de areia. Deitado, ou soerguido como
era hábito, o homem nada podia ver do vale. A boca da gruta abria apenas para o
céu azul. Em qualquer ponto, lá no fundo, gotejava água, a longos intervalos
regulares, produzindo um eco de cisterna. Uma paz profunda enchia a gruta.
Estendendo um braço para trás, o homem passou a mão sobre o pêlo do cavalo, sua
própria pele transformada ou pele que em si transformara. O cavalo estremeceu
de satisfação, todos os seus músculos se distenderam e o sono ocupou o grande
corpo. O homem deixou cair a mão, que escorregou e foi repousar na areia seca.
O sol, descendo no céu, começou a iluminar a gruta. O
centauro não sonhou com Héracles nem com os deuses sentados em círculo. Também
não se repetiu a grande visão das montanhas viradas para o mar, as ilhas
espumejantes, a infinita extensão líquida e sonora. Apenas uma parede escura,
ou apenas sem cor, baça, intransponível. Entretanto, o sol entrou até ao fundo
da caverna, fez cintilar todos os cristais da pedra, transformou cada gota de
água numa pérola vermelha que se desprendia do tecto, mas antes inchava até ao
inverosímil, e depois riscava três metros de fogo vivo, para se afundar num
pequeno poço já escuro. O centauro dormia. O azul do céu foi desmaiando,
inundou-se o espaço de mil cores de forja, e o entardecer arrastou devagar a
noite como um corpo cansado que por sua vez vai adormecer. A gruta, em trevas,
tornara-se imensa, e as gotas de água caíam como pedras redondas na aba de um
sino. Era já noite escura e a Lua nasceu.
O homem acordou. Sentia a angústia de não ter sonhado. Pela
primeira vez em milhares de anos, não sonhara. Abandonara-o o sonho na hora em
que regressara à terra onde nascera? Porquê? Que presságio? Que oráculo diria?
O cavalo, mais longe, dormia ainda, mas já inquietamente. De vez em quando
agitava as patas traseiras, como se galopasse em sonhos, não dele, que não
tinha cérebro, ou somente emprestado, mas da vontade que os músculos eram.
Deitando a mão a uma pedra saliente, ajudando-se com ela, o homem levantou o
tronco, e, como se estivesse em estado de sonambulidade, o cavalo seguiu-o, sem
esforço, num movimento fluido em que parecia não haver peso. E o centauro saiu
para a noite.
Todo o luar do espaço se espalhava sobre o vale. Tanto era
que não podia ser apenas o da simples, pequena lua da terra, Sélene silenciosa
e fantasmal, mas o de todas as luas levantadas na infinita sucessão das noites
onde outros sóis e terras sem esses e outros nenhuns nomes rodam e brilham. O
centauro respirou fundo pelas narinas do homem: o ar estava macio, como se
passasse pelo filtro duma pele humana, e havia nele o perfume da terra que foi
molhada e agora devagar está secando, entre o labiríntico abraço das raízes que
seguram o mundo. Desceu para o vale por um caminho fácil, quase remansoso,
jogando harmoniosamente com os seus quatro membros de cavalo, oscilando os seus
dois braços de homem, passo a passo, sem que uma pedra rolasse, sem que uma
aresta viva abrisse outro rasgão na pele. E foi assim que chegou ao vale, como
se a viagem fizesse parte do sonho que não tivera enquanto dormira. Adiante
havia um rio largo. Do outro lado, um pouco para a esquerda, era a povoação
maior, aquela que estava no caminho do sul. O centauro avançou a descoberto,
seguido pela sombra singular que não tinha par no mundo. Trotou ligeiramente
pelos campos cultivados, mas escolhia os carreiros para não pisar as plantas.
Entre a faixa de cultura e o rio havia árvores dispersas e sinais de gado. O
cavalo, sentindo o cheiro, agitou-se, mas o centauro seguiu para a frente, para
o rio. Entrou cautelosamente na água, tenteando com os cascos. A profundidade
foi aumentando, até chegar ao peito do homem. No meio do rio, sob o luar que
era outro rio correndo, quem visse veria um homem atravessando a vau, com os
braços erguidos, braços, ombros e cabeça de homem, cabelos em vez de crinas.
Pelo interior da água caminhava um cavalo. Os peixes, acordados pelo luar,
nadavam em redor dele e mordiscavam-lhe as pernas.
Todo o tronco do homem saiu da água, depois apareceu o
cavalo, e o centauro subiu para a margem.
Passou por baixo dumas árvores e no
limiar da planície parou para se orientar. Lembrou-se de como o tinham
perseguido do outro lado da montanha, lembrou-se dos cães e dos tiros, dos
homens aos gritos, e teve medo. Preferia agora que a noite fosse escura, teria
preferido caminhar debaixo duma tempestade como a do dia anterior, que fizesse
recolher os cães e afastasse as pessoas para casa. O homem pensou que toda a
gente naqueles arredores já devia saber da existência do centauro, que decerto
a notícia tinha passado por cima da fronteira. Compreendeu que não podia
atravessar o campo em linha recta, em plena luz. A passo, começou a seguir ao
longo do rio, sob a protecção da sombra das árvores. Talvez adiante o terreno
lhe fosse mais favorável, onde o vale se estreitava e acabava entalado entre
duas altas colinas. Continuava a pensar no mar, nas colunas brancas, fechava os
olhos e revia o rasto que Zeus deixara ao afastar-se para o sul.
Subitamente, ouviu um marulhar de água. Ficou parado, à
escuta. O rumor repetia-se, diminuía, voltava. Sobre o chão coberto de erva
rasteira, os passos do cavalo soavam tão abafados que não se distinguiam entre
a múltipla e tépida crepitação da noite e do luar. O homem afastou os ramos e
olhou para o rio. Na margem havia roupas. Alguém tomava banho. Empurrou mais os
ramos. E viu uma mulher. Saía da água, completamente despida, brilhava sob o
luar, branca. Muitas outras vezes o centauro vira mulheres, mas nunca assim,
neste rio, com esta lua. Outras vezes vira seios oscilando, o tremor das coxas
ao andar, o ponto de escuridão no centro do corpo. Outras vezes vira cabelos
caindo para as costas, e mãos que os lançavam para trás, gesto tão antigo. Mas
a parte que lhe cabia do mundo em que as mulheres viviam, era só a que
satisfaria o cavalo, talvez o centauro, não o homem. E foi o homem que olhou,
que viu a mulher aproximar-se da roupa, foi ele que rompeu por entre os ramos,
correu para ela no seu trote de cavalo e depois, ao mesmo tempo que ela
gritava, a levantou nos braços.
Também isto fizera algumas vezes, tão poucas, em milhares de
anos. Acto inútil, apenas assustador, acto que poderia ter deixado atrás de si
a loucura, se isso mesmo não aconteceu. Mas esta era a sua terra e a primeira
mulher que nela via. O centauro correu ao longo das árvores, e o homem sabia
que mais adiante pousaria a mulher no chão, frustrado ele, apavorada ela,
mulher inteira, homem por metade. Agora um caminho largo quase tocava as
árvores, e adiante o rio fazia uma curva. A mulher já não gritava, apenas
soluçava e tremia. E foi então que se ouviram outros gritos. No virar da curva,
o centauro foi parar a um pequeno aglomerado de casas baixas que as árvores
escondiam. Havia gente no pequeno espaço em frente. O homem apertou a mulher
contra o peito. Sentia-lhe os seios duros, o púbis no lugar em que o seu corpo
de homem se recolhia e se tornava peitoral de cavalo. Algumas pessoas fugiram,
outras atiraram-se para a frente, e outras entraram nas casas e saíram com
espingardas. O cavalo levantou-se sobre as patas traseiras, encabritou-se para
as alturas. A mulher, assustada, gritou uma vez mais. Alguém disparou um tiro
para o ar. O homem compreendeu que a mulher o protegia. Então, o centauro
ladeou para o campo aberto, fugindo das árvores que poderiam embaraçar-lhe os
movimentos, e, sempre com a mulher agarrada, contornou as casas e lançou-se a
galope pelo campo fora, na direcção das duas colinas. Atrás de si ouvia gritos.
Talvez se lembrassem de persegui-lo a cavalo, mas nenhum cavalo podia competir
com um centauro, como fora demonstrado em milhares de anos de fuga constante. O
homem olhou para trás: os perseguidores vinham longe, muito longe. Então,
segurando a mulher por baixo dos braços, olhando-a em todo o corpo, com todo o
luar despindo-a, disse na sua velha língua, na língua dos bosques, dos favos de
mel, das colunas brancas, do mar sonoro, do riso sobre as montanhas:
— Não me queiras mal.
Depois, devagar, pousou-a no chão. Mas a mulher não fugiu.
Saíram-lhe da boca palavras que o homem foi capaz de entender:
— Tu és um centauro. Tu existes.
Pousou-lhe as duas mãos sobre o peito. As patas do cavalo
tremiam. Então a mulher deitou-se e disse:
— Cobre-me.
O homem via-a de cima, aberta em cruz. Avançou lentamente.
Durante um momento, a sombra do cavalo cobriu a mulher. Nada mais. Então o
centauro afastou-se para o lado e lançou-se a galope, enquanto o homem gritava,
cerrando os punhos na direcção do céu e da lua. Quando os perseguidores se
aproximaram enfim da mulher, ela não se mexera. E quando a levaram, embrulhada
numa manta, os homens que a transportavam ouviram-na chorar.
Naquela noite, todo o país soube da existência do centauro.
O que primeiro se julgara ser uma história inventada do outro lado da fronteira
com intenção de desfrute, tinha agora testemunhas de fé, entre as quais uma
mulher que tremia e chorava. Enquanto o centauro atravessava esta outra
montanha, saía gente das aldeias e das cidades, com redes e cordas, também com
armas de fogo, mas só para assustar. É preciso apanhá-lo vivo, dizia-se. O
exército também se pôs em movimento. Aguardava-se o nascer do dia para que os
helicópteros levantassem voo e percorressem toda a região. O centauro procurava
os caminhos mais escondidos, mas ouviu muitas vezes ladrarem cães, e chegou,
mesmo, sob o luar que já esmorecia, a ver grupos de homens que batiam os
montes. Toda a noite o centauro caminhou, sempre para o sul. E quando o Sol
nasceu estava no alto duma montanha donde viu o mar. Muito ao longe, mar
apenas, nenhuma ilha, e o som duma brisa que cheirava a pinheiros, não o bater
da onda, não o perfume angustioso do sal. O mundo parecia um deserto
suspenso da palavra povoadora.
Não era um deserto. Ouviu-se de repente um tiro. E então,
num arco de círculo largo, saíram homens de detrás das pedras, em grande
alarido, mas sem poderem disfarçar o medo, e avançaram com redes e cordas e
laços e varas. O cavalo ergueu-se para o espaço, agitou as patas da frente e
voltou-se, frenético, para os adversários. O homem quis recuar. Lutaram ambos,
atrás, em frente. E na borda da escarpa as patas escorregaram, agitaram-se
ansiosas à procura de apoio, e os braços do homem, mas o grande corpo resvalou,
caiu no vazio. Vinte metros abaixo, uma lâmina de pedra, inclinada no ângulo
necessário, polida por milhares de anos de frio e de calor, de sol e de chuva,
de vento e neve desbastando, cortou, degolou o corpo do centauro naquele
preciso sítio em que o tronco do homem se mudava em tronco de cavalo. A queda
acabou ali. O homem ficou deitado, enfim, de costas, olhando o céu. Mar que se
tornava profundo por cima dos seus olhos, mar com pequenas nuvens paradas que
eram ilhas, vida imortal. O homem girou a cabeça de um lado para o outro: outra
vez mar sem fim, céu interminável. Então olhou o seu corpo. O sangue corria.
Metade de um homem. Um homem. E viu que os deuses se aproximavam. Era tempo de
morrer.
José Saramago
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