928- «AS SAUDADES QUE TENHO DE INÁCIA»
Não me lembro se já falei de nha Nácia. Mas, se já disse,
repito: não há mulher mais gostosa nesse mundo todo. Nha Nácia é fiambre da
perna. Pxa bem é com ela só, mesmo que mais ninguém seja suficientemente
insensato para afirmar uma coisa assim. Nha Ná- cia é fêmea só para homem que
não tenha medo de cara feia, pois também não deve haver criatura mais
desagradável à vista. Horrível mesmo. Desdentada, engelhada, porca e com mais
bigode do que muito bazófio que anda por aí a presumir nos bares. Fuma cachimbo
de lata e cheira mal das partes, mas faz um amorzinho sab como mais ninguém. É
por isso que, vai-não-vai, dou por mim a suspirar e a pensar nela. Ah!, nha
Nácia, nha Nácia… Já não sei bem como foi que a conheci. A idade é assim mesmo
— um fulano recorda-se de certas coisas como se tivessem sido trás-anteontem e
esquece as outras todas como se nunca tivessem acontecido. Devo tê-la visto por
aí na lida, naquilo que era a lida do antigamente, e ter-lhe falado ou dito
alguma coisa desagradável. Os rapazes sempre tiveram esta forma de lidar com as
mulheres feias. Escarnecem e humilham. No meu tempo, eu não era diferente de
qualquer um. Derramava mel nos calcanhares das crioulinhas bonitas, todo manhas
e gracejos, e troçava das que o não fossem. T’arrenego, temporal. Malparida.
Vesga. Noite escura. Bode. Cara de atum. Eu sei lá. Chamava-lhes o que calhasse
e, por isso, também devo ter dito das boas a Inácia quando ela passava.
Quando
somos moços, e mesmo depois disso, avaliamos tudo pela superfície e
precipitadamente. Os olhos cobiçam coisas que não dão conta de satisfazer o
corpo e só muito mais tarde se vem a entender o engano. Quando se entende. O
equívoco, às vezes, dura a vida toda e nunca se chega a perceber os enredos
completos do assunto; que uma coisa é uma coisa, e que a outra coisa é bem
diversa. Bem sei. Mas Inácia tinha cara de homem escarrado e cuspido antes
mesmo de ter passado a tragar cachimbo e quando o bigode dela era ainda só um
buço farto. Não se podia imaginar, só de olhar para ela, os segredos que tinha.
Era preciso experimentar. Mas isso ninguém desejava. Ninguém a queria. Nem eu.
O que me aconteceu com ela foi uma espécie de acidente, um imprevisto. Agora
não a procuro mais. Vejo-a apenas quando passa nas ruas de pó e é uma coisa
tremenda: continua feia, mais feia ainda do que sempre foi, se isso for
possível, e tem um ar consumido, com as chuchas descaídas e as costas curvadas.
O lenço claro em volta da cabeça. O cachimbo de lata fumegando na boca
arrepanhada e quase sem dentes. Os olhos sem luz e rodeados de rugas fundas. A
grande verruga peluda no queixo. E um bigode que seria mais farfalhudo do que o
meu, se o usasse. Mas não uso.
Não corro o risco de ficar mal visto perto de
nha Nácia. Ensaboo a cara todas as manhãs e raspo-a com a lâmina. Lavo as
orelhas, o pescoço, o cabelo, e penteio-me com brilhantina. Fui sempre um homem
de certas vaidades e até um pouco galanteador. Não me faltaram mulheres nesta
vida, quero dizer. Mas não o digo para me gabar. As coisas são como são e, não
sendo muito velho nem muito feio, um homem lavado e penteado, e com dinheiro no
bolso, sempre consegue desenrascar-se. Fêmea é coisa que o mundo tem mais
abundantemente. Só que nem todas prestam e não há mais nenhuma como Inácia,
disso tenho certeza. Olho, pois, para ela quando passa, e baixo a cabeça, em
parte para não ter de encará-la, em parte por ter dó e vergonha de ela ser como
é, ou de ser o mundo apenas um reino de aparências e convenções. Nha Inácia
costumava passar na rua principal com um carrego de gravetos equilibrado na
cabeça, cachimbando e com o punho livre posto na cintura. Não sorria nunca,
como se estivesse empenhada em não agradar a ninguém. A vida dela, tanto quanto
eu podia ver, esgotava-se naquilo: chupar o cachimbinho de lata e acartar
coisas na cabeça, feixes de lenha ou latas de água, bacias, sacos de grão.
Tanto que nhô Francisco, um português, até inventou um dia uma modinha para
cantar quando ela passava com os seus carregos e fazer rir o pagode. Era mais
ou menos assim: Lá vem nha Nácia acartando E para ela não olha ninguém; Por
muito que a lenha lhe pese não se lhe ouve um lamento. Mas por muito que ela
carregue Ninguém lhe quer casamento. Era um pândego, o nhô Francisco, e não
havia, naquela época, quem lhe fizesse frente nas rimas. Nem mesmo o Armando
Zeferino da venda, que ganhou fama fora das ilhas desde que a Cise foi pelo
mundo adentro a cantar Sodade, era capaz de se medir com o português. Arre.
Parecia que tinha sempre um verso pronto na ponta da língua e, por causa disso,
também nunca lhe faltavam as mulheres. As bandidas pelam-se por um poeminha e
por um pedaço de pele clara, ai não. Na porta da venda, às horas mortas da
ilha, que então eram muitas e continuam sendo incontáveis, o português ficava
gabando-se discretamente do que tinha feito, dos seus triunfos amorosos, e do
que havia de fazer ainda. Quando alguma mulher mais vistosa passava adiante,
sorrindo de esguelha para ver se era notada, logo o sujeito que estivesse mais
perto acotovelava nhô Francisco e apontava a ditosa com um gesto do queixo.
Quase sem olhar quem passava, ele declarava baixinho, num tom de voz neutro,
“marchava”, ou então, “já marchou”, que era a maneira que ele tinha de dividir
o mundo em duas metades distintas. E dava de ombros como se aquilo fosse coisa
pouca. Uma vez, lembro-me bem, Zeca, o negrinho de nhô Nhelas, acotovelou o
português quando Inácia passava com um carrego na cabeça. Rimos. Nhô Francisco
sorriu também, fez uma pausa dramática e, por fim, lavrou a sentença: «Já
marchou.» E atirou uma sapatada na coxa, gargalhando muito alto e nós todos com
ele, como se fosse paródia só, coisa impossível e impensável. Mas agora, às
vezes, dou por mim a cismar se foi mesmo uma piada aquilo de o finado Xico ter
comido nha Nácia, ou se o fez de verdade e provou do bem bom que ela possuía
entre as coxas quando era mais nova (agora já não sei). E quantos somos,
afinal, os secretos amantes dela. E se somos tão secretos assim. Estou, porém,
divagando e não contei ainda nada que preste, nem expliquei que enleios
selvagens há no amor de nha Nácia para ter afirmado o que afirmei. E é tal qual
disse. Quem me conhece sabe que não sou homem de brincar quando o assunto é
sério, sobretudo sendo mulher o assunto mais grave de todos. Inácia passava
todos os dias para trás e para diante e parecia sempre indiferente ao descaso e
à mofa que o seu ir e vir provocavam. Creio que era sincera nisso. Os homens
não lhe interessavam, ou não tinha interesse nenhum na opinião que sobre ela tivessem.
Não é bem a mesma coisa — apenas parecia. E confundiu-me bem. Acho que uma vez,
por pilhéria, comentei que ela devia ser a cabrita mais ruim da ilha. «É mais
feia e tem mais barbela que qualquer outra». Os homens sorriram e eu achei que
tinha dito uma coisa muito espirituosa. «E não tenho memória de ter visto
alguma cabra a fumar cachimbo», acrescentei. Nhô Francisco, talvez porque
sempre gostava de ser do contra, ou porque já tivesse comido Inácia nessa
altura, se é que comeu, deixou que as gargalhadas se extinguissem e avisou-me
de que não devia avaliar o cabrito pela barba que tem, mas pela macieza da sua
carne. Sentencioso como de costume, ainda acrescentou aquele dito sobre as
panelas chamuscadas e amassadas fazerem a comida mais gostosa. Deixá-lo falar,
pensei eu. Céu azul é que faz tempinho bom. Era novo, estava enrabichado por
Elida do Rosário e não queria saber de mais nada enquanto não desse conta de
beber na cabaça dela e de lhe apertar os predicados todos. Moça bonita estava
ali e eu teria casado com ela (se ela quisesse). Mas Elida não quis e nem um
beijinho me deu. Safada. O destino, porém, não se distrai: ela veio a casar às
pressas com o Setembrino do Juncalinho, que tinha bicicleta e uma voz fatal
para atacar as mornas mais açucaradas. E depois pariu seis filhos dele e está
mulher gorda e feia — feia de um modo diferente daquele que Inácia tem de ser
feia, mas é quase a mesma coisa. Fêmea velha e feia é tudo igual — e isto o
Setembrino também deve saber muitíssimo bem, que cada qual nasce para a cruz
que lhe cabe carregar e não há como escapar disto. Inácia, porém, e se calhar
já o disse, era feia como os trovões mesmo quando era nova. Ninguém a queria
para coisa nenhuma que não fosse acartar carregos de um lado para o outro, que
para isso ela servia bem. Como outro homem qualquer. Dava-me um certo dó vê-la
passar para trás e para diante, curvada e horrível sob o peso daquelas trouxas,
mas isto é cá coisa minha. Custam-me as injustiças do mundo. E ainda não encontrei
coisa mais desigualmente distribuída do que a feiura e o seu oposto.
Quando se
nasce como nha Nácia nasceu, parece que um demónio qualquer se empenha em
rodear a pessoa de uma quantidade absurda de defeitos, um pouco como se fosse
um aviso para quem a visse: tomai cuidado que também pode suceder-vos, nesta
geração ou noutra qualquer. Uma vez, se não me falha a memória, até disse ao
meu compadre Aníbal: «Coitado de quem vem ao mundo condenado pelos pecados que
não cometeu». O meu compadre, sendo um homem prático e ponderado, quis
desenganar-me do poder da providência e comentou que pecado nenhum, por mais
cabeludo que fosse, justificaria um castigo tão severo como o de Inácia, do
mesmo modo que não há bem nenhum precedendo a beleza ambulante que, às vezes,
desfila diante dos nossos olhos enquanto estamos preguiçando à porta da venda.
«Se existisse um deus moldando as pessoas do mundo, ele seria só o mais
desastrado dos oleiros», disse nhô Aníbal. Pensando melhor, tive que lhe dar
razão. Que remédio. Mas agora, de vez em quando, duvido de uma coisa e da
outra. Cogito, enfim, se não haverá alguma verdade quando se diz que deus,
existindo, dá com uma mão aquilo que tira com a outra; se o amor gostoso de nha
Nácia, e a força que tem para carregar pesos à cabeça, não podem ser a
recompensa que lhe coube pela má distribuição dos outros predicados todos. É
uma troca, se virmos bem, quase como outra qualquer. Eu mesmo, que em novo não
era feio, sempre fui um bocado estúpido — ao ponto de, por exemplo, ter andado enrabichado
pela Elida do Rosário, que nem sequer olhava para mim, e de ter tido vergonha de ser visto na rua com Inácia em vez de
lhe ter pedido namoro como, se calhar, devia ter feito, mesmo sendo ela feia e
suja. Mas viver é arrepender-se (ainda que seja demasiado tarde). Agora que sei
estas coisas, que as aprendi com os erros e com os anos, já estamos ambos muito
velhos, Inácia e eu, para voltarmos atrás e sermos aquilo que não fomos quando
ainda havia tempo, e eu não sei sequer se ela me quereria ou se já então,
naquele tempo, a vida lhe mostrara que não devia desejar mais do que aquilo que
podia ter, ou que ela achava que estava ao seu alcance. Ainda hoje não sei,
para dizer a verdade toda, se a comi ou se foi ela que me comeu a mim; qual dos
dois, Inácia ou eu, gostou mais do amor que fizemos à pressa, escondidos,
mordendo-nos um ao outro para que não pudessem ouvir-nos enquanto gemíamos e
arfávamos como gatos com cio (se os gatos pudessem sentir prazer e ficar doidos
como eu fiquei, desvairado, fora da razão), se a memória não me traiu já e não
acabei imaginando coisas que não são tal como sucederam. Pode ter acontecido.
Posso, com o passar dos anos, enquanto a solidão em que vivo se adensava, ter
chegado a supor que as chuchas de nha Nácia, debaixo das roupas porcas, eram
mais perfeitas e mais rijas do que alguma vez tenham sido, e recorde agora
movimentos loucos que o quadril dela não fez. Mas também é possível que,
naquela época, Inácia nem sequer fosse tão feia assim e que, muito
simplesmente, a memória que guardei não seja, de facto, uma memória; que seja
apenas um reflexo da mulher feia e muitíssimo acabada que eu ainda vejo passar
de vez em quando diante da porta da venda, debaixo dos mesmos carregos de
sempre e fumando o seu cachimbinho de lata, velha e feia que eu sei lá, porca
também, mas que é a minha Inácia, o meu velho amor secreto e breve. Não sei
quando foi que comecei a ter saudades de nha Nácia — do cheiro de animal que
ela tinha no corpo e do seu modo desabrido de pxa onde calhasse, meio vestida e
às pressas, como se, para além de feia, fosse também muito doida, desvairada e
canalha. Houve uma noite, disso recordo-me, em que estava a fazer um amorzinho
bom, tranquilo, com a minha defunta senhora. O normal. Eu amava Eunice e
respeitava-a. Era uma boa mulher, apesar daquele problema nos ovários que
acabou por levá-la ainda nova, matando-a de tristeza mesmo enquanto ainda
estava viva. Mas eu amava-a como suponho que se deva amar uma mulher: chegava a
horas para o jantar, fazia por andar lavado, evitava beber muito grogue,
entregava-lhe a féria e procurava-a na cama (pontualmente). Vivíamos felizes à
nossa maneira e acho que foi assim até ao fim. Mas, naquela noite, e a partir
daí em outras noites, eu pxava mais ela e pensava em Inácia, nas chuchas de
Inácia e no seu jeito maluco de foder como um bicho, de gozar e fugir logo a
seguir, não sei se por vergonha ou se por outra teima qualquer. Simplesmente
fugia segurando as roupas sujas com as mãos enquanto desaparecia no escuro,
correndo. Eu não me importava. Não me atreveria, de todo o modo, a atravessar a
vila de mão dada com ela, nem sequer desejava ser visto caminhando ao seu lado.
Mas era nela que pensava muitas vezes quando fazia o amor com Eunice, e também
depois, quando nha Nicha se foi e eu fiquei sozinho. Agora passo aqui muito
tempo na venda. Jogo dominó e cartas, e bebo um bocadinho de grogue para
esquecer a desolação que a vida é. Somos cada vez menos e todos velhos. Já
quase ninguém se volta para ver quando Inácia passa. Só eu. Nhô Chico também já
morreu e mais ninguém inventa versos canalhas quando ela vai e volta com os
carregos dela.
Jorge Marmelo
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