quinta-feira, 2 de março de 2017

OUTROS CONTOS

«Anjo Azul, Céu Negro», por Alface.

«Anjo Azul, Céu Negro»
Mulher diante do Espelho
(Vicente do Rego Monteiro)

989- «ANJO AZUL, CÉU NEGRO»

Matilde andara o suficiente por bares de fugir para saber que, no fundo, no fundo da noite é sempre o pescoço de Xerazade a ficar torcido.
  
Agora, por um capricho que desculparemos, ei-la frente ao espelho.
  
 É o espelho uma peça de imponentes dimensões, herança de família, fiel, moda testemunha de jogos, lágrimas, devaneios.
  
 Um espelho que não esquece, com que se pode contar.
  
Matilde tinha-o na maior das considerações, até ao dia em que a superfície brilhante recusou devolver-lhe a sua imagem de mulher habitualmente senhora de si.
  
Num repente, o espelho virou baço, hostil, um muro.
  
 Por mais que pensasse, não percebia por que razão o espelho recusava cumprir o seu papel.
  
Nada, em consciência, a acusava: sempre o tratara com estima e cumplicidade, o polira com ternura, sempre o poupara a interlúdios de excessiva intimidade.
  
E depois, que diabo, um espelho só está ali para isso, não se lhe exigindo mais que a sua estrita obrigação. Ou não será?
  
E no entanto, este particular espelho, por qualquer incógnito motivo, passou a não reflectir a imagem de Matilde, quando esta — já num estado de confusão lamentável — se sentava à sua frente.

E o estranho, o mais estranho, é que reflectia toda a gente menos ela. Porquê? Vá lá saber-se porquê.

Chegou a planear vendê-lo e, muito incomodada, a arrumá-lo no sótão ou fazê-lo em cacos. Ainda bem que não foi além das intenções.

Um dia, que coisa, em que ela o fixava com intensidade e raiva, o espelho desfez-se sozinho e a Matilde, com razão ou não, o facto pareceu um suicídio.

Foi a partir daí (por pudor, autodefesa) que ela passou a usar só espelhos recentes, sem memória nem alma. Ficou, momentaneamente, feliz. Mas viver feliz não chega, quando o nosso anjo negro nos abandonou.

Morrem-nos entes queridos, e cá ficamos indo, feridos mas vivos. Morre um espelho antigo, possuído talvez pelo outro lado da vida, que se suicida em estilhaços, e é o fim do mundo. Como quando uma boneca foge, e é o fim do mundo.

Matilde (abreviemos) acabou mal. Perdeu-se para a dança, deixou de saber de onde vinha a música. A poesia do mal passava-lhe ao lado.

Acabou mal, assim acabamos todos, lá isso é verdade.

Descrente, cega para o maravilhoso que enche o sabugo das coisas, ainda tentou um esforço de regeneração, mas já nada lhe obedecia.

Deixou de fazer parar navios no mar, de ressuscitar os necessitados, de adivinhar onde correria a água no deserto.

Propus devolver-lhe o modo mágico de enfrentar os dias, a que, à míngua de melhor termo, chamamos prosa.

Nada a conseguiria recuperar. Matilde era um espelho quebrado. Um anjo negro que perdera o norte. Como um homem que renega a infância.

Alface

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