«O Natal do Velho Scrooge»
Conto de Charles Dickens
966- «O NATAL DO VELHO SCROOGE»
Era uma vez um velho de avareza sórdida e coração tão seco
como uma pedra de isqueiro; tão conhecido como avaro que ninguém se atreveria
a lhe pedir nem uma informação. Scrooge tinha tido como sócio, durante longos
anos, um homem chamado Marley. Marley morrera havia já sete anos, mas a
fachada da casa continuava a apresentar a firma Scrooge & Marley, para
evitar a despesa de uma fachada nova. Ali, Scrooge vivia sozinho, fugindo de
todo o mundo, mas completamente feliz em sua solidão.
Tinha um empregado, um pobre coitado, que se chamava Bob
Cratchit, era casado e pai de quatro filhos. Scrooge lhe pagava quinze xelins
por semana, justamente o indispensável para que não morresse de fome, com toda
a família. Cratchit trabalhava numa pequena sala triste e sombria, que mais
parecia uma cisterna do que um escritório. Nunca tinha um dia de folga, salvo o
Natal, e apenas aproximava esse dia o velho Scrooge já ficava doente de furor.
Seu sobrinho Fred tinha gênio totalmente diferente do outro.
Era um rapaz amável, sempre de bom humor e vinha todos os anos apresentar seus
cumprimentos de boas festas ao tio, embora só recebesse em troca maus modos e
palavras más.
Esta história começa justamente na véspera de Natal e o bom
Fred entrava subitamente no escritório de seu Tio, que, logo a suas primeiras
palavras, exclamou, irritado:
— Idiota. Fala em fez e alegre Natal. Como pode você ser
alegre, pobre como é?
— E o senhor, como pode ser triste, rico como é?
— Bobo!
— É possível! Mas sabe de uma coisa? Eu tenho pena do
senhor.
— Atrevido!
— Sim. Porque, mesmo sem vintém, sou muito feliz. E sabe de
outra coisa? O que lhe desejo é que, com ou sem dinheiro, o senhor seja um dia,
ao menos, feliz como eu.
O rapaz retirou-se e o velho ficou resmungando contra tudo
e contra todos, até que chegou a hora de fechar o escritório. Bob Cratchit
saiu e o velho lhe recomendou que viesse no outro dia mais cedo, a fim de
compensar a falta de trabalho no dia de Natal.
Após um jantar frugal e solitário, o avarento recolheu-se
em seu apartamento, que fora outrora o de seu sócio.
No momento em que punha a chave na fechadura, olhou para a
maçaneta de metal e viu nela... o rosto de Marley. Aquilo o impressionou
desagradavelmente, porém ele deu de ombros, abriu a porta, subiu a escada,
percorreu todos os aposentos, espiou em baixo da cama, da mesa, do sofá... Nada
encontrou de suspeito.
Acendeu um fogo modesto no fogão de inverno, aqueceu um
pouco de chá e, tendo fechado cuidadosamente a porta, despiu-se, sentou-se diante
do fogão... e viu em uma das placas de ladrilho o rosto de Marley...
— Bobagem... — murmurou Scrooge, que meteu raivosamente as
mãos nos bolsos da robe de chambre.
Mas nesse momento uma força misteriosa obrigou-o a olhar
para um lado e ele viu o fantasma de Marley passar através a porta fechada,
arrastando uma pesada corrente presa a sua cintura. Scrooge fitou-o assombrado
e Marley lhe disse:
— Está vendo esta corrente? É feita de cofres, cadeados,
livros-caixa e bolsas. Fui eu quem a forjou durante toda a minha vida e você
há de arrastar uma ainda maior do que esta, porque eu parei em meu trabalho,
há sete anos e você continua. Ouça bem. Esta noite ainda, você há de ser
visitado por três espíritos; um virá quando o relógio bater uma hora, os
outros...
E o espectro desapareceu novamente, atravessando a porta fechada.
Ansioso por sair dali, não se atrevendo a tocar a porta, o
velho abriu a janela. O céu imenso e estrelado pareceu-lhe cheio de fantasmas,
que arrastavam enormes correntes e todos gemiam dolorosamente.
Scrooge tentou dizer... "Bobagens", mas não se
atreveu. Fechou a janela, deitou-se e adormeceu quase imediatamente.
Quando despertou, era ainda noite escura e, como não tinha
noção da hora, ficou quieto. Mas quase imediatamente ouviu bater uma pancada no
sino da igreja próxima. No mesmo instante, o cortinado de seu leito se abrir e
ele viu o primeiro o espírito.
Era uma estranha figura, que parecia a de uma criança e, ao
mesmo tempo, a de um velho que tivesse diminuído de tamanho. A cabeleira, que
caía sobre seus ombros, era branca como a de um velho, mas seu rosto não tinha
uma ruga e era rosado. Seus braços eram longos e musculosos e suas mãos
denotavam vigor pouco comum. Mas suas pernas e pés eram pequenos e delicados.
Vinha vestido com uma túnica branca, presa por um cinto luminoso. Trazia nas
mãos flores, embora se estivesse em pleno inverno; porém o mais espantoso nele
era um jato de luz que irrompia de sua cabeça.
Talvez por isso trazia sob um dos braços um enorme apagador.
— Eu sou — disse essa estranha figura — o espírito do Natal
antigo.
E antes que o velho tivesse tempo para murmurar uma palavra,
arrastou-o a quilômetros de distância e muitos anos para trás. Assim, o velho
Scrooge viu diante de seus olhos a casa onde tinha passado sua infância e
muitas outras cenas de felicidade, que ele havia esquecido, tornou a ver com
irreprimível enlevo. Assistiu a várias festas de Natal dos anos desse tempo.
Por fim, ele e o espírito se detiveram diante da porta de uma loja, a loja em,
que Scrooge tora aprendiz. E ao ver ali um senhor idoso, sentado por trás de
uma alta mesa de escrituração, o avarento exclamou:
— Céus! É o bom sr. Fezziwig.
Entretanto, Fezziwig, tendo olhado para o relógio e verificado
que eram sete horas, esfregou as mãos, sorriu e com voz sonora, magnífica, chamou:
— Olá! Ebenezer! Dick!
A esse apelo dois rapazolas acudiram, alegremente, de uma
sala vizinha e Scrooge, maravilhado, reconheceu nesses dois rapazes ele
mesmo, tal qual era aos dezassete anos e seu companheiro de trabalho nesse
tempo, Dick Wiltin, que era seu amigo.
— Rapazes! — exclamou Fezziwig. — Não se trabalha mais hoje.
E véspera de Natal. Fechem as vitrines e as portas.
Os dois jovens não esperaram segunda ordem.
— Muito bem — disse o patrão. — Agora vamos abrir espaço
aqui.
E ele próprio ajudou os rapazes a afastarem o balcão e as
mesas, a amontoar as mercadorias num canto. Em um instante a enorme loja ficou
vazia e limpa; o chão foi varrido.
Então chegou um violinista, instalou-se com seu livro de
músicas no estrado do guarda-livros e começou a tocar. Como se só esperasse
esse sinal, madame Fezziwig entrou, com seu bom e constante sorriso. Com ela
vinham suas três filhas adolescentes, suas quatro sobrinhas e seus três
sobrinhos. Em seguida, entraram todos os empregados, porque o sr. Fezziwig os
convidara sem exceção, do mais graduado ao mais humilde.
E começaram todos a dançar alegremente.
Nesse momento, o espírito passou a mão sobre os olhos de
Scrooge e ele adormeceu de novo, no momento em que, recordando-se de seu
primeiro patrão, ele prometia a si mesmo não mais maltratar o pobre Bob
Cratchit.
Quando voltou a despertar, era ainda escuro lá fora, mas
seu quarto estava cheio de uma misteriosa luz avermelhada. O relógio bateu
duas horas. Nenhum fantasma apareceu; mas, compreendendo que para alguma
coisa devia ele ter despertado, o velho, não podendo conter a curiosidade,
ergueu-se do leito e dirigiu-se para a porta. Logo uma voz, que ele não conhecia,
disse:
— Pode entrar.
Scrooge abriu a porta e viu, diante de si, como sempre, sua
sala de visitas. Mas como estava mudada! O teto e as paredes estavam cobertos
de folhagem; no meio do soalho havia um verdadeiro monte de iguarias
apetitosas: — leitões assados, perus recheados, linguiças, pastéis, pudins,
frutas... Sobre essa montanha de delícias estava sentado um gigante, que, ao
ver o dono da casa, repetiu:
— Pode entrar. Eu sou o espírito do Natal de hoje.
E estendeu-lhe a mão. Apenas tocou essa mão, enorme, Scrooge
sentiu-se transportado pela janela e pelas ruas, em direção à casa de Bob
Cratchit, casa que, embora muito humilde, estava em festa. O modesto
empregado estava sentado à mesa, com toda a sua família — sua esposa e seus
filhos Peter, Belinda, Marta e o pequeno Tiny Tïm, que era aleijado de uma
perna e parecia de saúde muito frágil. Por isso, naturalmente, é que todos,
ali, até seus próprios irmãos, também ainda crianças, o tratavam com tanto
carinho.
Mas, nessa noite, até Tiny Tim estava alegre. Seu rostinho
magro e pálido estava tão sorridente como o dos outros, diante da mesa da
ceia, onde havia um pato assado, frutas, doces caseiros, mas com bom aspecto.
Quando madame Cratchit foi à cozinha e trouxe de lá um pudim enfeitado, então
a alegria atingiu o auge e todos se abraçaram, dando graças a Deus, que lhes
permitira ter um Natal feliz.
O velho Scrooge estava pasmado; mas já o espírito o levava
pelos ares, para que visse outros lares, igualmente pobres ou mais pobres
ainda... Numa aldeia de trabalhadores mineiros, num farol solitário, isolado no
meio do mar em fúria e até numa prisão. Em toda a parte, a noite do Natal era
festejada alegremente e parecia inspirar a cada coração um pouco de amor pelo
próximo, de piedade pelos menos felizes.
Por último, ele viu o Natal em casa de seu sobrinho Fred e
ouviu pronunciar seu próprio nome, não com ódio ou desprezo, mas apenas com
lástima, lamentando que ele não estivesse também ali, para se divertirem um
pouco, em vez de ficar sozinho num canto, como um bicho.
De súbito, antes que o velho Scrooge pudesse compreender o
que se passava, o sorridente gigante desapareceu e foi substituído por uma nova
figura, o terceiro e último dos visitantes anunciados pelo fantasma de Marley.
Era um vulto muito alto e de forma um pouco vaga, como era
natural em quem representa o futuro, sempre incerto. Não levou o velho Scrooge
a lugar algum; limitou-se a estender a mão direita para diante e o avarento
teve desde logo diante de si um espetáculo tão reconfortante, que, enlevado,
radiante, não pôde conter um movimento de entusiasmo e despertou.
Porém, mesmo acordado, ele teve a impressão de ouvir ainda
as últimas palavras do espírito:
— O futuro será o que quiseres. Tu é que tens que fazê-lo.
Foi só isso e nada mais; mas foi o bastante, porque o velho
Scrooge compreendera. Das múltiplas visões daquela noite maravilhosa, ele guardara
mais intensos os aspectos de emoção: sua própria alegria na casa do primeiro
patrão, a alegria do bom sr. Fezziwig, vendo todos contentes em torno de si e
principalmente o sorriso, que iluminava rostinho magro e pálido de Tiny Tim.
Adormeceu ainda uma vez, preocupado, inquieto... Aquele
garoto. . . Se não fosse tratado... muito bem tratado, não poderia durar muito
tempo. Tão sem cor, com as faces tão cavadas...
Quando afinal o sol entrou pela janela, ele recobrou a
consciência e teve logo um ímpeto de se levantar e agir. Era dia feriado, dia
de Natal, mas por isso mesmo tinha muito que fazer. Começou por ir à loja de
brinquedos mais próxima de sua residência e comprar presentes, que distribuiu
por toda a criançada da vizinhança, um pouco envergonhado pelo assombro que a
todos isso causava. Depois, dirigiu-se à casa de seu sobrinho, levando uma
caixa de charutos para Fred e flores pura sua esposa.
O jovem casal disfarçou mal a surpresa, mas, em pouco,
passou a demonstrar satisfação tão sincera que o velho, enternecido, disse:
— Refleti, Fred e cheguei à conclusão de que você é que tem
razão. Nós não estamos neste mundo só para trabalhar... Eu não tenho mais
família; vocês são meus únicos parentes. Se não os incomodo, passo o Natal
aqui....
— Incomodar? Quem disse tal?
Fred e sua esposa pareciam mais contentes do que ele, por
vê-lo ali, sorridente... E, para dissipar a timidez, que ainda o punha um
pouco contrafeito, cercaram-no de carinho, como se nunca tivesse havido
desacordo entre eles, como se de fosse um doente e se tivesse curado.
E o velho Scrooge passou ali o dia mais feliz de sua vida,
fazendo planos para um futuro, como vira no sonho. Aumentaria o ordenado de Bob
Cratchit, dar-lhe-ia umas férias para que ele pudesse levar Tiny Tïm para uma
casa à beira mar e se tratasse bem; ele mesmo iria passar uns dias lá... Sim,
por que não? Afinal, ele já era bastante rico, para descansar... Não
quereria Fred substituí-lo? EIe lhe cederia a casa mediante um contrato de
sociedade... e viria de vez em quando ver como iam as coisas, só para não
perder o costume... para não ser de todo inútil.
Fred ouvia-o, surpreendido mas contente; e o velho
continuava a ver acordado o que vira no sonho, radiante por verificar que era
tão fácil ser feliz!...
Charles Dickens
Olha.... olha.... o velho Charles! Eu até pensava que já ninguém se lembrava dele.
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