segunda-feira, 3 de abril de 2017

OUTROS CONTOS

«Um Acidente Chocante», por Graham Greene.

«Um Acidente Chocante»
Conto de Graham Greene


1006- «UM ACIDENTE CHOCANTE»

I
Jerome foi chamado ao gabinete do prefeito no intervalo entre a segunda e a terceira aula numa manhã de quinta-feira. Não tinha receio de encrenca, pois era uma sentinela - nome que o proprietário e diretor de uma dispendiosa escola preparatória resolvera dar a garotos estudiosos e dignos de confiança das séries mais atrasadas (de sentinela passava-se a guardião e por fim, antes de se sair, como era de esperar, para Marlborough ou Rugby, cruzado). O prefeito, Mr. Wordsworth, sentado atrás de sua mesa, tinha um ar de perplexidade e apreensão. Ao entrar, Jerome teve a estranha impressão de estar causando certo temor.

- Sente-se, Jerome - disse Mr. Wordsworth. - Vai tudo bem com a trigonometria?

- Vai, sim senhor.

- Recebi um telefonema, Jerome. Da sua tia. Lamento dizer que tenho más notícias para você.

- É?

- Seu pai sofreu um acidente.

- Oh!

Mr. Wordsworth encarou-o com alguma surpresa.

- Um acidente grave.

- É mesmo?

Jerome adorava o pai: o verbo é correto. Como o homem recria Deus, Jerome recriou seu pai, transfigurando um irrequieto escritor viúvo num misterioso aventureiro que viajava por lugares remotos: Nice, Beirute, Maiorca, até mesmo as Canárias. Mais ou menos aos oito anos Jerome passara a acreditar que o pai era ou traficante de armas ou agente do Serviço Secreto Britânico. Então veio-lhe à mente a possibilidade de seu pai ter sido ferido numa "saraivada de balas de metralhadora".

Mr. Wordsworth brincou com a régua sobre a escrivaninha. Parecia sem saber como continuar. Afinal disse:

- Sabia que seu pai estava em Nápoles?

- Sabia, sim senhor.

- Sua tia recebeu comunicação hoje do hospital.

- Oh!

Mr. Wordsworth explicou em desespero:

- Foi um acidente de rua.

- Mesmo, senhor? - A Jerome parecia perfeitamente natural que chamassem a isso acidente de rua. A polícia naturalmente atirara primeiro: seu pai não mataria a não ser em último recurso.

- Infelizmente seu pai ficou de fato gravemente ferido.

- Oh!

- Na realidade, Jerome, ele morreu ontem. Sem sentir dores.

- O tiro pegou bem no coração?

- Como? Como disse, Jerome?

- O tiro pegou bem no coração?

- Não houve tiro nenhum, Jerome. Um porco caiu em cima dele. - Uma convulsão inexplicável apoderou-se dos nervos faciais de Mr. Wordsworth; por um momento pareceu que ele ia estourar na gargalhada. Fechou os olhos, compôs a fisionomia e falou depressa como se fosse necessário expelir a história com a maior rapidez possível:

- Seu pai ia andando numa rua de Nápoles quando um porco caiu em cima dele. Um acidente chocante. Ao que tudo indica, nos bairros mais pobres de Nápoles é costume criar porcos nos balcões das janelas. Esse tal estava no quarto andar. Tinha engordado demais. O balcão quebrou-se. O porco caiu em cima de seu pai.

Mr. Wordsworth deixou a escrivaninha e foi para a janela, dando as costas a Jerome. Estremeceu um pouco, emocionado.

 II
 - Que aconteceu com o porco? - perguntou Jerome.

Isso não era insensibilidade da parte de Jerome, como foi interpretado por Mr. Wordsworth para seus colegas (com quem chegou até a discutir, achando que talvez Jerome ainda não estivesse apto para ser uma sentinela). Jerome estava apenas tentando visualizar a estranha cena e obter todos os pormenores. Tampouco era Jerome um menino dado a chorar; era um menino que meditava, e nunca lhe acudiu à mente, durante o período da escola preparatória, que as circunstâncias da morte de seu pai eram cómicas - eram ainda parte do mistério da vida. Só mais tarde, no primeiro ano de colégio, ao contar a história a seu melhor amigo, foi que começou a notar a reacção que ela provocava nos outros. Naturalmente, depois dessa revelação, ganhou o apelido, um tanto desarrazoado, de Porco.

Infelizmente sua tia não tinha senso de humor. Havia um instantâneo ampliado de seu pai em cima do piano: um homem alto e triste metido num inadequado terno escuro, posando em Capri com um guarda-chuva (para protegê-lo contra insolação), os rochedos de Faraglione ao fundo. Aos dezasseis anos Jerome deu-se conta de que o retrato parecia-se mais com o autor de Luz e Sombra e Perambulações nas Baleares do que com um agente do Serviço Secreto. Apesar de tudo, reverenciava a memória do pai - ainda possuía um álbum cheio de cartões postais (havia muito tempo que tirara os selos para a outra colecção) e era-lhe doloroso ver a tia narrar a desconhecidos a história da morte de seu pai.

- Um acidente chocante - começava ela, e o estranho ou estranha ia tratando de dar à fisionomia uma expressão compatível com o interesse e a comiseração. As reações eram, evidentemente, falsas, mas era terrível para Jerome ver como de repente, no meio da divagante faIa da tia, o interesse se tornava sincero. - Não consigo imaginar como se permitem tais coisas num país civilizado - dizia a tia. - Suponho que temos de considerar civilizada a Itália. Normalmente se está preparado para toda sorte de coisas no exterior, é claro, e meu irmão era um grande viajante. Sempre levava consigo um filtro. Você sabe, sai muito menos dispendioso do que comprar todas aquelas garrafas de água mineral. Meu irmão dizia sempre que seu filtro pagava o vinho do jantar. Por aí pode-se ver como ele era cuidadoso. Mas quem podia esperar que quando ele estivesse andando pela Via Dottore Manuele Panucci, a caminho do Museu Hidrográfico, um porco lhe cairia na cabeça? - Esse era o momento em que o interesse se tornava sincero.

O pai de Jerome não fora um escritor dos mais eminentes, mas sempre parece chegar o momento, depois da morte de um autor, em que alguém acha que vale a pena mandar uma carta para o Times Literary Supplement anunciando a preparação de uma biografia e pedindo para ver cartas ou documentos ou receber anedotas dos amigos do morto.

A maioria das biografias, é claro, nunca aparece - a gente se pergunta se tudo aquilo não é uma obscura forma de chantagem e se muito autor potencial de biografia ou tese não encontra desse modo o meio de concluir sua educação em Kansas, em Nottingham. Jerome, porém, sendo um perito-contador, vivia longe do mundo literário.

Não percebia que a ameaça era realmente muito pequena; nem que a fase de perigo para uma pessoa obscura como seu pai passara havia muito. Às vezes ensaiava o método de narrar a morte do pai de modo a reduzir o elemento cómico às suas dimensões mais insignificantes. Seria inútil recusar-se a dar informações, pois em tal caso o biógrafo indubitavelmente faria uma visita à tia que marchava para uma idade bastante avançada, sem indícios de debilitação. Afigurava-se a Jerome que havia dois métodos possíveis: o primeiro conduzia de mansinho ao acidente, de sorte que, no momento em que era escrito, o ouvinte estava tão bem preparado que a morte surgia realmente como um anti-clímax. O principal perigo de gargalhada em tal história era sempre a surpresa. Ao ensaiar esse método, Jerome começava de maneira bastante tediosa.

- Conhece Nápoles e aqueles altíssimos edifícios de apartamentos? Certa vez  me contaram que o napolitano sempre se sente à vontade em Nova York, exactamente como o sujeito de Turim se sente à vontade em Londres porque o rio corre mais ou menos do mesmo jeito nas duas cidades. Onde era que eu estava? Ah, sim. Nápoles, claro. Você ficaria surpreendido com as coisas que nos bairros mais pobres o povo põe nas sacadas daqueles arranha-céus... não roupa suja, compreende? mas coisas como animais domésticos, galinhas ou até mesmo porcos. Naturalmente os porcos não têm oportunidade de fazer exercícios e engordam com a maior rapidez. - Imaginava como a essa altura os olhos do ouvinte estariam arregalados. - Não tenho a mínima ideia, e você? do peso a que pode chegar um porco, mas aqueles edifícios velhos precisam todos de reparos urgentes. Uma sacada no quarto andar cedeu sob o peso de um desses porcos. Atingiu a sacada do terceiro andar na queda e como que ricocheteou na rua. Meu pai ia passando para o Museu Hidrográfico quando o porco o alcançou. Vindo daquela altura e daquele ângulo, quebrou o pescoço de meu pai. Essa era de fato uma tentativa magistral de tornar enfadonho um assunto intrinsecamente interessante.

O outro método ensaiado por Jerome tinha a virtude da concisão.

- Meu pai foi morto por um porco.

- Foi mesmo? Na Índia?

- Não. Na Itália.

- Interessante. Nunca imaginei que na Itália se caçava porco com chuço. Seu pai era fã de pólo?

No devido tempo, nem muito cedo nem muito tarde, exatamente como se em sua condição de perito-contador Jerome tivesse estudado as estatísticas e tirado a média, ficou noivo - noivo de uma moça de vinte e cinco anos, agradável, de rosto juvenil, cujo pai era médico em Pinner. Chamava-se Sally, seu autor favorito era ainda Dornford Yates, e adorava crianças desde que ganhara de presente aos cinco anos uma boneca que movia os olhos e fazia xixi. Como convinha aos amores de um perito-contador, as relações entre os dois eram marcadas mais pelo contentamento que pela excitação: não seriam corretas se atrapalhassem as contas.

Entretanto, um pensamento preocupava Jerome. Agora que dentro de um ano ele mesmo podia vir a ser pai, seu amor pelo morto aumentava; sabia quanta afeição banhava os cartões-postais. Sentia um intenso desejo de proteger a memória do morto e não tinha certeza de que esse seu amor tranquilo sobreviveria se Sally se mostrasse tão insensível a ponto de rir quando ouvisse a história da morte do pai dele.

Inevitavelmente ela iria ouvi-la quando Jerome a levasse a jantar com a tia. Várias vezes ele próprio tentou contar, já que ela, como era natural, estava ansiosa de saber tudo a respeito do noivo.

- Você era bem pequeno quando seu pai morreu?

- Tinha nove anos.

- Coitadinho - disse ela.

- Eu estava na escola. Eles é que me deram a notícia.

- Você sofreu muito?

- Não me recordo.

- Nunca me contou como é que foi.

- Foi muito de repente. Um acidente de rua.

- Você nunca vai dirigir em alta velocidade, vai, Jemmy? - (Ela começara a chamá-lo Jemmy.) Era muito tarde então para tentar o segundo método, ou a caçada de porco com chuço.

Iam casar-se sossegadamente num cartório e passar a lua-de-mel em Torquay. Ele evitou levar a noiva à casa da tia até uma semana antes do casamento, mas então chegou a noite de ir lá, e não pôde deixar de perguntar a si mesmo se sua apreensão era mais pela memória do pai ou pela segurança de seu amor. O momento não tardou a aparecer.

 - Esse é o pai de Jemmy? - perguntou Sally, pegando no retrato do homem com o guarda-chuva.

- É, sim, querida. Como adivinhou?

- Ele tem os olhos e a testa de Jemmy, não tem?

- Jerome emprestou a você os livros dele?

- Não.

- Eu lhe darei uma colecção como presente de casamento. Ele escrevia com muita ternura sobre suas viagens. Meu favorito é Recantos e Frinchas. Tinha um belo futuro pela frente. Foi isso que tornou aquele acidente ainda mais chocante.

- Verdade?

Como Jerome desejou ardentemente deixar a sala para não ver aquele rosto amado encrespar-se com a vontade irresistível de rir!

- Recebi muitas cartas dos seus leitores depois que o porco caiu em cima dele.
- A tia nunca fora tão abrupta antes.

E então ocorreu o milagre. Sally não riu. Sally sentou-se com os olhos esbugalhados de horror enquanto a tia contava a história, e no fim:

 - Que coisa horrível! exclamou. - Faz a gente pensar, não é mesmo? Acontecer assim. Despencar lá de cima.

O coração de Jerome cantou de alegria. Era como se ela lhe tivesse aplacado o medo para sempre. No táxi, a caminho de casa, ele beijou-a com mais paixão do que jamais revelara, e ela retribuiu do mesmo jeito. Havia bebés nas pupilas azul-claro da moça, bebés que reviravam os olhos e faziam xixi.

- De hoje a uma semana - disse Jerome, e ela lhe apertou a mão. - Em que
está pensando, meu amor?

- Fiquei curiosa de saber - disse Sally - o que aconteceu com o pobre do porco.

- É quase certo ter sido comido no jantar - disse Jerome feliz e beijou novamente a criaturinha adorada.

Graham Greene

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