«O Rio», por Julio Cortázar.
«O Rio»
Moema/ Vitor Meirelles
891- «O RIO»
E sim, parece que é assim, que te foste embora dizendo não
sei o quê, que te ias atirar ao Sena, qualquer coisa desse tipo, uma dessas
frases em plena noite, misturadas com o lençol e de boca pastosa, quase sempre
na escuridão ou com qualquer coisa de mão ou de pé roçando o corpo daquele que
quase nem ouve, porque há já tanto tempo que quase nem te oiço quando dizes
essas coisas, coisas que vêm do outro lado dos meus olhos fechados, do sono que
me afunda novamente. Então está bem, que importa que tenhas partido, se te
afogaste ou se ainda andas pelos cais olhando a água, e além disso não tenho a
certeza, pois estás aqui adormecida respirando entrecortadamente, mas então não
partiste quando partiste a certa altura na noite antes de eu me perder no sono,
porque tinhas partido dizendo alguma coisa, que te ias afogar no Sena, ou seja
tiveste medo, arrependeste-te e de súbito estás aqui quase a tocar-me, e
moves-te ondulando como se alguma coisa trabalhasse suavemente no teu sono,
como se verdadeiramente sonhasses que partiste e que após tudo isto chegaste ao
cais e te atiraste à agua. Qualquer coisa assim, novamente, para adormeceres
depois com a cara encharcada por um choro estúpido, até às onze da manhã, hora
em que trazem o jornal com as notícias dos que de facto se afogaram.
Dás-me
vontade de rir, coitada. As tuas determinações trágicas, essa maneira de andar
a bater às portas como uma actriz de tournées de província, pergunto-me se
realmente acreditas nas tuas ameaças, nas tuas repugnantes chantagens, nas tuas
inesgotáveis cenas patéticas untadas de lágrimas e de adjectivos e de
repetições. Merecias alguém mais dotado do que eu que redarguisse, ver-se-ia
erguer-se então o casal perfeito, com o deleitoso fedor do homem e da mulher
que se destroem enquanto se olham nos olhos para assegurarem o mais precário
adiamento, para sobreviverem ainda e voltarem a tentar e perseguirem
inesgotavelmente a sua verdade de terreno baldio e de restos raspados do fundo
do tacho. Mas, como podes ver, escolho o silêncio, acendo um cigarro e oiço o
que dizes, oiço as tuas queixas (que têm razão de ser, mas que posso eu
fazer?), ou, o que ainda é melhor, vou-me deixando adormecer, quase embalado
pelas tuas previsíveis imprecações, com os olhos semicerrados misturo ainda por
um instante as primeiras vagas dos sonhos com os teus gestos de ridícula camisa
de dormir à luz do candelabro que nos ofereceram quando nos casámos, e julgo
que por fim adormeço e levo comigo, confesso-to quase com amor, a parte mais
aproveitável dos teus movimentos e das tuas denúncias, o som explosivo que te
deforma os lábios lívidos de cólera. Para enriquecer os meus próprios sonhos
onde nunca ninguém se lembra de afogar-se, acredita.
Mas se é
assim pergunto-me o que estás a fazer nesta cama que tinhas decidido abandonar
pela outra mais vasta e mais esquiva. É que agora dormes, moves de quando em
quando uma perna que vai mudando o desenho do lençol, pareces incomodada com
alguma coisa, não demasiado incomodada, é como um cansaço amargo, os teus
lábios esboçam um esgar de desprezo, deixam escapar o ar entrecortadamente,
recolhem-no a baforadas breves, e julgo que se não estivesse tão exasperado
pelas tuas falsas ameaças admitiria que és outra vez bonita, como se o sono te
devolvesse um pouco do meu lado em que o desejo é possível e até mesmo a
reconciliação ou um novo prazo, qualquer coisa menos turva do que este
amanhecer onde principiam a rolar os primeiros carros e os galos abominavelmente
desnudam a sua horrenda servidão. Não sei, já nem sequer faz sentido perguntar
outra vez se chegaste a partir, se eras tu quem bateu com a porta ao sair no
instante exacto em que eu resvalava no esquecimento, e é talvez por isso que
prefiro tocar-te, não porque duvide de que estás aqui, provavelmente nem
chegaste a sair do quarto, talvez um golpe de vento tenha fechado a porta,
sonhei que partiras enquanto tu, julgando-me acordado, me gritavas a tua ameaça
aos pés da cama. Não é por isso que te toco, na penumbra verde do amanhecer é
quase doce passar uma mão por esse ombro que estremece e me recusa. O lençol
cobre-te pela metade, os meus dedos começam a descer pelo cristalino desenho da
tua garganta, inclinando-me respiro o teu hálito que cheira a noite e a xarope,
não sei como mas os meus braços envolveram-te, oiço um queixume enquanto
arqueias a cintura, resistindo, mas os dois conhecemos demasiado bem este jogo
para acreditarmos nele, é preciso que me abandones a boca que ofega palavras
soltas, de nada serve que o teu corpo amodorrado e vencido lute procurando
escapar-se, somos a tal ponto uma mesma coisa nesse enredo de novelo onde a lã
branca e a lã negra lutam como aranhas num bocal. No lençol que já quase não te
cobre consigo entrever a lufada instantânea que sulca o ar e se perde na sombra
e agora estamos nus, o amanhecer envolve-nos e reconcilia-nos numa só matéria
trémula, mas obstinas-te em lutar, encolhendo-te, lançando os braços por sobre
a minha cabeça, abrindo como num relâmpago as coxas para voltar a fechar as
suas tenazes monstruosas que desejam separar-me de mim mesmo. Tenho de
dominar-te lentamente (e, como sabes, fi-lo sempre com uma graça cerimonial),
vou dobrando os juncos dos teus braços sem magoar-te, cinjo-me ao teu prazer de
mãos crispadas, de olhos enormemente abertos, agora o teu ritmo enfim afunda-se
como um pano de seda em lentos movimentos ondulantes, de profundas borbulhas
subindo até à minha cara, vagamente acaricio o teu cabelo espalhado na
almofada, olho surpreendido a minha mão que jorra na penumbra verde, e antes de
resvalar a teu lado sei que acabam de tirar-te da água, e que é demasiado
tarde, naturalmente, e que jazes sobre as pedras do cais rodeada de sapatos e
de vozes, nua e com as costas no chão, com o teu cabelo encharcado e os teus
olhos abertos.
Julio Cortázar
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