«A Mulher de Lot,
ou o Apelo do Passado»
Por Leszek Kolakowski
954- «A MULHER DE LOT, OU O APELO DO PASSADO»
Investigações recentes dos Professores Zimmerman e Nagel
mostram que o chamado pecado de Sodoma não passou de um conto de fadas urdido
pelos inimigos dessa cidade, com o objectivo de a apresentarem como
desprezível. De facto não há nenhuma referência clara a esse pecado nas
Escrituras. As verdadeiras causas do conflito dos Sodomitas com os poderes mais
altos foram muito diferentes. Os sodomitas adoptaram o ponto de vista de que
todos os homens seriam livres e iguais e teriam um direito inviolável
à vida; e produziram leis que decretavam a liberdade universal, a igualdade e a
abolição da pena de morte.
A estas leis foi emprestada uma força apropriada na cidade
de Sodoma por via da promulgação das seguintes leis suplementares:
1. Todo aquele que negasse que as pessoas são livres e
insistisse que alguém fosse privado da liberdade seria aprisionado por um
período de tempo indefinido.
2. Todo aquele que negasse que as pessoas são iguais e
pedisse a introdução de desigualdades seria privado de todos os direitos e
reduzido à escravatura.
3. Todo aquele que solicitasse a introdução da pena de morte
seria legalmente sentenciado a uma condenação à morte.
De modo a fazer cumprir esta lei os Sodomitas organizaram
uma vasta rede de polícia secreta, cuja função era escutar à socapa, nas ruas e
nas casas de família, e prender de imediato quem fosse apanhado a exprimir
pontos de vista em desacordo com as leis. Dado que muitas pessoas manifestavam
dúvidas sobre a abolição da pena de morte, todas elas foram presentes a
tribunais sumários, e fuzilados de imediato. Essas sentenças foram emitidas aos
milhares. E do mesmo modo as sentenças de prisão por questionar o princípio da
liberdade universal e as sentenças de escravatura por pôr em dúvida a igualdade
universal.
A seguir, e para aumentar a eficiência do seu trabalho, a
polícia secreta foi organizada em três redes, cada uma das quais investigava um
desses crimes. Mas sucedia com frequência que os membros da Polícia de Salvaguarda
da Igualdade Universal exprimiam dúvidas sobre o princípio da liberdade
universal e eram por isso presos por agentes da Polícia de Salvaguarda da
Liberdade Universal; e estes últimos às vezes exprimiam reservas sobre a
abolição da pena de morte e eram presos pela Polícia da Garantia da Segurança
Contra a Pena de Morte e apresentados a um juiz; e assim sucessivamente.
Daqui resultou uma situação intolerável, pois cresceu um
ódio furioso entre as três redes, cada uma delas vigiando os membros das outras
redes com uma atenção maior do que a dedicada à população remanescente. Dado
que as pessoas, a maior parte delas polícias, desataram a denunciar-se umas às
outras, seguiram-se prisões, servidões e execuções em pelotões de fuzilamento
numa escala maciça, de tal modo que os contingentes dizimados de cada
força policial necessitavam de substituições permanentes. Não que fosse
difícil recrutar agentes na população, porque qual a pessoa decente que se
recusaria a cooperar com uma organização dedicada a assegurar a Liberdade,
a Igualdade, e a Segurança ao povo? Assim, e no espaço de tempo de um ano, um
quarto da população fora morta por se opor à abolição da pena de morte, um
quarto estava na cadeia por discordar do princípio da liberdade, um outro quarto
fora reduzida à servidão por pôr em causa a igualdade universal, e dos
restantes vinte e cinco por cento quase todos trabalhavam numa das redes
policiais.
Jeová via tudo isto com tristeza e preocupação. Estes
princípios teoréticos dos Sodomitas não eram absolutamente nada ao seu gosto,
pois ele considerava que a liberdade e a igualdade eram noções absurdas e que o
plano para abolir a pena de morte constituía um acto de profunda subversão
contra si mesmo. Nem ele toleraria a defesa apaixonada pelos Sodomitas destes
princípios. Mandou por isso os seus emissários a essa cidade infectada de
maneira a que eles pudessem propagar as suas ideias: as pessoas não são livres
ou iguais, e a pena de morte deve ser mantida.
Estes agentes entraram em contacto com um certo Lot, há
muito considerado um carácter suspeito pela polícia secreta. E, de facto, havia
boas razões para isso, porque não tardou muito que Lot, quebrada a reserva
inicial, desatasse a confidenciar aos seus convidados que na sua opinião uma
parte substancial da humanidade pertencia a uma raça inferior, a qual deveria
ser mantida em campos de concentração e punida, em caso de desobediência, com a
morte — uma opinião que era insultuosa para a cidade de Sodoma. Foi nesse
momento que os agentes de Jeová revelaram os planos finais do seu senhor:
Jeová, enfurecido com a filosofia dos Sodomitas, decidira incinerar toda a
cidade. Mas dado que ele, Lot, em nada partilhava desta filosofia, seria
levado para o exterior e poupado à destruição.
O que aconteceu de facto. Antes da alvorada os emissários
conduziram Lot e a sua família para fora da cidade; e foi então que uma
torrente de fogo caiu do céu, sendo toda a cidade em poucos momentos pasto de
chamas.
Ora bem, foi neste ponto que começou o famoso caso da mulher
de Lot. Os emissários de Jeová tinham-lhe proibido estritamente que olhasse
para trás durante a fuga, dizendo-lhe: “Se olhares para trás, isso significará
que tu sentes a falta do passado e com ele dos princípios da Liberdade,
Igualdade e Segurança, condenados por Deus. Lembra-te de que essas fantasias
trarão a pena de morte, e de que Jeová, que certamente pretende certificar-se
da convicção da tua família de que a pena de morte é justa, mais se sentirá
disposto a aplicá-la a ti.”
Mal atravessou os portões da cidade, a mulher de Lot
começou, ao contrário do seu marido, a sentir a falta da Liberdade, da
Igualdade e da Segurança, em suma, a sentir a falta do passado, do qual ela
fora tão violentamente privada. E deixou a sua cidade com o coração pesado; e,
enquanto os gritos dos Sodomitas a serem queimados vivos se perdiam na
distância, cresceu nela a tentação de olhar uma última vez, até que finalmente
o seu desejo se tornou tão insuportável que ela não foi capaz de se conter mais
e, num movimento suave, se voltou e olhou para a cidade a arder. Nesse momento,
como todos sabemos, Jeová transformou-a numa pequena rocha branca de cloreto de
sódio, uma silhueta apenas vagamente reminescente da forma humana.
A consternação espalhou-se pelo grupo dos refugiados.
“A minha mulher, um mineral!” gemia Lot, correndo para os
guias. “Por amor de Deus, fazei alguma coisa para a trazer de volta à vida!”
“Bem, receio que ela seja a única culpada pelo que lhe
aconteceu,” respondeu um dos agentes de Jeová. “Avisámo-la. O que a terá levado
a querer regressar ao passado?”
“Mas ela não quis regressar ao passado! Ela só quis olhar
para ele no seu momento de ruína!”
“Querer olhar para o passado,” replicou o agente
severamente, “é querer o seu regresso. De outro modo, porquê olhar para ele?”
“Precisamente para banquetear os olhos na sua destruição!”
“Ó não, meu amigo! Essa é uma coisa que você deveria
aprender, que um dos maiores pecados que existe sob este sol de Jeová é o de
examinar o passado.”
“Mas porquê?”
“Porque o passado contém informação que não é desejável que
o homem possua.”
“Mas nós já conhecemos o nosso passado. Que novos segredos
poderemos encontrar nele?”
“Jeová não deseja que o passado seja comparado com o que é e
com o que virá. O passado deve ser esquecido, porque —”
“Porque então não apreciaríamos suficientemente o futuro,”
concluiu Lot.
O agente sorriu benevolamente.
“És arguto, meu amigo. Mas não sabes tudo. As pessoas não
sentem falta do passado por ser melhor, mas porque é o passado. Porque — lembra
bem esta verdade — o homem não é mais do que o passado. À parte ele, nada
somos; tirar-te o teu passado, é matar-te. O passado pode ser tirado
gradualmente, imperceptivelmente — mas quando é tirado subitamente, cessas de
existir. A tua mulher viu a ruína do seu passado num único instante, e por essa
razão teve de morrer.”
“Você contradiz-se a si mesmo, Senhor Anjo. Disse
antes que Jeová destruiu a minha mulher porque ela não quis esquecer o
passado, e agora está a dizer que ela se matou a si mesma porque foi o seu
passado que foi destruído.”
“O mistério de Jeová é contradizer,” disse o agente, agora
menos polidamente. “Ao sentir falta do passado, a tua mulher expôs-se à fúria
de Jeová e quis salvar-se a si mesma; mas, quando olhou para o passado em
ruínas, destruiu-se a si mesma. Assim, estritamente falando, o seu fim foi o
fruto da acção conjunta de Jeová e de si mesma.”
“Nesse caso, por querer negar-me o meu passado, Jeová quer
matar-me também.”
“Não, não num sentido físico,” disse o agente com
impaciência. “Ele apenas quer que te tornes outro homem e esqueças essas
malditas ideias de Liberdade, de Igualdade e de Segurança. Entrarás numa terra
de despotismo, de desigualdade e de medo da morte. Ao identificares-te com ela
tornar-te-ás num novo Lot, perderás a identidade que construíste ao viveres
nesse outro mundo anterior.”
“Então, porque é que a minha mulher foi destruída
fisicamente?”
“Chega!”, trovejou o agente, agora totalmente enfastiado.
“Não quero continuar a explicar-te mais os divinos mistérios. Parece que te
achas um meu igual, e que podes discutir comigo quanto te apetece. Bom, isso
acabou. Tu próprio concordas que a ideia de igualdade é uma patetice
subversiva. Rogo-te, por favor, que sejas consistente com isso, e que aceites
as explicações dos teus superiores com o devido respeito. Não suportarei mais
nada dessa tua sofística espertalhona. Esta conversa acabou. A minha paciência
esgota-se.”
E foi assim que Lot rumou tristemente para a nova terra,
reflectindo em silêncio no mistério do Passado, da Igualdade, da Liberdade e
das contradições de Jeová.
Podemos tirar as lições morais seguintes deste sofrimento de
Lot.
Moral Um: a respeito do passado. Pensamos que somos donos do
passado. Mas o inverso é que é a verdade: é o passado que é nosso dono, porque
não o podemos mudar, e é ele que preenche a totalidade da nossa existência.
Moral Dois: a respeito do passado. O poder superior que nos
proíbe de olhar para trás, para o passado, fá-lo para o nosso bem. Porque de
facto, meu amigo — olha para trás e ficarás petrificado.
Moral Três: idem. Dado que ser privado do passado é morrer,
e dado que mergulhar no passado é morrer também, só resta uma solução: suportar
o peso do passado enquanto se finge que ele não existe. Demasiado difícil? E,
no entanto, um certo número conseguiu. Longa vida a um certo número!
Leszek Kolakowski
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