«Cidade Líquida»
Por João Tordo
901- «CIDADE LÍQUIDA»
Nos meus últimos dias em casa com a mulher que deixou de ser
minha lembrei-me, em diversas ocasiões, de Roque dos Santos. Tínhamo-nos
conhecido em Veneza, no princípio do Verão, num restaurante à beira da água. Eu
apresentara-me descaradamente; ele, debruçado sobre esparguete com anchovas,
respondera com educação. Depois passámos uma tarde inteira a beber e, no final,
reflectindo nas coisas que com ele descobri, decidi separar-me. Essa história
existe e está contada algures, num molho de papéis perdidos. Uma noite, deitado
no sofá do escritório que eu improvisara no quarto desocupado que havíamos
reservado para a chegada de um improvável filho, vi um longo documentário sobre
os Beatles. O documentário durava quase oito horas; passei a noite acordado.
Cheguei à conclusão de que Roque fazia-me lembrar George Harrison (ou talvez
fosse George Harrison quem fizesse lembrar Roque, embora o músico tivesse uma
bondade no olhar completamente ausente dos olhos do realizador). Concluí, mais tarde,
que era a maneira de falar que me recordava de Roque: a voz ligeiramente
arrastada e depois rematando as palavras mais importantes; também o formato das
sobrancelhas e a expressão de alguma ausência. Na verdade, não havia nada de
especial em Roque. Mas o que haveria de especial em Harrison? Roque era baixo,
despenteado, carrancudo, tinha a barba sempre por fazer; era igual a milhares
de homens que todos os dias passavam na rua. E, contudo, eu via-o em toda a
parte, destacado, como uma coisa iluminada no meio de um corredor escuro. Via-o
na esquina e no café; via-o no metropolitano e na barbearia. Um dia acordei de
manhã e vi-o no espelho da minha casa de banho. O meu coração saltou e disse um
palavrão. Depois tapei a boca para não acordar a minha mulher. No espelho
estava apenas eu, ou a minha imagem, porém, durante a fracção de um momento,
esta parecera estar sobreposta por outra, um rosto sobre um rosto, ou o meu
rosto sobre uma sombra que habitava o espelho do outro lado.
Roque tinha estado
ali durante um fugaz momento e, depois, desaparecera deixando um rasto sinistro
de si mesmo. Numa outra noite fui a uma loja e comprei o filme Cidade Líquida.
Revi-o sozinho, depois de jantar em pé, ao balcão da cozinha. A minha mulher
não estava em casa, mas preferi vê-lo no escritório, de porta fechada. Pensei,
enquanto via as imagens a preto e branco saturadas que apareciam no pequeno
ecrã de uma televisão antiga, que a memória sofre distorções incompreensíveis
mesmo para aqueles que se consideram sãos (como eu me julgava então) e que
essas distorções reforçam apenas o sentimento de que a vida é uma ficção
escrita diariamente na qual tudo se torce e retorce de acordo com a vontade de
alguém. Alguém que não somos nós; que não podemos ser nós. Se o homem busca a
verdade e no interior do homem habita a verdade, então no interior do homem
existe também uma cortina que a oculta. O filme era completamente diferente do
que eu recordava. Agora tinha a certeza (mas teria?) de que era o primeiro filme
que vira com a minha mulher, pois só a promessa de um amor pode alterar de
forma tão significativa uma evocação.
José Duchamp e Teresa Worthless — que, no
filme, chamavam-se José e Teresa — eram, de facto amantes, embora a inundação
progressiva da cidade não fosse provocada pelo amor, mas sim pelo desamor. Há
poucos diálogos, quase nenhuns: é uma história de fugas e perseguições. José
segue Teresa pela cidade, uma Veneza desabitada tão diferente daquela que eu
conhecera, e via-a encontrar-se com outro homem. Num beco escuro, enquanto José
observa, Teresa põe-se de joelhos e faz sexo oral a esse homem, um estrangeiro
de pele escura e barba cerrada. O chão está coberto de água e ouvimos o
chapinhar dos joelhos dela e a respiração pesada do homem. Noutro momento,
entra numa igreja branca e cospe sobre as imagens dos santos; com as unhas
arranha a talha dourada. José, aparentemente religioso, senta-se ao fundo da
nau e persigna-se. Noutras vezes, Teresa persegue José, sem sabermos o porquê
da mudança de perspectiva. José entra em vários bares e bebe desesperadamente,
como se tentasse anular a realidade; não é claro que o actor não esteja, de
facto, a beber. Depois deambula ao acaso, caindo às esquinas e para cima dos
transeuntes. Teresa observa-o à distância e não intervém, mesmo quando um homem
sentado num degrau, no qual José tropeça pela segunda vez, se levanta e o
agride com um soco violento. Essa cena termina com o actor num beco escuro e
inundado, em tijolo de pedra, onde cai redondo e adormece, a água tapando-o até
ao pescoço. No plano seguinte, José está a correr por uma rua estreitíssima e
ouvem-se as vozes iradas de um grupo que o persegue: roubou uma carteira a um
de três homens de aparência árabe. Teresa corre atrás do grupo, desesperada,
como se fugisse de uma espécie de morte, mas as vozes evadem-se e desaparecem
na noite aquática e perde-os de vista. Ficamos com ela, sozinha, no meio de uma
praça deserta. José e Teresa: o único objectivo dos amantes parece ser
magoarem-se e magoarem-se novamente, até o destino estar cumprido. E,
novamente, a cortina que oculta a verdade. O final, ou destino, ou o único
momento que parecem verdadeiramente partilhar, abraçados em torno do campanário
de uma igreja enquanto a água toma a cidade, era também ele distinto da minha
recordação. José e Teresa não se beijam. Ficam a olhar-se com alguma coisa
parecida com desprezo, mas também com a dor demencial da perda: a perda do
outro, a perda do tempo, a perda do tempo de vida. Deixei o genérico passar até
ao final mas devo ter adormecido antes de terminar porque, de madrugada,
despertei com a chuva e o restolho de um ecrã ligado sem qualquer sinal à
Terra.
Encontrei um apartamento na Baixa da cidade. Era um quinto andar na Rua
dos Correeiros, umas águas-furtadas com cheiro a mofo e a gás canalizado.
Quando disse à senhoria a minha profissão ela olhou-me com suspeita. Professor
de quê? De Filosofia. E quer vir para aqui? Quero. Vai-se a ver e quer é estar
sozinho com as suas filosofias. A preocupação da senhora, praticamente uma
anciã, era compreensível. O prédio parecia quase desabitado; à noite, a Baixa
variava entre um silêncio próprio dos túmulos e os gritos de dor existencial de
um ou outro bêbedo desgovernado que rompiam o negrume das minhas noites pombalinas.
A porta do prédio era gigante, quase desmesurada para a força de um homem:
tinha uma chave enorme, grande como um badalo, como se guardasse a masmorra de
um dragão, que fazia rodar uma pesada fechadura. A porta chiava e chiava. Não
havia elevador, e as escadas eram bafientas e esburacadas. Havia muito tempo
que aquele prédio morrera, mas era como um espírito ignorante da sua própria
morte. Só tinha um vizinho. Ele vivia no andar por cima do meu e tomava vários
banhos de imersão por dia. Ou, pelo menos, era isso que eu presumira. Ao final
da tarde, quando a cidade escurecia de tristeza, a água começava a correr e
corria durante uma ou duas horas, talvez mais. Depois escutava o gotejar
incessante da água nos canos.
Pingava a noite toda e penetrava- -me os sonhos.
Uma noite, depois de eu chegar a casa da escola, prestes a matar Espinoza e a
amaldiçoar Kant, tocaram à porta. Levantei-me do sofá onde adormecia um sonho proscrito
e fui abrir. À porta estava um mensageiro que me entregou um telegrama cantado.
Enquanto o homem dançava e batia palmas não pude deixar de imaginar o que seria
ter aquela profissão; deu-me vontade de chorar. O recado era de Roque dos
Santos, convidando-me para uma projecção em sua casa. Não fazia ideia de como
saberia ele onde eu viva; também não o perguntei ao mensageiro, que parecia um
rapaz à beira do abismo. A mensagem convidava-me para a projecção de um filme
em casa do realizador. Cheguei mais cedo do que devia. Toquei à campainha.
Roque abriu a porta em cuecas, coçando com a mão direita o peito encovado, o
cabelo comprido todo despenteado.
Harrison, pensei. Disse-me para entrar e
desapareceu por um corredor escuro. Fui na direcção da luz.
Embora fosse noite
lá fora, a sala, iluminada por um ecrã gigante no qual passavam imagens
desfocadas de ruas, imitava a claridade de uma manhã de Inverno. Havia uma
mulher sentada num sofá. Apresentei-me e, depois, julguei reconhecê-la, embora
somente os olhos me fossem familiares.
Lembrei-me de uma praça deserta e do
chapinhar da água: eram os olhos de Teresa Worthless.
Contudo, tudo o resto
mudara nela, como se o tempo fosse uma onda catastrófica de detritos que cortam
e rasgam; o rosto, outrora belo, era agora uma máscara de crueldade, apertada
por uma maquilhagem excessiva; os lábios gritavam vermelho, as comissuras
gretadas; o nariz, como sempre sucede com a idade, tornara-se mais pequeno e
frágil, a cartilagem parecendo querer furar a pele; o cabelo era palha negra e
armada, sem sinal de movimento. Mas os olhos permaneciam os mesmos.
Fiz umas
quantas perguntas mas a mulher limitou-se a acender um cigarro atrás do outro,
apagando as beatas manchadas de batom num cinzeiro que mantinha ao colo.
Perguntei-me por Roque, mas não havia sinal dele. Cedo a casa começou a encher-se
de gente. Ninguém abria a porta e também ninguém tocava: bastava empurrar, a
porta encontrava-se aberta. Um homem gordo e calvo trouxe um projector e,
depois de o montar, começou a passar um filme de Roque dos Santos que se
chamava O Homem da Linha Eléctrica. O filme era a cores, mas as cores estavam
desbotadas, quase mortas; folhas decadentes no Outono, sem futuro. Não tinha
história. Limitava-se a seguir o dia-a-dia de um homem que subia aos postes de
electricidade e manipulava os fios com várias ferramentas. Depois ia para casa,
jantava sozinho, dormia e, no dia seguinte, tornava a fazer o mesmo. Era
difícil dizer se o filme era ficção ou um documentário. Ninguém parecia prestar
atenção à projecção. A sala estava cheia, quase demasiado cheia, de gente mais
nova do que eu, certamente mais nova do que Roque dos Santos. Ninguém parecia
importar-se com a ausência do anfitrião: bebiam das garrafas e conversavam
muito alto, abafando os sons minimalistas do filme. Procurei por Teresa
Worthless no sofá e não a encontrei; presumi que, com a chegada dos convivas,
tivesse decidido partir. Quando dei por mim estava encostado à parede,
espremido por corpos, procurando desesperadamente não entornar um copo de
cerveja. As pessoas não paravam de chegar e, a certa altura, vi uma rapariga
desmaiar do sufoco. Em redor dela abriu-se uma clareira e, depois, foi levada
em ombros para a rua.
Senti que não conseguia respirar: uma mulher muito
grande, vestida de veludo púrpura, apertava-me como se eu não existisse ou
fosse um pedaço de mobília. A muito custo atravessei a sala. Cheirei perfumes
nauseabundos e o suor dos homens. No ecrã, a personagem da linha eléctrica
despertava.
Avancei na direcção do corredor. Quando entrei nele, o barulho
ensurdecedor da sala pareceu desvanecer-se. A escuridão era completa. Tacteei
as paredes frias; a sensação, na ponta dos dedos, foi reconfortante. Encontrei
uma porta e abri-a. Dava para um quarto na penumbra; através de uma janela alta
entrava a luz distante de um candeeiro de rua. Vi uma cama desarrumada e alguns
livros espalhados pelo chão. Chamei: Roque. Estou aqui, respondeu ele. A voz
surgiu da direcção do armário. Aproximei-me: as portas estavam fechadas. Dentro
do armário? Sim, disse a voz. O que estás aí a fazer? Estou escondido,
respondeu ele. A ver se me encontravam! Encontrei-te, disse-lhe, sentindo-me
ridículo. E o filme?, perguntou ele. Uma linha de fumo emergiu do interstício
das portas; Roque fumava lá dentro. Não consegui ver todo. Está muita gente. Canalhas,
resmungou. Encontrei a Teresa, disse-lhe. Mas foi-se embora. Quem? Uma nova
linha de fumo emergiu do interior do armário; aproximei-me e respirei-a. A
actriz de Cidade Líquida. A Teresa Worthless, insisti. Uma batida forte e seca
na madeira do armário fez-me dar um salto para trás. Idiota, disse ele. A
Teresa morreu há mais de dez anos. Cancro do pulmão. Desculpa, lamentei. Era
uma mulher muito parecida com ela. Estava sentada na sala quando cheguei. Não
havia ninguém na sala quando chegaste. Então era um fantasma. Então era um
fantasma, concordou ele. A porta do armário abriu-se de repente e, do interior,
surgiu a mão de Roque dos Santos. Levei um estalo com alguma força, uma chapada
de mão aberta que me deixou atordoado durante uns segundos. A porta do armário
fechou-se imediatamente a seguir e, poucos segundos depois, Roque dos Santos
ressonava no interior. De repente senti-me muito cansado, como se tivesse
atravessado um deserto ou pernoitado num campo de batalha. Sentei-me no chão,
de costas para o armário, observando a luz do candeeiro de rua que, lá fora,
morria de intermitência. Pensei, sem saber porquê, na minha mulher. Pensei que,
tal como Teresa, também ela era uma ilusão de realidade, uma inconsistência; um
equívoco no frágil tecido das coisas. Os sons desapareceram todos e fez-se
silêncio. Uma brisa entrou pela janela aberta e, pela primeira vez em muito
tempo, senti frio. O Verão chegava ao fim. Fechei os olhos e adormeci. Quando
acordei ainda era noite: pé ante pé, saí do quarto, escutando ainda o ressonar
distante do outro, atravessei o corredor escuro, desembarquei na sala que
estava vazia e cheirava a fumo, a álcool e a suor. O projector permanecia
ligado, a brancura projectada na parede tremia. Quando saí para a rua começou a
chover, uma chuva fria que anunciava uma estação de melancolia. Cidade Líquida,
ocorreu-me, e sorri. Era a minha estação preferida.
João Tordo
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