«Phyllis e Rosamond»
Duas Irmãs/ Pierre Auguste-Renoir
957- «PHYLLIS E ROSAMOND»
Nesta época tão curiosa, quando já começamos a necessitar de
retratos de pessoas, de suas mentes e sua indumentária, um contorno fiel,
desenhado sem mestria, porém com honestidade, é bem capaz de ter algum valor.
Que cada homem, ouvi dizer outro dia, ponha-se a anotar os
detalhes de uma jornada de trabalho; a posteridade há de ficar tão contente com
o catálogo quanto ficaríamos nós, se tivéssemos um tal registro de como o
porteiro do Globe e o homem responsável pelos portões do Park passaram o
sábado, 18 de março, do ano da graça de 1568.
Como os retratos desse tipo que temos são quase
invariavelmente do sexo masculino, que se empertigava pelo palco com
proeminência maior, parece valer a pena tomar como modelo uma dessas muitas mulheres
que se agrupam na sombra. Pois que um estudo de história e biografia convence
qualquer pessoa bem-intencionada de que essas figuras obscuras ocupam um lugar
não diferente daquele que a mão do exibidor assume na dança das marionetes, com
o dedo posto no coração. É verdade que nossos olhos ingênuos acreditaram por
muitas eras que as figuras dançavam por sua livre vontade, dando os passos que
bem queriam; e a luz parcial que romancistas e historiadores já começaram a
lançar sobre o espaço apertado e escuro dos bastidores pouco fez por enquanto,
a não ser nos mostrar quantos cordões existem, mantidos em mãos ocultas, para
uma torção ou puxão dos quais dependem todos os meneios da dança. Este
preâmbulo nos conduz pois ao ponto do qual partimos; tão firmes quanto
pudermos, tencionamos olhar para um grupinho que vive neste momento (20 de
junho de 1906); e que parece, por algumas razões que iremos dar, sintetizar os
atributos de muitos. É um caso comum, porque afinal são numerosas as jovens
nascidas de pais bem-colocados, respeitáveis e prósperos; e todas elas devem
ter muitos dos mesmos problemas, não podendo senão haver, infelizmente, pouca
diversidade nas respostas que dão.
São cinco filhas, todas mulheres, como lhe explicarão com
pesar: lamentando esse erro inicial, ao que parece pela vida afora, que seus
pais cometeram. Além disso, acham-se em campos separados: duas irmãs se opõem a
duas; e a quinta vacila uniformemente entre as outras. Decretou a natureza que
duas delas herdarão um espírito resoluto e combativo, que se aplica com êxito,
e nunca de modo inoportuno, a problemas sociais e à economia política; enquanto
as outras duas a natureza fez frívolas, domésticas, de temperamentos mais
sensíveis e simples. Essas últimas estão condenadas a ser o que, no jargão do
século, chama-se de ”filhas caseiras”. Suas irmãs, decididas a cultivar o
espírito, entram na faculdade, lá se dão bem e casam-se com professores. Fazem
carreiras tão idênticas às dos próprios homens que nem chega a valer a pena
convertê-las em objetos de investigação especial. A quinta irmã distingue-se
menos pelo caráter que qualquer uma das outras; casando-se aos 22 anos, mal tem
tempo de desenvolver os traços individuais da condição de senhorinha que nos
pusemos a descrever. Nas duas ”filhas caseiras”, Phyllis e Rosamond, como as
chamaremos, encontramos um material excelente para nossa pesquisa.
Alguns fatos nos ajudarão a colocá-las em seus devidos
lugares, antes de iniciarmos o exame. Phyllis tem 28 anos, Rosamond, 24. São
pessoas graciosas, de faces rosadas, vivazes; um olhar minucioso não encontrará
em seus traços uma beleza perfeita; mas seus trajes e maneiras dão-lhes o
efeito da beleza, sem lhes dar a substância. Parecem nativas da sala de
visitas, como se, nascidas em vestidos de seda para a noite, jamais tivessem
posto o pé num solo mais irregular do que o tapete turco, ou reclinado em
superfície mais áspera do que a poltrona ou o sofá. Vê-las na sala cheia de
mulheres e homens bem trajados é como ver um negociante na Bolsa, ou um advogado
no Fórum. Esta, proclamam cada gesto e palavra, é sua inata aparência; este é o
seu local de trabalho, sua arena profissional. Claramente é aqui que elas
praticam as artes nas quais foram desde a infância instruídas. Aqui talvez
ganhem seu pão e obtenham suas vitórias. Mas seria tão fácil quanto injusto
insistir na metáfora até levá-la a sugerir que a comparação fosse adequada e
completa em todas as suas partes. Ela falha; mas onde falha e por que falha só
pode ser descoberto com atenção e algum tempo.
Deve-se estar em condições de acompanhar estas senhorinhas
em casa e de ouvir seus comentários, no quarto de dormir, à luz da vela;
deve-se estar a seu lado quando acordam, na manhã seguinte; deve-se assistir às
progressões que ambas fazem no decurso do dia. Quem tiver feito isso, e não só
por um dia, mas por vários, será então capaz de aquilatar os valores das
impressões que estarão por ser recebidas à noite, na sala de visitas.
Eis o tanto que se pode reter da metáfora já utilizada; que
o cenário da sala representa para elas trabalho, não diversão. Tudo isso é
tornado muito claro pela cena na carruagem que demanda à casa. Lady Hibbert é
uma crítica severa de tais performances; ela notou se suas filhas estavam bem,
se falaram bem, se se comportaram bem; se atraíram as pessoas certas, repelindo
as que não convinham; e se a impressão que deixaram foi favorável no todo. A
partir da multiplicidade e da minuciosidade dos seus comentários é fácil
perceber que duas horas de entretenimento, para artistas dessa estirpe, são uma
produção assaz delicada e complicada. Ao que parece, muito depende da maneira
como elas se desempenham. As filhas respondem submissamente e se mantêm
caladas, quer a mãe as reprove, quer elogie; e sua censura é acerba. Quando se
acham finalmente sozinhas, elas que dividem um quarto modesto pelas dimensões
no topo de uma casa grande e feiosa, ei-las que espicham os braços e passam a
suspirar de alívio. Não é das mais edificantes a conversa que travam; é o
”ramerrame” dos homens de negócios; elas calculam suas perdas e ganhos e é
claro que no fundo não têm nenhum interesse, a não ser o próprio. Podem porém
ter sido ouvidas a papaguear sobre livros e pinturas e peças, como se fosse a
essas coisas que dessem mais importância; discuti-las era a única razão de uma
”festa”.
Observar-se-á também, nessa hora de franqueza pouco
atraente, algo que é bem sincero também, embora de modo algum desairoso. As
irmãs gostavam muito e abertamente uma da outra. Na maioria dos casos, sua
afeição tomou a forma de uma simpatia instintiva que é tudo o que se quiser,
menos sentimental; suas esperanças e medos são, sem exceção, partilhados;
trata-se porém de um sentimento legítimo, profundo, malgrado seu exterior tão
prosaico. Elas são rigorosamente honestas em todas as transações que efetuam
juntas; e há até mesmo algo de cavalheiresco na atitude da irmã mais nova para
com a mais velha. Sendo essa a mais fraca, por ser a que já tem mais idade,
deve sempre ficar com a melhor parte. Há algo de tocante também na gratidão com
que Phyllis aceita tal vantagem. Todavia já está ficando tarde e, em atenção às
próprias peles, essas moças tão metódicas lembram agora uma à outra que já é
hora de apagar a luz.
A despeito da prévia reflexão, não são elas avessas a dormir
mais um pouco, depois que as chamam de manhã. Rosamond no entanto se levanta e
sacode Phyllis. ”Phyllis, vamo-nos atrasar para o café.”
Deve ter sido de certo peso o argumento, porque Phyllis
pulou fora da cama e começou a se arrumar em silêncio. A pressa porém não
impediu que elas vestissem suas roupas com grande esmero e destreza, sendo o
resultado minuciosamente inspecionado por ambas, cada qual a seu turno, antes
de descerem. O relógio batia nove horas quando entraram na copa: o pai, que já
estava lá, perfunctoriamente beijou suas duas filhas, passou sua xícara para o
café, leu seu jornal e sumiu. Foi uma refeição silenciosa. O desjejum de lady
Hibbert era feito no quarto; mas elas, depois do seu, tinham de visitá-la para
receber as ordens do dia; enquanto uma tomava notas para a mãe, ia a outra
falar com a cozinheira para combinar o almoço e o jantar. Às onze horas ficaram
livres, por enquanto, e reencontraram-se no quarto de estudo, onde a irmã mais
nova, Doris, de 16 anos, escrevia uma dissertação em francês sobre a Magna Carta.
Suas queixas pela interrupção – posto que ela já sonhasse com uma aprovação
escolar – não fizeram jus a honrarias. ”Temos de ficar por aqui, porque não há
outro lugar para nós”, observou Rosamond. ”Não precisa pensar que queremos sua
companhia”, acrescentou Phyllis. Mas tais reparos foram ditos sem nenhum
azedume, como simples e repisados chavões da vida cotidiana.
Contudo, em deferência à irmã, Phyllis pegou um volume de
Anatole France, e Rosamond abriu os Estudos gregos de Walter Pater. Por alguns minutos
elas leram em silêncio; uma criada depois bateu na porta, esbaforida, com o
recado de que ”madame estava chamando as senhoritas na sala”. Todas duas
resmungaram; Rosamond se ofereceu para ir sozinha; Phyllis disse que não, que
ambas eram vítimas; e, perguntando-se qual seria a incumbência, lá se foram, de
mau humor, escada abaixo. Lady Hibbert, impaciente, aguardava-as.
”Oh, enfim vocês chegaram!”, exclamou ela. ”Seu pai mandou
dizer que convidou mr. Middleton e sir Thomas Carew para almoçar. Que amolação
ele nos arrumou, não é? Não consigo imaginar por que os terá convidado, e
almoço não há – e já vi que você não providenciou as flores, Phyllis; e quero
que você, Rosamond, ponha uma gola nova no meu vestido marrom. Ah, meu Deus,
como os homens são imprevidentes!”
As filhas estavam acostumadas a essas insinuações contra o
pai: ficavam em geral do seu lado, mas não o diziam nunca.
Afastavam-se agora, em silêncio, nas suas missões à parte:
Phyllis teve de sair para comprar flores e um prato extra para o almoço;
Rosamond sentou-se para costurar.
Mal terminaram suas tarefas a tempo de se vestir para o
almoço; mas à 1h30 adentravam, sorridentes e rosadas, pela grande e pomposa
sala de visitas. Mr. Middleton era secretário de sir William Hibbert; um jovem
em boa situação e com perspectivas, tal como o definia lady Hibbert, que
poderia ser incentivado. Sir Thomas, funcionário da mesma repartição, era uma
parte elegante do conjunto, com sua solidez, sua gota, mas sem nenhuma
importância individual.
Durante o almoço animou-se um pouco a conversa entre mr.
Middleton e Phyllis, enquanto os mais velhos, em sonoras vozes profundas,
diziam banalidades. Rosamond se manteve meio calada, como de seu hábito; a
especular sutilmente sobre o caráter do secretário que poderia vir a ser seu
cunhado; e a conferir certas teorias que ela então já fizera a cada nova
palavra proferida por ele. Mr. Middleton, por franco consentimento, não passava
de uma brincadeira da irmã, que se atinha aos limites. Se alguém conseguisse
ler os pensamentos de Rosamond, enquanto ela escutava as histórias de sir
Thomas sobre a década de 1860 na Índia, constataria que ela andava ocupada com
cálculos de certo modo abstrusos; o Middletonzinho, como o chamava, não era lá
de todo mau; tinha a cabeça boa; era bom filho, ela o sabia, e daria um bom
marido. Além do mais, era abastado e faria sucesso na carreira. Mas dizia-lhe
sua agudeza psicológica, por outro lado, que ele era curto de espírito, sem um
pingo de imaginação ou de intelecto, no sentido em que isso era entendido por
ela; conhecia muito bem sua irmã para saber que ela nunca amaria este
homenzinho ativo e eficiente, embora fosse capaz de respeitá-lo. Era esta a
questão: deveria casar-se então com ele? E esse era o ponto a que chegara
quando lord Mayo foi assassinado;2 enquanto seus lábios murmuravam ohs e ahs de
horror, seus olhos telegrafavam pela mesa: ”Fico na dúvida”. Se ela houvesse
feito que sim com a cabeça, sua irmã já teria passado à prática daquelas artes
pelas quais tantas propostas se têm consolidado. Entretanto Rosamond, sem saber
ainda o necessário para tomar decisão, mandou um telegrama bem simples:
”Continue a jogar com ele”.
Virginia Woolf
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