«Restos do Carnaval»
Conto de Clarice Lispector
983- «RESTOS DO CARNAVAL»
Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me
transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas
mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com
um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia
que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa ia se
aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o
mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e
praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes
humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval
era meu, meu.
No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca
tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação
deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado
onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu
ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança
perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque
sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo agregando tão
pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma
menina feliz.
E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e
necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o
rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada,
se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável
com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes
encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados,
pois, era essencial para mim.
Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe
doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a
uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam
tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos
durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu
sonho intenso de ser uma moça – eu mal podia esperar pela saída de uma infância
vulnerável – e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas
minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.
Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso
que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a
pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o
nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de
papel crepom cor-de-rosa, com as quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de
uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se
criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava
seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.
Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado:
sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga – talvez atendendo a meu
apelo mudo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que
sobrara papel – resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que
restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria
o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.
Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade.
Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos
tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia
se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas – à ideia de uma
chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos,
de combinação na rua, morreríamos previamente de vergonha – mas ah! Deus nos
ajudaria! Não choveria! Quanto ao fato de minha fantasia só existir por causa
das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e
aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.
Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia,
teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo, eu já estava de cabelos
enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não
passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram três horas da tarde: com
cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.
Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já
perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um
destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom
todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge – minha
mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e
mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de
rosa – mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão
exposta vida infantil – fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre
serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.
Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha
irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas
histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas
eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci
até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios
encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre
mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.
Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa
agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos,
o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de
mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu
meus cabelos já lisos, de confete: por um instante ficamos nos defrontando,
sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto
da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.
Clarice Lispector
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