«O Ventre Seco»
Conto de Ruduan Nassar
976- «O VENTRE SECO»
1. Começo te dizendo que não tenho nada contra manipular,
assim como não tenho nada contra ser manipulado; ser instrumento da vontade de
terceiros é condição da existência, ninguém escapa a isso, e acho que as
coisas, quando se passam desse jeito, se passam como não poderiam deixar de
passar (a falta de recato não é minha, é da vida). Mas te advirto, Paula: a
partir de agora, não conte mais comigo como tua ferramenta.
2. Você me deu muitas coisas, me cumulou de atenções (excedendo-se, por sinal),
me ofereceu presentes, me entregou perdulariamente o teu corpo, tentou me
arrastar pra lugares a que acabei não indo, e, não fosse minha feroz
resistência, até pessoas das tuas relações você teria dividido comigo. Não
quero discutir os motivos da tua generosidade, me limito a um formal
agradecimento, recusando contudo, a todo risco, te fazer a credora que pode
ainda chegar e me cobrar: "você não tem o direito de fazer isso".
Fazer isso ou aquilo é problema meu, e não te devo explicações.
3. Nem foi preciso fazer um voto de pobreza, mas fiz há muito o voto de
ignorância, e hoje, beirando os quarenta, estou fazendo também o meu voto de
castidade. Você tem razão, Paula: não chego sequer a conservador, sou
simplesmente um obscurantista. Mas deixe este obscurantista em paz, afinal, ele
nunca se preocupou em fazer proselitismo.
4. E já que falo em proselitismo, devo te dizer também que não tenho nada
contra esse feixe de reivindicações que você carrega, a tua questão feminista,
essa outra do divórcio, e mais aquela do aborto, essas questões todas que
"estão varrendo as bestas do caminho". E quando digo que não tenho
nada contra, entenda bem, Paula, quero dizer simplesmente que não tenho nada a
ver com tudo isso. Quer saber mais? Acho graça no ruído de jovens como você.
Que tanto falam em liberdade? É preciso saber ouvir os gemidos da juventude: em
geral, vocês reclamam é pela ausência de uma autoridade forte, mas eu, que nada
tenho a impor, entenda isso, Paula, decididamente não quero te governar.
5. Sem suspeitar da tua precária superioridade, mais de uma vez você me atirou
um desdenhoso "velho" na cara. Nunca te disse, te digo porém agora:
me causa enjôo a juventude, me causa muito enjôo a tua juventude, será que
preciso fazer um trejeito com a boca pra te dar a ideia clara do que estou
dizendo? É bastante tranquilo este depoimento, é sossegado, ao fazê-lo, me
acredite, Paula, não me doem os cotovelos. Está muito certa aquela tua amiga
frenética quando te diz que sou "incapaz de curtir gentes
maravilhosas". Sou incapaz mesmo, não gosto de "gentes
maravilhosas", não gosto de gente, para abreviar minhas preferências.
6. Você me levava a supor às vezes que o amor em nossos dias, a exemplo do bom
senso em outros tempos, é a coisa mais bem dividida deste mundo. Aliás, só
mesmo uma perfeita distribuição de afeto poderia explicar o arroubo corriqueiro
a que todos se entregam com a simples menção deste sentimento. Um tanto
constrangido por turvar a transparência dessa água, há muito que queria te
dizer: vá que seja inquestionável, mas tenho todas as medidas cheias dos teus
frívolos elogios do amor.
7. Farto também estou das tuas ideias claras e distintas a respeito de muitas
outras coisas, e é só pra contrabalançar tua lucidez que confesso aqui minha
confusão, mas não conclua daí qualquer sugestão de equilíbrio, menos ainda que
eu esteja traindo uma suposta fé na "ordem", afinal, vai longe o
tempo em que eu mesmo acreditava no propalado arranjo universal (que uns
colocam no começo da história, e outros, como você, colocam no fim dela), e
hoje, se ponho o olho fora da janela, além do incontido arroto, ainda fico
espantado com este mundo simulado que não perde essa mania de fingir que está
de pé.
8. Você pode continuar falando em nome da razão, Paula, embora até o
obscurantista, que arranja (ironia!) essas ideias, saiba que a razão é muito
mais humilde que certos racionalistas; você pode continuar carreando areia,
pedra e tantas barras de ferro, Paula, embora qualquer criança também saiba que
é sobre um chão movediço que você há de erguer teu edifício.
9. Pense uma vez sequer, Paula, na tua estranha atração por este "velho
obscurantista", nos frêmitos roxos da tua carne, nessa tua obsessão pelo
meu corpo, e, depois, nas prateleiras onde você arrumou com criterioso zelo
todos os teus conceitos, encontre um lugar também para esta tua paixão,
rejeitada na vida.
10. Sabe, Paula, ainda que sempre atenta à dobra mínima da minha língua, assim
como ao movimento mais ínfimo do meu polegar, fazendo deste meu canto o ateliê
do desenhista que ia no dia-a-dia emendando traço com traço, compondo, sem ser
solicitada, o meu contorno, me mostrando no final o perfil de um moralista (que
eu nunca soube se era agravo ou elogio), você deixou escapar a linha mestra que
daria caráter ao teu rabisco. Estou falando de um risco tosco feito uma corda e
que, embora invisível, é facilmente apreensível pelo lápis de alguns raros
retratistas; estou falando da cicatriz sempre presente como estigma no rosto
dos grandes indiferentes.
11. Não tente mais me contaminar com a tua febre, me inserir no teu contexto,
me pregar tuas certezas, tuas convicções e outros remoinhos virulentos que te
agitam a cabeça. Pouco se me dá, Paula, se mudam a mão de trânsito, as pedras
do calçamento ou o nome da minha rua, afinal, já cheguei a um acordo perfeito
com o mundo: em troca do seu barulho, dou-lhe o meu silêncio.
12. No pardieiro que é este mundo, onde a sensibilidade, como de resto a
consciência, não passa de uma insuspeitada degenerescência, certos espíritos só
podiam mesmo se dar muito mal na vida; mas encontrei, Paula, esquivo, o meu
abrigo: coração duro, homem maduro.
13. Não me telefone, não estacione mais o carro na porta do meu prédio, não
mande terceiros me revelarem que você ainda existe, e nem tudo o mais que você
faz de costume, pois recorrendo a esses expedientes você só consegue me
aporrinhar. Versátil como você é, desempenhe mais este papel: o de mulher
resignada que sai de vez do meu caminho.
14.. Entenda, Paula: estou cansado, estou muito cansado, Paula, estou muito,
mas muito, mas muito cansado, Paula. (Teu baby-doll, teus chinelos, tua escova
de dentes, e outros apetrechos da tua toalete, deixei tudo numa sacola lá em baixo,
é só mandar alguém pegar na portaria com o zelador.)
15. Ainda: "a velha aí do lado", a quem você se referia também como
"a carcaça ressabiada", "o pacote de ossos", "a
semente senil" e outras expressões exuberantes que o teu talento verbal
sempre é capaz de forjar mesmo para falar das coisas mirradas da vida, nunca te
revelei, Paula, te revelo agora: "aquele ventre seco" é minha mãe,
faz anos que vivemos em kitchenettes separadas, ainda que ao lado uma da outra.
Não seja tola, Paula, não estou te recriminando nada, sempre assisti com
indiferença aos arremedos que você fazia da "bruxa velha, preparando a
poção pra envenenar nossas relações". Te digo mais: você talvez tivesse
razão, é provável que ela vivesse a espreitar minha porta das sombras da
escadaria, é provável que ela do fundo dos corredores te olhasse "de um
jeito maligno", é provável ainda que ela, matreira dentro do seu cubículo,
te alcançasse todas as vezes que você saía através do olho mágico da sua porta.
Mas contenha, Paula, a tua gula: você que, além de liberada e praticada, é
também versada nas ciências ocultas dos tempos modernos, não vá lambuzar
apressadamente o dedo na consciência das coisas; não fiz a revelação como quem
te serve à mesa, não é um convite fecundo a interpretações que te faço, nem
minha vida está pedindo esse desperdício. Quero antes lembrar o que minha mãe
te dizia quando você, ao cruzar com ela, e "só pra tirar um sarro",
perguntava maliciosamente por mim, te sugerindo eu agora a mesma prudência, se
acaso amanhã teus amigos quiserem saber a meu respeito. Você pode dispensar
"a ridícula solenidade da velha", mas não dispense o seu
irrepreensível comedimento, responda como ela invariavelmente te respondia:
"não conheço esse senhor".
Raduan Nassar
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