segunda-feira, 17 de outubro de 2016

OUTROS CONTOS

«Cidade Líquida», por João Tordo.

«Cidade Líquida»
Por João Tordo

901- «CIDADE LÍQUIDA»

Nos meus últimos dias em casa com a mulher que deixou de ser minha lembrei-me, em diversas ocasiões, de Roque dos Santos. Tínhamo-nos conhecido em Veneza, no princípio do Verão, num restaurante à beira da água. Eu apresentara-me descaradamente; ele, debruçado sobre esparguete com anchovas, respondera com educação. Depois passámos uma tarde inteira a beber e, no final, reflectindo nas coisas que com ele descobri, decidi separar-me. Essa história existe e está contada algures, num molho de papéis perdidos. Uma noite, deitado no sofá do escritório que eu improvisara no quarto desocupado que havíamos reservado para a chegada de um improvável filho, vi um longo documentário sobre os Beatles. O documentário durava quase oito horas; passei a noite acordado. 

Cheguei à conclusão de que Roque fazia-me lembrar George Harrison (ou talvez fosse George Harrison quem fizesse lembrar Roque, embora o músico tivesse uma bondade no olhar completamente ausente dos olhos do realizador). Concluí, mais tarde, que era a maneira de falar que me recordava de Roque: a voz ligeiramente arrastada e depois rematando as palavras mais importantes; também o formato das sobrancelhas e a expressão de alguma ausência. Na verdade, não havia nada de especial em Roque. Mas o que haveria de especial em Harrison? Roque era baixo, despenteado, carrancudo, tinha a barba sempre por fazer; era igual a milhares de homens que todos os dias passavam na rua. E, contudo, eu via-o em toda a parte, destacado, como uma coisa iluminada no meio de um corredor escuro. Via-o na esquina e no café; via-o no metropolitano e na barbearia. Um dia acordei de manhã e vi-o no espelho da minha casa de banho. O meu coração saltou e disse um palavrão. Depois tapei a boca para não acordar a minha mulher. No espelho estava apenas eu, ou a minha imagem, porém, durante a fracção de um momento, esta parecera estar sobreposta por outra, um rosto sobre um rosto, ou o meu rosto sobre uma sombra que habitava o espelho do outro lado. 

Roque tinha estado ali durante um fugaz momento e, depois, desaparecera deixando um rasto sinistro de si mesmo. Numa outra noite fui a uma loja e comprei o filme Cidade Líquida. Revi-o sozinho, depois de jantar em pé, ao balcão da cozinha. A minha mulher não estava em casa, mas preferi vê-lo no escritório, de porta fechada. Pensei, enquanto via as imagens a preto e branco saturadas que apareciam no pequeno ecrã de uma televisão antiga, que a memória sofre distorções incompreensíveis mesmo para aqueles que se consideram sãos (como eu me julgava então) e que essas distorções reforçam apenas o sentimento de que a vida é uma ficção escrita diariamente na qual tudo se torce e retorce de acordo com a vontade de alguém. Alguém que não somos nós; que não podemos ser nós. Se o homem busca a verdade e no interior do homem habita a verdade, então no interior do homem existe também uma cortina que a oculta. O filme era completamente diferente do que eu recordava. Agora tinha a certeza (mas teria?) de que era o primeiro filme que vira com a minha mulher, pois só a promessa de um amor pode alterar de forma tão significativa uma evocação. 

José Duchamp e Teresa Worthless — que, no filme, chamavam-se José e Teresa — eram, de facto amantes, embora a inundação progressiva da cidade não fosse provocada pelo amor, mas sim pelo desamor. Há poucos diálogos, quase nenhuns: é uma história de fugas e perseguições. José segue Teresa pela cidade, uma Veneza desabitada tão diferente daquela que eu conhecera, e via-a encontrar-se com outro homem. Num beco escuro, enquanto José observa, Teresa põe-se de joelhos e faz sexo oral a esse homem, um estrangeiro de pele escura e barba cerrada. O chão está coberto de água e ouvimos o chapinhar dos joelhos dela e a respiração pesada do homem. Noutro momento, entra numa igreja branca e cospe sobre as imagens dos santos; com as unhas arranha a talha dourada. José, aparentemente religioso, senta-se ao fundo da nau e persigna-se. Noutras vezes, Teresa persegue José, sem sabermos o porquê da mudança de perspectiva. José entra em vários bares e bebe desesperadamente, como se tentasse anular a realidade; não é claro que o actor não esteja, de facto, a beber. Depois deambula ao acaso, caindo às esquinas e para cima dos transeuntes. Teresa observa-o à distância e não intervém, mesmo quando um homem sentado num degrau, no qual José tropeça pela segunda vez, se levanta e o agride com um soco violento. Essa cena termina com o actor num beco escuro e inundado, em tijolo de pedra, onde cai redondo e adormece, a água tapando-o até ao pescoço. No plano seguinte, José está a correr por uma rua estreitíssima e ouvem-se as vozes iradas de um grupo que o persegue: roubou uma carteira a um de três homens de aparência árabe. Teresa corre atrás do grupo, desesperada, como se fugisse de uma espécie de morte, mas as vozes evadem-se e desaparecem na noite aquática e perde-os de vista. Ficamos com ela, sozinha, no meio de uma praça deserta. José e Teresa: o único objectivo dos amantes parece ser magoarem-se e magoarem-se novamente, até o destino estar cumprido. E, novamente, a cortina que oculta a verdade. O final, ou destino, ou o único momento que parecem verdadeiramente partilhar, abraçados em torno do campanário de uma igreja enquanto a água toma a cidade, era também ele distinto da minha recordação. José e Teresa não se beijam. Ficam a olhar-se com alguma coisa parecida com desprezo, mas também com a dor demencial da perda: a perda do outro, a perda do tempo, a perda do tempo de vida. Deixei o genérico passar até ao final mas devo ter adormecido antes de terminar porque, de madrugada, despertei com a chuva e o restolho de um ecrã ligado sem qualquer sinal à Terra. 

Encontrei um apartamento na Baixa da cidade. Era um quinto andar na Rua dos Correeiros, umas águas-furtadas com cheiro a mofo e a gás canalizado. Quando disse à senhoria a minha profissão ela olhou-me com suspeita. Professor de quê? De Filosofia. E quer vir para aqui? Quero. Vai-se a ver e quer é estar sozinho com as suas filosofias. A preocupação da senhora, praticamente uma anciã, era compreensível. O prédio parecia quase desabitado; à noite, a Baixa variava entre um silêncio próprio dos túmulos e os gritos de dor existencial de um ou outro bêbedo desgovernado que rompiam o negrume das minhas noites pombalinas. A porta do prédio era gigante, quase desmesurada para a força de um homem: tinha uma chave enorme, grande como um badalo, como se guardasse a masmorra de um dragão, que fazia rodar uma pesada fechadura. A porta chiava e chiava. Não havia elevador, e as escadas eram bafientas e esburacadas. Havia muito tempo que aquele prédio morrera, mas era como um espírito ignorante da sua própria morte. Só tinha um vizinho. Ele vivia no andar por cima do meu e tomava vários banhos de imersão por dia. Ou, pelo menos, era isso que eu presumira. Ao final da tarde, quando a cidade escurecia de tristeza, a água começava a correr e corria durante uma ou duas horas, talvez mais. Depois escutava o gotejar incessante da água nos canos. 

Pingava a noite toda e penetrava- -me os sonhos. Uma noite, depois de eu chegar a casa da escola, prestes a matar Espinoza e a amaldiçoar Kant, tocaram à porta. Levantei-me do sofá onde adormecia um sonho proscrito e fui abrir. À porta estava um mensageiro que me entregou um telegrama cantado. 

Enquanto o homem dançava e batia palmas não pude deixar de imaginar o que seria ter aquela profissão; deu-me vontade de chorar. O recado era de Roque dos Santos, convidando-me para uma projecção em sua casa. Não fazia ideia de como saberia ele onde eu viva; também não o perguntei ao mensageiro, que parecia um rapaz à beira do abismo. A mensagem convidava-me para a projecção de um filme em casa do realizador. Cheguei mais cedo do que devia. Toquei à campainha. Roque abriu a porta em cuecas, coçando com a mão direita o peito encovado, o cabelo comprido todo despenteado. 

Harrison, pensei. Disse-me para entrar e desapareceu por um corredor escuro. Fui na direcção da luz. 

Embora fosse noite lá fora, a sala, iluminada por um ecrã gigante no qual passavam imagens desfocadas de ruas, imitava a claridade de uma manhã de Inverno. Havia uma mulher sentada num sofá. Apresentei-me e, depois, julguei reconhecê-la, embora somente os olhos me fossem familiares. 

Lembrei-me de uma praça deserta e do chapinhar da água: eram os olhos de Teresa Worthless. 

Contudo, tudo o resto mudara nela, como se o tempo fosse uma onda catastrófica de detritos que cortam e rasgam; o rosto, outrora belo, era agora uma máscara de crueldade, apertada por uma maquilhagem excessiva; os lábios gritavam vermelho, as comissuras gretadas; o nariz, como sempre sucede com a idade, tornara-se mais pequeno e frágil, a cartilagem parecendo querer furar a pele; o cabelo era palha negra e armada, sem sinal de movimento. Mas os olhos permaneciam os mesmos. 

Fiz umas quantas perguntas mas a mulher limitou-se a acender um cigarro atrás do outro, apagando as beatas manchadas de batom num cinzeiro que mantinha ao colo. Perguntei-me por Roque, mas não havia sinal dele. Cedo a casa começou a encher-se de gente. Ninguém abria a porta e também ninguém tocava: bastava empurrar, a porta encontrava-se aberta. Um homem gordo e calvo trouxe um projector e, depois de o montar, começou a passar um filme de Roque dos Santos que se chamava O Homem da Linha Eléctrica. O filme era a cores, mas as cores estavam desbotadas, quase mortas; folhas decadentes no Outono, sem futuro. Não tinha história. Limitava-se a seguir o dia-a-dia de um homem que subia aos postes de electricidade e manipulava os fios com várias ferramentas. Depois ia para casa, jantava sozinho, dormia e, no dia seguinte, tornava a fazer o mesmo. Era difícil dizer se o filme era ficção ou um documentário. Ninguém parecia prestar atenção à projecção. A sala estava cheia, quase demasiado cheia, de gente mais nova do que eu, certamente mais nova do que Roque dos Santos. Ninguém parecia importar-se com a ausência do anfitrião: bebiam das garrafas e conversavam muito alto, abafando os sons minimalistas do filme. Procurei por Teresa Worthless no sofá e não a encontrei; presumi que, com a chegada dos convivas, tivesse decidido partir. Quando dei por mim estava encostado à parede, espremido por corpos, procurando desesperadamente não entornar um copo de cerveja. As pessoas não paravam de chegar e, a certa altura, vi uma rapariga desmaiar do sufoco. Em redor dela abriu-se uma clareira e, depois, foi levada em ombros para a rua. 

Senti que não conseguia respirar: uma mulher muito grande, vestida de veludo púrpura, apertava-me como se eu não existisse ou fosse um pedaço de mobília. A muito custo atravessei a sala. Cheirei perfumes nauseabundos e o suor dos homens. No ecrã, a personagem da linha eléctrica despertava. 

Avancei na direcção do corredor. Quando entrei nele, o barulho ensurdecedor da sala pareceu desvanecer-se. A escuridão era completa. Tacteei as paredes frias; a sensação, na ponta dos dedos, foi reconfortante. Encontrei uma porta e abri-a. Dava para um quarto na penumbra; através de uma janela alta entrava a luz distante de um candeeiro de rua. Vi uma cama desarrumada e alguns livros espalhados pelo chão. Chamei: Roque. Estou aqui, respondeu ele. A voz surgiu da direcção do armário. Aproximei-me: as portas estavam fechadas. Dentro do armário? Sim, disse a voz. O que estás aí a fazer? Estou escondido, respondeu ele. A ver se me encontravam! Encontrei-te, disse-lhe, sentindo-me ridículo. E o filme?, perguntou ele. Uma linha de fumo emergiu do interstício das portas; Roque fumava lá dentro. Não consegui ver todo. Está muita gente. Canalhas, resmungou. Encontrei a Teresa, disse-lhe. Mas foi-se embora. Quem? Uma nova linha de fumo emergiu do interior do armário; aproximei-me e respirei-a. A actriz de Cidade Líquida. A Teresa Worthless, insisti. Uma batida forte e seca na madeira do armário fez-me dar um salto para trás. Idiota, disse ele. A Teresa morreu há mais de dez anos. Cancro do pulmão. Desculpa, lamentei. Era uma mulher muito parecida com ela. Estava sentada na sala quando cheguei. Não havia ninguém na sala quando chegaste. Então era um fantasma. Então era um fantasma, concordou ele. A porta do armário abriu-se de repente e, do interior, surgiu a mão de Roque dos Santos. Levei um estalo com alguma força, uma chapada de mão aberta que me deixou atordoado durante uns segundos. A porta do armário fechou-se imediatamente a seguir e, poucos segundos depois, Roque dos Santos ressonava no interior. De repente senti-me muito cansado, como se tivesse atravessado um deserto ou pernoitado num campo de batalha. Sentei-me no chão, de costas para o armário, observando a luz do candeeiro de rua que, lá fora, morria de intermitência. Pensei, sem saber porquê, na minha mulher. Pensei que, tal como Teresa, também ela era uma ilusão de realidade, uma inconsistência; um equívoco no frágil tecido das coisas. Os sons desapareceram todos e fez-se silêncio. Uma brisa entrou pela janela aberta e, pela primeira vez em muito tempo, senti frio. O Verão chegava ao fim. Fechei os olhos e adormeci. Quando acordei ainda era noite: pé ante pé, saí do quarto, escutando ainda o ressonar distante do outro, atravessei o corredor escuro, desembarquei na sala que estava vazia e cheirava a fumo, a álcool e a suor. O projector permanecia ligado, a brancura projectada na parede tremia. Quando saí para a rua começou a chover, uma chuva fria que anunciava uma estação de melancolia. Cidade Líquida, ocorreu-me, e sorri. Era a minha estação preferida.

João Tordo

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