«Nos Mares do Fim do Mundo»
Crónicas de Viagem ao Bacalhau
885- «NOS MARES DO FIM DO MUNDO»
[Excerto]
“Foi no Granja, um velho lugre de três mastros, ao que
me dizem já desaparecido. O Albino “algarvio“ era o bobo do veleiro:
não havia ninguém na companha, desde os moços de convés até aos oficiais da
ponte, que não gostasse de “molhar a sopa“.
Uns puxavam-lhe a camisola, outros
tiravam-lhe o barrete e todos o feriam com graçolas pesadas, achincalhando-o
com alcunhas e risos destemperados. O Albino ia sofrendo em silêncio e às
vezes, que remédio!, chegava mesmo a emprestar aos lábios um sorriso
dolorosamente pregueado. Mas no interior, lá por dentro, era uma chaga viva, um
cancro que, sem tréguas, o vinha roendo: Malvados! Se lhes pudesse ser bom...
Mas não podia. Enfim, uma desgraça: ele, ali no navio, era o fantoche, o bombo
onde todos malhavam, o escarradoiro para onde, sem cerimónia, os outros
cuspiam! Mas tantas lhe faziam que um dia... ora, ora, um dia... nada, sempre
nada! Estava sozinho, não tinha ninguém por ele: como um bicho desprezível e
feio... Feio! Todos lho chamavam. E cabeçudo, e torto, e marreco... Feio: de
tudo, seria talvez o que mais o fazia sofrer!
Por duas vezes já, em acessos de raiva, calcara a pés juntos
o espelhinho de algibeira. Ah, mas eles não sabiam ainda quem era o Albino! E
daí talvez tivessem razão: em muitas horas, quase sempre!, sentia-se manso e
receoso como um boi capado. Até que um dia, só até um dia!... Que se
acautelassem, pois uma vez o palonça, o pobre diabo, podia perder a cabeça e...
Um mar de gargalhadas apagava sempre as suas ameaças: Como os odiava, nestas
alturas! E passava as noites a remoer planos de vingança, arrepios de terror e
lágrimas de abandono. Então ele, Albino, não seria um homem como os outros?!
Tinha que o provar, tinha que lhes mostrar do que era capaz. Era um homem, ele
era um homem!
Mas os dois piores, os mais verdugos, seriam o cozinheiro
Ricoca e o seu ajudante, o Mazorro: Ganhara-lhes medo, só de vê-los ficava com
febre! Ainda ontem o Ricoca, à saída da cozinha, lhe passara uma rasteira de
tal jeito, que ele fora estatelar-se no convés, no preciso momento em que uma
grande onda galgava a amurada: Ficara todo encharcado, da cabeça aos pés. Em
redor, os outros apertavam o ventre, de tanto rirem...
Ná, não podia continuar assim: perdera o gosto pela vida e
sentia-se como um espantalho de eira, como uma vela esfarrapada ao vento. Os
outros faziam-lhe tudo quanto queriam e ele nem reagia, sempre se ficava quedo
e mudo: Verdade, verdadinha, ao cabo e ao resto, não passava dum reles cobarde.
Só de pensar na mulher e no filho, sentia a cara arder de vergonha e o corpo
alagado em suores frios: Rico chefe de família, não haja dúvida! Ah, mas aquele
Ricoca!... A raiva que lhe tinha! E o outro, esse Mazorro do diabo, não era
melhor... Pudesse ele! Tinha que poder: ou arranjava coragem para tirar
vingança daqueles dois, ou deitava-se ao mar. E, noite após noite, foi
acumulando projectos, imaginando torturas... Mas vinha a manhã e era como se o
vento marítimo lhe apagasse o lume das veias: cada dia mais amarfanhado, mais
triste. Uma miséria, uma vergonha! Aquilo tinha que acabar: ou ele, ou os
outros dois! Daquela noite não passaria. Mas como? Sòzinho, apenas com as suas
próprias forças, não podia: estava mais que visto.
E, contra o seu costume, naquela tarde, logo ao jantar,
bebeu fartamente. E depois continuou... até sentir fósforos de lume
acenderem-se-lhe na cabeça. Os da companha, admirados, riam e davam-lhe
palmadas nas costas. Então, veio o Ricoca: “Eh, Albino! Eh, Algarvio!,
Atão o que é isso, home? Queres afogar as mágoas?... Calem-se praí, rapazes: Na
sabem que ele inda na recebeu cartas da família? São coisas qu’acontecem a
calquer mortal: Se calhar a mulher...“
E os risos chocarreiros apertaram-no, como um círculo de
chumbo a ferver. Um pouco cambaleante, o Albino conseguiu erguer-se à altura do
cozinheiro: olhos nos olhos do inimigo, as mãos contraídas nos bolsos, os
dentes arreganhados como os dum lobo, o “algarvio“, por momentos e em
silêncio, bafejou com o seu hálito azul espesso a cara surpreendida do Ricoca;
depois, de súbito, soltou uma gargalhada impressionante, estridente e sacudida
como um soluço e, sem palavra, afastou-se precipitadamente dali. Desta vez os
pescadores não chicanaram: antes ficaram calados, inquietos, num vago
pressentimento de perigo.
E realmente foi nessa mesma noite (quantos, passados já mais de quinze anos,
ainda a recordam angustiados!) que o Albino, mais conhecido no mar pelo “algarvio“, esfaqueou barbaramente, enquanto dormiam nos beliches, o
cozinheiro Ricoca e o seu ajudante Mazorro: Cego de fúria, bêbado de vinho e de
sangue, deu facadas à toa, no peito, no pescoço... por onde achou carne
penetrável! Quando, enfim, conseguiram arrancar-lhe a lâmina das mãos, o Albino
mostrava a face tinta de vermelho e, em uivos lamentosos, chorando e rindo
convulsivamente, repetia baixinho: “Ai a minha mulher... ai, o mê
filhinho... estão desgraçados, estão desgraçados!...“
E o “algarvio“ foi logo amarrado ao mastro do
meio, com guarda permanente. Toda a noite ondeou, em volta do assassino, uma
vaga crepitante de archotes. O vigia recebera ordem para disparar contra quem
quer que tocasse no preso: Só por isso, o Albino não foi estrangulado naquele
anel de lume, movediço e feroz. Quando a madrugada veio, o Albino, esfarrapado,
sujo de sangue, estava roxo de frio e de terror! A cada ameaça, a cada
impropério, a cada escarro que lhe lançavam os da companha, o homem só gemia: “Ai, o mê filhinho... ai, o mê filhinho!...“ Mais não dizia. E, nem a
neve que incessantemente caía, nem as ondas do mar que mais duma vez o
cobriram, puderam limpá-lo daquele sangue.
Depois levaram-no para o “Gil Eannes“. Aí, mais
compreensivos, deixavam-no andar à solta pelo navio. Mas ele nunca mais quis
falar. E mal comia. De noite, ouviam-no chorar. O comandante, condoído, tentava
animá-lo: o Albino sorria tristemente, abanava a cabeça e, sem palavra, punha
os olhos no chão. Assim sempre. Foi ainda com este mesmo sorriso triste, sem
ódio nem fúria, que, naquela manhã de procela, o Albino galgou a amurada do “Gil
Eannes“ para se lançar ao mar revolto. Houve quem o tivesse visto, neste preciso
momento: e todos afirmam que ele cumpriu o acto serenamente, sem a costumeira
precipitação desesperada, sem a mínima atitude ritual, nada disso...simples ,
naturalmente, com o tal sorriso triste e infantil a chorar-lhe nos lábios. Lá
ficou. Não foi possível salvá-lo….“
Bernardo Santareno
Bernardo Santareno
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