«Anjo Azul, Céu Negro»
Mulher diante do Espelho
(Vicente do Rego Monteiro)
989- «ANJO AZUL, CÉU NEGRO»
Matilde andara o suficiente por bares de fugir para saber
que, no fundo, no fundo da noite é sempre o pescoço de Xerazade a ficar
torcido.
Agora, por um capricho que desculparemos, ei-la frente ao
espelho.
É o espelho uma peça
de imponentes dimensões, herança de família, fiel, moda testemunha de jogos,
lágrimas, devaneios.
Um espelho que não
esquece, com que se pode contar.
Matilde tinha-o na maior das considerações, até ao dia em
que a superfície brilhante recusou devolver-lhe a sua imagem de mulher
habitualmente senhora de si.
Num repente, o espelho virou baço, hostil, um muro.
Por mais que
pensasse, não percebia por que razão o espelho recusava cumprir o seu papel.
Nada, em consciência, a acusava: sempre o tratara com estima
e cumplicidade, o polira com ternura, sempre o poupara a interlúdios de
excessiva intimidade.
E depois, que diabo, um espelho só está ali para isso, não
se lhe exigindo mais que a sua estrita obrigação. Ou não será?
E no entanto, este particular espelho, por qualquer
incógnito motivo, passou a não reflectir a imagem de Matilde, quando esta — já
num estado de confusão lamentável — se sentava à sua frente.
E o estranho, o mais estranho, é que reflectia toda a gente
menos ela. Porquê? Vá lá saber-se porquê.
Chegou a planear vendê-lo e, muito incomodada, a arrumá-lo
no sótão ou fazê-lo em cacos. Ainda bem que não foi além das intenções.
Um dia, que coisa, em que ela o fixava com intensidade e
raiva, o espelho desfez-se sozinho e a Matilde, com razão ou não, o facto
pareceu um suicídio.
Foi a partir daí (por pudor, autodefesa) que ela passou a
usar só espelhos recentes, sem memória nem alma. Ficou, momentaneamente, feliz.
Mas viver feliz não chega, quando o nosso anjo negro nos abandonou.
Morrem-nos entes queridos, e cá ficamos indo, feridos mas
vivos. Morre um espelho antigo, possuído talvez pelo outro lado da vida, que se
suicida em estilhaços, e é o fim do mundo. Como quando uma boneca foge, e é o
fim do mundo.
Matilde (abreviemos) acabou mal. Perdeu-se para a dança,
deixou de saber de onde vinha a música. A poesia do mal passava-lhe ao lado.
Acabou mal, assim acabamos todos, lá isso é verdade.
Descrente, cega para o maravilhoso que enche o sabugo das
coisas, ainda tentou um esforço de regeneração, mas já nada lhe obedecia.
Deixou de fazer parar navios no mar, de ressuscitar os
necessitados, de adivinhar onde correria a água no deserto.
Propus devolver-lhe o modo mágico de enfrentar os dias, a
que, à míngua de melhor termo, chamamos prosa.
Nada a conseguiria recuperar. Matilde era um espelho
quebrado. Um anjo negro que perdera o norte. Como um homem que renega a
infância.
Alface
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