segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

OUTROS CONTOS

«A Mulher de Lot, ou o Apelo do Passado», por Leszek Kolakowski.

«A Mulher de Lot, 
ou o Apelo do Passado»
Por Leszek Kolakowski

954- «A MULHER DE LOT, OU O APELO DO PASSADO»

Investigações recentes dos Professores Zimmerman e Nagel mostram que o chamado pecado de Sodoma não passou de um conto de fadas urdido pelos inimigos dessa cidade, com o objectivo de a apresentarem como desprezível. De facto não há nenhuma referência clara a esse pecado nas Escrituras. As verdadeiras causas do conflito dos Sodomitas com os poderes mais altos foram muito diferentes. Os sodomitas adoptaram o ponto de vista de que todos os homens seriam livres e iguais e teriam um direito inviolável à vida; e produziram leis que decretavam a liberdade universal, a igualdade e a abolição da pena de morte.

A estas leis foi emprestada uma força apropriada na cidade de Sodoma por via da promulgação das seguintes leis suplementares:

1. Todo aquele que negasse que as pessoas são livres e insistisse que alguém fosse privado da liberdade seria aprisionado por um período de tempo indefinido.

2. Todo aquele que negasse que as pessoas são iguais e pedisse a introdução de desigualdades seria privado de todos os direitos e reduzido à escravatura.

3. Todo aquele que solicitasse a introdução da pena de morte seria legalmente sentenciado a uma condenação à morte.

De modo a fazer cumprir esta lei os Sodomitas organizaram uma vasta rede de polícia secreta, cuja função era escutar à socapa, nas ruas e nas casas de família, e prender de imediato quem fosse apanhado a exprimir pontos de vista em desacordo com as leis. Dado que muitas pessoas manifestavam dúvidas sobre a abolição da pena de morte, todas elas foram presentes a tribunais sumários, e fuzilados de imediato. Essas sentenças foram emitidas aos milhares. E do mesmo modo as sentenças de prisão por questionar o princípio da liberdade universal e as sentenças de escravatura por pôr em dúvida a igualdade universal.

A seguir, e para aumentar a eficiência do seu trabalho, a polícia secreta foi organizada em três redes, cada uma das quais investigava um desses crimes. Mas sucedia com frequência que os membros da Polícia de Salvaguarda da Igualdade Universal exprimiam dúvidas sobre o princípio da liberdade universal e eram por isso presos por agentes da Polícia de Salvaguarda da Liberdade Universal; e estes últimos às vezes exprimiam reservas sobre a abolição da pena de morte e eram presos pela Polícia da Garantia da Segurança Contra a Pena de Morte e apresentados a um juiz; e assim sucessivamente.

Daqui resultou uma situação intolerável, pois cresceu um ódio furioso entre as três redes, cada uma delas vigiando os membros das outras redes com uma atenção maior do que a dedicada à população remanescente. Dado que as pessoas, a maior parte delas polícias, desataram a denunciar-se umas às outras, seguiram-se prisões, servidões e execuções em pelotões de fuzilamento numa escala maciça, de tal modo que os contingentes dizimados de cada força policial necessitavam de substituições permanentes. Não que fosse difícil recrutar agentes na população, porque qual a pessoa decente que se recusaria a cooperar com uma organização dedicada a assegurar a Liberdade, a Igualdade, e a Segurança ao povo? Assim, e no espaço de tempo de um ano, um quarto da população fora morta por se opor à abolição da pena de morte, um quarto estava na cadeia por discordar do princípio da liberdade, um outro quarto fora reduzida à servidão por pôr em causa a igualdade universal, e dos restantes vinte e cinco por cento quase todos trabalhavam numa das redes policiais.

Jeová via tudo isto com tristeza e preocupação. Estes princípios teoréticos dos Sodomitas não eram absolutamente nada ao seu gosto, pois ele considerava que a liberdade e a igualdade eram noções absurdas e que o plano para abolir a pena de morte constituía um acto de profunda subversão contra si mesmo. Nem ele toleraria a defesa apaixonada pelos Sodomitas destes princípios. Mandou por isso os seus emissários a essa cidade infectada de maneira a que eles pudessem propagar as suas ideias: as pessoas não são livres ou iguais, e a pena de morte deve ser mantida.

Estes agentes entraram em contacto com um certo Lot, há muito considerado um carácter suspeito pela polícia secreta. E, de facto, havia boas razões para isso, porque não tardou muito que Lot, quebrada a reserva inicial, desatasse a confidenciar aos seus convidados que na sua opinião uma parte substancial da humanidade pertencia a uma raça inferior, a qual deveria ser mantida em campos de concentração e punida, em caso de desobediência, com a morte — uma opinião que era insultuosa para a cidade de Sodoma. Foi nesse momento que os agentes de Jeová revelaram os planos finais do seu senhor: Jeová, enfurecido com a filosofia dos Sodomitas, decidira incinerar toda a cidade. Mas dado que ele, Lot, em nada partilhava desta filosofia, seria levado para o exterior e poupado à destruição.

O que aconteceu de facto. Antes da alvorada os emissários conduziram Lot e a sua família para fora da cidade; e foi então que uma torrente de fogo caiu do céu, sendo toda a cidade em poucos momentos pasto de chamas.

Ora bem, foi neste ponto que começou o famoso caso da mulher de Lot. Os emissários de Jeová tinham-lhe proibido estritamente que olhasse para trás durante a fuga, dizendo-lhe: “Se olhares para trás, isso significará que tu sentes a falta do passado e com ele dos princípios da Liberdade, Igualdade e Segurança, condenados por Deus. Lembra-te de que essas fantasias trarão a pena de morte, e de que Jeová, que certamente pretende certificar-se da convicção da tua família de que a pena de morte é justa, mais se sentirá disposto a aplicá-la a ti.”

Mal atravessou os portões da cidade, a mulher de Lot começou, ao contrário do seu marido, a sentir a falta da Liberdade, da Igualdade e da Segurança, em suma, a sentir a falta do passado, do qual ela fora tão violentamente privada. E deixou a sua cidade com o coração pesado; e, enquanto os gritos dos Sodomitas a serem queimados vivos se perdiam na distância, cresceu nela a tentação de olhar uma última vez, até que finalmente o seu desejo se tornou tão insuportável que ela não foi capaz de se conter mais e, num movimento suave, se voltou e olhou para a cidade a arder. Nesse momento, como todos sabemos, Jeová transformou-a numa pequena rocha branca de cloreto de sódio, uma silhueta apenas vagamente reminescente da forma humana.

A consternação espalhou-se pelo grupo dos refugiados.

“A minha mulher, um mineral!” gemia Lot, correndo para os guias. “Por amor de Deus, fazei alguma coisa para a trazer de volta à vida!”

“Bem, receio que ela seja a única culpada pelo que lhe aconteceu,” respondeu um dos agentes de Jeová. “Avisámo-la. O que a terá levado a querer regressar ao passado?”

“Mas ela não quis regressar ao passado! Ela só quis olhar para ele no seu momento de ruína!”

“Querer olhar para o passado,” replicou o agente severamente, “é querer o seu regresso. De outro modo, porquê olhar para ele?”

“Precisamente para banquetear os olhos na sua destruição!”

“Ó não, meu amigo! Essa é uma coisa que você deveria aprender, que um dos maiores pecados que existe sob este sol de Jeová é o de examinar o passado.”

“Mas porquê?”

“Porque o passado contém informação que não é desejável que o homem possua.”

“Mas nós já conhecemos o nosso passado. Que novos segredos poderemos encontrar nele?”

“Jeová não deseja que o passado seja comparado com o que é e com o que virá. O passado deve ser esquecido, porque —”

“Porque então não apreciaríamos suficientemente o futuro,” concluiu Lot.

O agente sorriu benevolamente.

“És arguto, meu amigo. Mas não sabes tudo. As pessoas não sentem falta do passado por ser melhor, mas porque é o passado. Porque — lembra bem esta verdade — o homem não é mais do que o passado. À parte ele, nada somos; tirar-te o teu passado, é matar-te. O passado pode ser tirado gradualmente, imperceptivelmente — mas quando é tirado subitamente, cessas de existir. A tua mulher viu a ruína do seu passado num único instante, e por essa razão teve de morrer.”

“Você contradiz-se a si mesmo, Senhor Anjo. Disse antes que Jeová destruiu a minha mulher porque ela não quis esquecer o passado, e agora está a dizer que ela se matou a si mesma porque foi o seu passado que foi destruído.”

“O mistério de Jeová é contradizer,” disse o agente, agora menos polidamente. “Ao sentir falta do passado, a tua mulher expôs-se à fúria de Jeová e quis salvar-se a si mesma; mas, quando olhou para o passado em ruínas, destruiu-se a si mesma. Assim, estritamente falando, o seu fim foi o fruto da acção conjunta de Jeová e de si mesma.”

“Nesse caso, por querer negar-me o meu passado, Jeová quer matar-me também.”

“Não, não num sentido físico,” disse o agente com impaciência. “Ele apenas quer que te tornes outro homem e esqueças essas malditas ideias de Liberdade, de Igualdade e de Segurança. Entrarás numa terra de despotismo, de desigualdade e de medo da morte. Ao identificares-te com ela tornar-te-ás num novo Lot, perderás a identidade que construíste ao viveres nesse outro mundo anterior.”

“Então, porque é que a minha mulher foi destruída fisicamente?”

“Chega!”, trovejou o agente, agora totalmente enfastiado. “Não quero continuar a explicar-te mais os divinos mistérios. Parece que te achas um meu igual, e que podes discutir comigo quanto te apetece. Bom, isso acabou. Tu próprio concordas que a ideia de igualdade é uma patetice subversiva. Rogo-te, por favor, que sejas consistente com isso, e que aceites as explicações dos teus superiores com o devido respeito. Não suportarei mais nada dessa tua sofística espertalhona. Esta conversa acabou. A minha paciência esgota-se.”

E foi assim que Lot rumou tristemente para a nova terra, reflectindo em silêncio no mistério do Passado, da Igualdade, da Liberdade e das contradições de Jeová.

Podemos tirar as lições morais seguintes deste sofrimento de Lot.

Moral Um: a respeito do passado. Pensamos que somos donos do passado. Mas o inverso é que é a verdade: é o passado que é nosso dono, porque não o podemos mudar, e é ele que preenche a totalidade da nossa existência.

Moral Dois: a respeito do passado. O poder superior que nos proíbe de olhar para trás, para o passado, fá-lo para o nosso bem. Porque de facto, meu amigo — olha para trás e ficarás petrificado.

Moral Três: idem. Dado que ser privado do passado é morrer, e dado que mergulhar no passado é morrer também, só resta uma solução: suportar o peso do passado enquanto se finge que ele não existe. Demasiado difícil? E, no entanto, um certo número conseguiu. Longa vida a um certo número!

Leszek Kolakowski

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