«O Dicionário»
Conto de Machado de Assis
956- «O DICIONÁRIO»
Era uma vez um tanoeiro, demagogo, chamado Bernardino, o
qual em cosmografia professava a opinião de que este mundo é um imenso tonel de
marmelada, e em política pedia o trono para a multidão. Com o fim de a por ali,
pegou um pau, concitou os ânimos e deitou abaixo o rei; mas, entrando no paço,
vencedor e aclamado, viu que o trono só dava para uma pessoa, e cortou a
dificuldade sentando-se em cima.
- Em mim, bradou ele, poderia ver a multidão coroada. Eu sou
vós, vós sois eu.
O primeiro ato do novo rei foi abolir a tanoaria,
indenizando os tanoeiros, prestes a derrubá-lo, com o título de Magníficos. O
segundo foi declarar que, para maior lustre da pessoa e do cargo, passava a
chamar-se, em vez de Bernardino, Bernardão. Particularmente encomendou uma
genealogia a um grande doutor dessas matérias, que em pouco mais de uma hora o
entroncou a um tal ou qual general romano do século IV, Bernardus Tanoarius; -
nome que deu lugar à controvérsia, que ainda dura, querendo uns que o rei Bernardão
tivesse sido tanoeiro, e outros que isto não passe de uma confusão deplorável
com o nome do fundador da família. Já vimos que esta segunda opinião é a única
verdadeira.
Como era calvo desde verdes anos, decretou Bernardão que
todos os seus súditos fossem igualmente calvos, ou por natureza ou por navalha,
e fundou esse ato em uma razão de ordem política, a saber, que a unidade moral
do Estado pedia a conformidade exterior das cabeças. Outro ato em que revelou
igual sabedoria, foi o que ordenou que todos os sapatos de pé esquerdo tivessem
um pequeno talho no lugar correspondente ao dedo mínimo, dando assim aos seus
súditos o ensejo de se parecerem com ele, que padecia de um calo. O uso dos
óculos em todo o reino não se explica de outro modo, sendo por uma oftalmia a
que afligiu a Bernardão, logo no segundo ano de reinado. A doença levou-lhe um
olho, e foi aqui que se revelou a vocação poética de Bernardão, porque,
tendo-lhe dito um de seus dois ministros, chamado Alfa, que a perda de um olho
o fazia igual a Aníbal, - comparação que o lisonjeou muito, - o segundo
ministro, Ômega, deu um passo adiante, e achou-o superior a Homero, que perdera
ambos os olhos. Esta cortesia foi uma revelação; e como isto prende com o
casamento, vamos ao casamento.
Tratava-se, em verdade, de assegurar a dinastia dos
Tanoarius. Não faltavam noivas ao novo rei, mas nenhuma lhe agradou tanto como
a moça Estrelada, bela, rica e ilustre. Esta senhora, que cultivava a música e
a poesia, era requestada por alguns cavalheiros, e mostrava-se file à dinastia
decaída. Bernardão ofereceu-lhe as coisas mais suntuosas e raras, e, por outro
lado, a família bradava-lhe que uma coroa na cabeça valia mais que uma saudade
no coração; que não fizesse a desgraça dos seus, quando o ilustre Bernardão lhe
acenava com o principado; que os tronos não andavam a rodo, e mais isto, e mais
aquilo. Estrelada, porém, resistia à sedução.
Não resistiu muito tempo, mas também não cedeu tudo. Como
entre os seus candidatos preferia secretamente um poeta, declarou que estava
pronta a casar, mas seria com que fizesse o melhor madrigal, em concurso.
Bernardão aceitou a cláusula, louco de amor e confiando em si: tinha mais um
olho que Homero, e fizera a unidade dos pés e das cabeças.
Concorreram ao certame. Que foi anônimo e secreto, vinte
pessoas. Um dos madrigais foi julgado superior aos outros todos: era justamente
o do poeta amado. Bernardão anulou por um decreto o concurso, e mandou abrir
outro; mas então, por uma inspiração de insigne maquiavelismo, ordenou que não
se empregassem palavras que tivessem menos de trezentos anos de idade. Nenhum
dos concorrentes estudara os clássicos: era o meio provável de os vencer.
Não venceu ainda assim, porque o poeta amado leu à pressa o
que pode, e o seu madrigal foi outra vez o melhor. Bernardão anulou esse
segundo concurso; e, vendo que no madrigal vencedor as locuções antigas deram
singular graça aos versos, decretou que só se empregassem as modernas e
particularmente as da moda. Terceiro concurso, a terceira vitória do poeta
amado.
Bernardão, furioso, abriu-se com os dois ministros,
pedindo-lhes um remédio pronto e enérgico, porque, se não ganhasse a mão de
Estrelada, mandaria cortar trezentas mil cabeças. Os dois, tendo consultado
algum tempo, voltaram com este alvitre:
- Nós, Alfa e ômega, estamos designados pelos nossos nomes
para as coisas que respeitam à linguagem. A nossa ideia é que Vossa
Sublimidade mande recolher todos os dicionários e nos encarregue de compor um
vocabulário novo que lhe dará a vitória.
Bernardão assim fez, e os dois meteram-se em casa durante
três meses, findo os quais depositaram nas augustas mãos a obra acabada, um
livro a que chamaram Dicionário de Babel, porque era realmente a confusão das
letras. Nenhuma locução se parecia com a do idioma falado; as consoantes
trepavam nas consoantes, as vogais diluíam-se nas vogais, palavras de duas
sílabas tinham agora sete e oito, e vice-versa, tudo trocado, misturado,
nenhuma energia, nenhuma graça, uma língua de cacos e trapos.
- Obrigue Vossa Sublimidade esta língua por decreto, e tudo
está feito.
Bernardão concedeu um abraço e uma pensão a ambos, decretou
o vocabulário, e declarou que ia fazer-se o concurso definitivo para obter a
mão da bela Estrelada. A confusão passou do dicionário aos espíritos; toda a
gente andava atônita. Os farsolas cumprimentavam-se na rua pelas novas
locuções: diziam, por exemplo, em vez de: 'Bom dia, como passou?' -
'Pflerrgpxx, rouph, aa?' A própria dama, temendo que o poeta amado perdesse
afinal a campanha, propôs-lhe que fugissem; ele, porém, respondeu que ia ver
primeiro se podia fazer alguma coisa. Deram noventa dias para o novo concurso e
recolheram-se vinte madrigais. O melhor deles, apesar da língua bárbara, foi o
do poeta amado. Bernardão, alucinado, mandou cortar as mãos aos dois ministros,
e foi a única vingança. Estrelada era tão admiravelmente bela, que ele não se
atreveu a magoá-la, e cedeu.
Desgostoso, encerrou-se oito dias na biblioteca, lendo,
passeando ou meditando. Parece que a última coisa que leu foi uma sátira do
poeta Garção, e especialmente estes versos, que pareciam feitos de
encomenda:
O raro Apeles,
Rubens e Rafael, inimitáveis,
Não se fizeram pela cor das tintas;
A mistura elegante os fez eternos.
Machado de Assis
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