«Uma Gota de Sangue»
Conto de José Régio
939- «UMA GOTA DE SANGUE»
O gigantesco desenho da ponte se lhe debuxava agora à
esquerda, com o seu arco imenso meio afogado no nevoeiro, que adensara. O vento
caíra. E como o crescente da lua se desvanecia no céu brumaceiro, de luar não
havia senão uma frialdade semiluminosa, muito vaga, esparsa. Na grande mancha
negra, lodosa, que era agora o Douro, retorciam-se como longos parafusos em
brasa as luzes de Vila Nova de Gaia. Reflectiam outras luzes espalhadas aqui, ali,
além, pequeninas, ao mesmo tempo esfumadas e nimbadas pela névoa. Junto ao
cais, quase aos pés de Lélito, mais se adivinhava do que distinguia na facha
tenebrosa uma complicação de vultos de barcos. Mas havia aí lume, vozes
abafadas, ele vez em quando um gorgolejo ou chape-chape de água.
Depois das vielas por onde se encafuara, já tudo isto daria a Lélito uma quase
favorável impressão de largueza, companhia, (pois não havia gente nesses
barcos? não era o que ainda o reanimava, sentir a proximidade humana de vez em
quando?) se a dupla inquietação de se achar afastado do centro da cidade, e sem
ver onde poderia esperar a manhã, o não enchesse de cruéis incertezas. Como se
encaminhara, sequer, tão naturalmente, para estes lugares pouco
tranquilizadores?
Não poderia ter ido parar às vias mais concorridas? Decerto haveria aí algum
café aberto, qualquer lugar onde ficasse. Dir-se-ia que um obscuro desígnio do
destino (ou uma impulsão secreta) não só aqui o atraíra, a tais paragens, mas
até nelas o retinha; e que, não obstante os seus terrores, uma curiosidade
ansiosa, doentia, e um desespero e um desleixo de todo o ser – o guiavam nesta
inútil e inesperada peregrinação. Lélito suspeitou que se lhe revelava o gosto
das aventuras perigosas, e que era uma expectativa delas que o dirigia...
Ao cabo de uns momentos verificara não ser o único vadiando à margem do rio. Um
ou outro pequeno grupo se demorava, ainda, nas sombras daquelas portas
escondidas sob antigos arcos; umas abaixo do empedrado negro, ao fundo de quaisquer
degraus, outras rasgadas numa espécie de muralha sobre que se erguiam prédios
estreitos como torres, com varandas de velhas madeiras, ou casarões imundos e
sólidos. Não obstante a amplidão do horizonte em frente, um cheiro igualmente
nauseabundo envolvia todas essas portas, penetrara para sempre essas pedras;
mas aqui cheirava ainda a frutas podres (que iam ficando do mercado diário), pó
de carvão, águas chocas e comidas azedas. Eram, decerto, moradores ou
frequentadores retardatários destes antros, os raros vultos que ainda por ali.
Demoravam.
Ora enquanto, perante estas misérias que pela primeira vez se lhe revelavam tão
completamente, sentia um acre gosto de humilhação atraí-lo aos seus semelhantes
mais infelizes, (aliás nem a sua infelicidade se lhe revelara ainda, ele é que
a estava imaginando) muito bem sentia Lélito que uma particularidade qualquer
nos seus modos, no seu andar, no seu ar – qualquer coisa que, tanto por temor
como por solidariedade com a miséria, procurava agora esconder – irremediavelmente
o apontaria à desconfiança, à hostilidade, ao sarcasmo desses miseráveis.
Com efeito, um vulto que de repente apareceu a seu lado deu-lhe um encontrão.
Era um homem gordo, com olhos agudos que procuraram os seus de perto, como a
perguntarem-lhe o efeito de tal familiaridade. Parecia ter surgido de qualquer
alçapão.
– Desculpe! – disse com uma espécie de insolência na voz rouca.
– Não faz mal... – balbuciou Lélito involuntariamente.
E logo o outro, estendendo a mão para o seu braço:
– Escute lá...
Mas Lélito desandara; acabara por desatar a correr como uma criança apavorada e
perseguida. Quando parou, reconheceu que não pensara em escolher caminho. De
novo metera por uma dessas ruas infaustas que bem quisera evitar. Com um
alvoroço, lembrou-se de levar a mão ao bolso em que tinha toda a sua fortuna.
«Meu Deus!» apelou do fundo de si. Mas a sua fortuna lá estava: duas notas
miúdas, alguns trocos. «Obrigado!» bradou em pensamento. Nestas situações,
(posto nunca Lélito se houvesse achado em nenhuma idêntica) logo entre ele e o
seu Deus mais familiar se estabelecia uma rápida comunicação: pedidos,
agradecimentos, queixas, acusações... Era ridículo, com as suas dúvidas e as
suas pretensões filosóficas! Era ridículo! era ridículo.
Embora semelhante às outras na desoladora aparência das casas, no empedrado
primitivo, a rua em que se achava tinha a vantagem de ser um pouco mais larga;
também a de ser uma ladeira. Lélito sabia que, subindo, se aproximaria do
centro da cidade. Chegou a um terreiro com aspecto arcaico e a fachada, ao
fundo, de uma igreja em ruínas. À primeira vista, era um pequeno largo sem
saída. Julgando que seria obrigado a retroceder, Lélito sobressaltou-se.
Avançou, porém, em direcção à igreja, cuja fachada se erguia na penumbra como
um cenário fantástico; tanto mais que, propriamente, ela quase não tinha senão
fachada. Descobriu ao lado quaisquer escadinhas estreitas que subiam.
Uma figura de mulher, embrulhada num xale, se despegou, então, direita a ele,
da parede da igreja. Tinha qualquer coisa de espectral ou fatal, como se ali o
estivera esperando há anos! há séculos; ou, então, como se pertencera àquelas
mesmas pedras, ou delas nascera. Galgando as escadinhas íngremes, Lélito ainda
pôde perceber que o fantasma o chamava...
Era tempo! era tempo de chegar a qualquer ponto mais ou menos conhecido.
Os seus nervos começavam a desafinar; a sua imaginação a trabalhar em excesso;
de modo que já nele se manifestava com uma intensidade premente, ameaçadora,
aquele senso do estranho que torna medonhas e secretas as próprias coisas mais
triviais. Qualquer ser, ou até um simples objecto, uma árvore, um pormenor de
paisagem, – poderiam nesses momentos apavorar Lélito, revelando o seu segredo.
Isto é: revelando-se, fulgurantemente, misteriosos. Então, as pessoas tomavam a
seus olhos um doairo de aparições (seria real, por exemplo, a mulher que se
despegara da igreja arruinada?) e, o que não era menos perturbante, as próprias
coisas manifestavam fragmentos de seres vivos e desconhecidos, como se nelas
ofegassem pequenos monstros forcejando por se libertarem...
Bem era tempo de chegar a qualquer ponto mais ou menos conhecido!
Felizmente, Lélito acabava de reconhecer a velha Sé naquela grande massa
pesada, escura, diante de que viera ter. Para lá do muro, lá em baixo, muito
vagamente nascia do nevoeiro e da noite um baralhado casario da cidade salpicado
de halos luminosos. Lélito não ignorava que, descendo pelo lado oposto ao que o
trouxera, se aproximaria das ruas mais concorridas, mais modernas... Assim se
valia agora de algumas deambulações empreendidas quando faltava às aulas,
enganando a vigilância do senhor Bento Adalberto. Mas, ao cabo de ter hesitado
uns passos, aflitivamente se agarrou à primeira haste de candeeiro. É que
tivera a impressão de que o chão desatara a correr, e se despenhava sob os seus
pés.
Sentiu, então, uma infinita moleza nas pernas, e um arrepio que lhe corria o
corpo, e recomeçava, se multiplicava em pequenos arrepios consequentes como
breves, repetidas ondulações...
Fora sua intenção chegar à larga praça onde estava o homem de bronze, a cavalo,
(não lhe lembrava agora o nome, – um nome tão conhecido!) e que lhe era o
centro mais familiar do Porto. Aí descansaria um pouco, e poderia tomar uma
decisão. Talvez ainda encontrasse qualquer café aberto, ou lhe valesse a pena
procurar uma pensão, um hotel... Até já pensara em alugar um automóvel (mas
encontrar automóveis, a esta hora?!) que o levasse a Azurara. Afinal, em breve
poderia estar diante de casa. Bateria, acordaria os que há muito dormiam no
profundo aconchego dos velhos quartos familiares; e deixar-se-ia cair de
joelhos no pátio de entrada, (oh, o que ele tinha era vontade de se deixar
cair!) quando o pai, alarmado, viesse descendo as escadas de pedra... O pai não
havia de o pôr fora; – e sem dúvida pagaria ao motorista. De momento, é que nem
forças tinha para chegar à praça da estátua equestre, que aliás nem sabia se
era longe.
E ali estava amparado àquele candeeiro, como um bêbedo, e outra vez gritando
aflitivamente do fundo de si: «Meu Deus! meu Deus!» Em razão, talvez, não tanto
do seu estado como da inquietação que lhe ele inspirava, tinha um vazio pesado
na cabeça, uma dor ao fundo da órbita direita, enquanto o angustiava a sensação
agónica de ir vomitar a cada instante. Sobretudo o aterrava a perspectiva de
ali cair, nessa rua deserta, onde só o pudesse encontrar um polícia, um vadio
nocturno, ou um desses desgraçados que andam varrendo ruas a desoras...
Fechara os olhos por segundos, a testa contra o candeeiro. Foi quando ouviu a
seu lado:
– Boa noite, amorzinho.
Vagamente reconheceu aqueles olhos vidrados, grandes, como de quem tem febre, naquela
face muito chupada e vermelha de tintas. Era a mulher do vestido claro, que já
o saudara com a mesma fórmula.
Relanceou, então, à roda, pela rua deserta, pelos velhos prédios, os olhos
enevoados. Compreendeu que já passara naquela rua; diria ele que há muitas
horas! Mas essa mulher de vestido claro, leve, numa noite assim fria, lá
continuava no seu passeio profissional: Ainda não seduzira ninguém; ou já
seduzira, e recomeçara a tentar a sorte. A complexa impressão que da primeira
vez lhe produzira – receio do desconhecido, pudor da virgindade tentada,
repulsa física por tal género de mulheres, curiosidade e atracção precursoras
do desejo – a complexa impressão que da primeira vez lhe produzira, e de que
nem ele chegara bem a dar conta, é que já lha não podia produzir: Agora, Lélito
estava simplesmente esgotado; exausto! Precisava de uma cama e do socorro, ao
menos da companhia, de qualquer ser humano; até daquele.
– Bebeste... – disse a mulher, inclinando-se um pouco a examiná-lo. Como ele
nada dizia, limitando-se a olhá-la com os mesmos olhos enevoados e tristes,
acrescentou:
– Sei de um quarto aqui perto, muito em conta...
– ...Perto? muito em conta...? – repetiu Lélito inconscientemente, como num
eco.
– São dois passos – respondeu ela, animando-se imediatamente. E logo lhe pousou
a mão no braço, apertando-lho de leve, num movimento quase natural de carinho.
A esperança de ganhar a noite vibrara na sua voz um pouco rouca.
Decerto ainda não seduzira ninguém.
Com um esforço para se desencostar do candeeiro, Lélito murmurou, à laia de
desculpa:
– Senti-me mal... estou doente...
– Ora! – fez ela - sei o que isso é: bebeste.
Depois de hesitar um segundo, perguntou:
– Tens dinheiro?
– Algum... – balbuciou ele baixando ainda a voz, de modo que mal se ouvia; e
dir-se-ia que, na verdade, receava ser ouvido. – Mas tenho de seguir para
Azurara.
Preciso de guardar para o comboio... o comboio parte cedo... de madrugada...
– Bem! o comboio pouco é. E há necessidade de ires assim tão cedo? Simpatizo
contigo, palavrinha. Gosto de um rapazinho novo como tu. Quem te mandou beber
de mais? Não deves estar muito habituado... Que idade tens? Mas vais ver que
sei tratar de ti! Sou boa rapariga, acredita; não julgues lá que por andar
nisto...
Isto é um modo de a gente viver!
Agarrara-se-lhe ao braço, era ela quem o ia levando. Lélito deixava-se levar. E
era-lhe agradável não só descansar o corpo sobre o dela, mas também sentir-lhe
na voz um pouco rouca e áspera, de tísica, inflexões quase maternais.
José Régio
José Régio
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