«Um Acidente Chocante»
Conto de Graham Greene
1006- «UM ACIDENTE CHOCANTE»
I
Jerome foi chamado ao gabinete do prefeito no intervalo
entre a segunda e a terceira aula numa manhã de quinta-feira. Não tinha receio
de encrenca, pois era uma sentinela - nome que o proprietário e diretor de uma
dispendiosa escola preparatória resolvera dar a garotos estudiosos e dignos de
confiança das séries mais atrasadas (de sentinela passava-se a guardião e
por fim, antes de se sair, como era de esperar, para Marlborough ou Rugby,
cruzado). O prefeito, Mr. Wordsworth, sentado atrás de sua mesa, tinha um ar de
perplexidade e apreensão. Ao entrar, Jerome teve a estranha impressão de estar
causando certo temor.
- Sente-se, Jerome - disse Mr. Wordsworth. - Vai tudo bem
com a trigonometria?
- Vai, sim senhor.
- Recebi um telefonema, Jerome. Da sua tia. Lamento dizer
que tenho más notícias para você.
- É?
- Seu pai sofreu um acidente.
- Oh!
Mr. Wordsworth encarou-o com alguma surpresa.
- Um acidente grave.
- É mesmo?
Jerome adorava o pai: o verbo é correto. Como o homem recria
Deus, Jerome recriou seu pai, transfigurando um irrequieto escritor viúvo num
misterioso aventureiro que viajava por lugares remotos: Nice, Beirute, Maiorca,
até mesmo as Canárias. Mais ou menos aos oito anos Jerome passara a acreditar
que o pai era ou traficante de armas ou agente do Serviço Secreto Britânico.
Então veio-lhe à mente a possibilidade de seu pai ter sido ferido numa
"saraivada de balas de metralhadora".
Mr. Wordsworth brincou com a régua sobre a escrivaninha.
Parecia sem saber como continuar. Afinal disse:
- Sabia que seu pai estava em Nápoles?
- Sabia, sim senhor.
- Sua tia recebeu comunicação hoje do hospital.
- Oh!
Mr. Wordsworth explicou em desespero:
- Foi um acidente de rua.
- Mesmo, senhor? - A Jerome parecia perfeitamente natural
que chamassem a isso acidente de rua. A polícia naturalmente atirara primeiro:
seu pai não mataria a não ser em último recurso.
- Infelizmente seu pai ficou de fato gravemente ferido.
- Oh!
- Na realidade, Jerome, ele morreu ontem. Sem sentir dores.
- O tiro pegou bem no coração?
- Como? Como disse, Jerome?
- O tiro pegou bem no coração?
- Não houve tiro nenhum, Jerome. Um porco caiu em cima dele.
- Uma convulsão inexplicável apoderou-se dos nervos faciais de Mr.
Wordsworth; por um momento pareceu que ele ia estourar na gargalhada. Fechou
os olhos, compôs a fisionomia e falou depressa como se fosse necessário expelir
a história com a maior rapidez possível:
- Seu pai ia andando numa rua de Nápoles quando um porco
caiu em cima dele. Um acidente chocante. Ao que tudo indica, nos bairros mais
pobres de Nápoles é costume criar porcos nos balcões das janelas. Esse tal
estava no quarto andar. Tinha engordado demais. O balcão quebrou-se. O porco
caiu em cima de seu pai.
Mr. Wordsworth deixou a escrivaninha e foi para a janela,
dando as costas a Jerome. Estremeceu um pouco, emocionado.
Isso não era insensibilidade da parte de Jerome, como foi
interpretado por Mr. Wordsworth para seus colegas (com quem chegou até a
discutir, achando que talvez Jerome ainda não estivesse apto para ser uma
sentinela). Jerome estava apenas tentando visualizar a estranha cena e obter
todos os pormenores. Tampouco era Jerome um menino dado a chorar; era um menino
que meditava, e nunca lhe acudiu à mente, durante o período da escola
preparatória, que as circunstâncias da morte de seu pai eram cómicas - eram
ainda parte do mistério da vida. Só mais tarde, no primeiro ano de colégio, ao
contar a história a seu melhor amigo, foi que começou a notar a reacção que ela
provocava nos outros. Naturalmente, depois dessa revelação, ganhou o apelido,
um tanto desarrazoado, de Porco.
Infelizmente sua tia não tinha senso de humor. Havia um
instantâneo ampliado de seu pai em cima do piano: um homem alto e triste metido
num inadequado terno escuro, posando em Capri com um guarda-chuva (para
protegê-lo contra insolação), os rochedos de Faraglione ao fundo. Aos dezasseis
anos Jerome deu-se conta de que o retrato parecia-se mais com o autor de Luz e
Sombra e Perambulações nas Baleares do que com um agente do Serviço Secreto.
Apesar de tudo, reverenciava a memória do pai - ainda possuía um álbum cheio de
cartões postais (havia muito tempo que tirara os selos para a outra colecção) e
era-lhe doloroso ver a tia narrar a desconhecidos a história da morte de seu
pai.
- Um acidente chocante - começava ela, e o estranho ou
estranha ia tratando de dar à fisionomia uma expressão compatível com o
interesse e a comiseração. As reações eram, evidentemente, falsas, mas era
terrível para Jerome ver como de repente, no meio da divagante faIa da tia, o
interesse se tornava sincero. - Não consigo imaginar como se permitem tais
coisas num país civilizado - dizia a tia. - Suponho que temos de considerar
civilizada a Itália. Normalmente se está preparado para toda sorte de coisas no
exterior, é claro, e meu irmão era um grande viajante. Sempre levava consigo um
filtro. Você sabe, sai muito menos dispendioso do que comprar todas aquelas
garrafas de água mineral. Meu irmão dizia sempre que seu filtro pagava o vinho
do jantar. Por aí pode-se ver como ele era cuidadoso. Mas quem podia esperar
que quando ele estivesse andando pela Via Dottore Manuele Panucci, a caminho do
Museu Hidrográfico, um porco lhe cairia na cabeça? - Esse era o momento em que
o interesse se tornava sincero.
O pai de Jerome não fora um escritor dos mais eminentes, mas
sempre parece chegar o momento, depois da morte de um autor, em que alguém acha
que vale a pena mandar uma carta para o Times Literary Supplement anunciando a
preparação de uma biografia e pedindo para ver cartas ou documentos ou receber
anedotas dos amigos do morto.
A maioria das biografias, é claro, nunca aparece - a gente
se pergunta se tudo aquilo não é uma obscura forma de chantagem e se muito
autor potencial de biografia ou tese não encontra desse modo o meio de concluir
sua educação em Kansas, em Nottingham. Jerome, porém, sendo um perito-contador,
vivia longe do mundo literário.
Não percebia que a ameaça era realmente muito pequena; nem
que a fase de perigo para uma pessoa obscura como seu pai passara havia muito.
Às vezes ensaiava o método de narrar a morte do pai de modo a reduzir
o elemento cómico às suas dimensões mais insignificantes. Seria inútil
recusar-se a dar informações, pois em tal caso o biógrafo indubitavelmente
faria uma visita à tia que marchava para uma idade bastante avançada, sem
indícios de debilitação. Afigurava-se a Jerome que havia dois métodos
possíveis: o primeiro conduzia de mansinho ao acidente, de sorte que, no momento em que era
escrito, o ouvinte estava tão bem preparado que a morte surgia realmente como
um anti-clímax. O principal perigo de gargalhada em tal história era sempre a
surpresa. Ao ensaiar esse método, Jerome começava de maneira bastante tediosa.
- Conhece Nápoles e aqueles altíssimos edifícios de
apartamentos? Certa vez me contaram que o napolitano sempre se sente à
vontade em Nova York, exactamente como o sujeito de Turim se sente à vontade em
Londres porque o rio corre mais ou menos do mesmo jeito nas duas cidades. Onde
era que eu estava? Ah, sim. Nápoles, claro. Você ficaria surpreendido com as
coisas que nos bairros mais pobres o povo põe nas sacadas daqueles
arranha-céus... não roupa suja, compreende? mas coisas como animais domésticos,
galinhas ou até mesmo porcos. Naturalmente os porcos não têm oportunidade de
fazer exercícios e engordam com a maior rapidez. - Imaginava como a essa altura
os olhos do ouvinte estariam arregalados. - Não tenho a mínima ideia, e você?
do peso a que pode chegar um porco, mas aqueles edifícios velhos precisam todos de reparos urgentes. Uma sacada no quarto andar cedeu sob o
peso de um desses porcos. Atingiu a sacada do terceiro andar na queda e como
que ricocheteou na rua. Meu pai ia passando para o Museu Hidrográfico quando o
porco o alcançou. Vindo daquela altura e daquele ângulo, quebrou o pescoço de
meu pai. Essa era de fato uma tentativa magistral de tornar enfadonho um
assunto intrinsecamente interessante.
O outro método ensaiado por Jerome tinha a virtude da
concisão.
- Meu pai foi morto por um porco.
- Foi mesmo? Na Índia?
- Não. Na Itália.
- Interessante. Nunca imaginei que na Itália se caçava porco
com chuço. Seu pai era fã de pólo?
No devido tempo, nem muito cedo nem muito tarde, exatamente
como se em sua condição de perito-contador Jerome tivesse estudado as
estatísticas e tirado a média, ficou noivo - noivo de uma moça de vinte e cinco
anos, agradável, de rosto juvenil, cujo pai era médico em Pinner. Chamava-se
Sally, seu autor favorito era ainda Dornford Yates, e adorava crianças desde
que ganhara de presente aos cinco anos uma boneca que movia os olhos e fazia
xixi. Como convinha aos amores de um perito-contador, as relações entre os dois
eram marcadas mais pelo contentamento que pela excitação: não seriam corretas
se atrapalhassem as contas.
Entretanto, um pensamento preocupava Jerome. Agora que
dentro de um ano ele mesmo podia vir a ser pai, seu amor pelo morto aumentava;
sabia quanta afeição banhava os cartões-postais. Sentia um intenso desejo de
proteger a memória do morto e não tinha certeza de que esse seu amor tranquilo
sobreviveria se Sally se mostrasse tão insensível a ponto de rir quando ouvisse
a história da morte do pai dele.
Inevitavelmente ela iria ouvi-la quando Jerome a levasse a
jantar com a tia. Várias vezes ele próprio tentou contar, já que ela, como era
natural, estava ansiosa de saber tudo a respeito do noivo.
- Você era bem pequeno quando seu pai morreu?
- Tinha nove anos.
- Coitadinho - disse ela.
- Eu estava na escola. Eles é que me deram a notícia.
- Você sofreu muito?
- Não me recordo.
- Nunca me contou como é que foi.
- Foi muito de repente. Um acidente de rua.
- Você nunca vai dirigir em alta velocidade, vai, Jemmy? -
(Ela começara a chamá-lo Jemmy.) Era muito tarde então para tentar o segundo
método, ou a caçada de porco com chuço.
Iam casar-se sossegadamente num cartório e passar a
lua-de-mel em Torquay. Ele evitou levar a noiva à casa da tia até uma semana
antes do casamento, mas então chegou a noite de ir lá, e não pôde deixar de
perguntar a si mesmo se sua apreensão era mais pela memória do pai ou pela
segurança de seu amor. O momento não tardou a aparecer.
- Esse é o pai de Jemmy? - perguntou Sally, pegando no
retrato do homem com o guarda-chuva.
- É, sim, querida. Como adivinhou?
- Ele tem os olhos e a testa de Jemmy, não tem?
- Jerome emprestou a você os livros dele?
- Não.
- Eu lhe darei uma colecção como presente de casamento. Ele
escrevia com muita ternura sobre suas viagens. Meu favorito é Recantos e
Frinchas. Tinha um belo futuro pela frente. Foi isso que tornou aquele acidente
ainda mais chocante.
- Verdade?
Como Jerome desejou ardentemente deixar a sala para não ver
aquele rosto amado encrespar-se com a vontade irresistível de rir!
- Recebi muitas cartas dos seus leitores depois que o porco
caiu em cima dele.
- A tia nunca fora tão abrupta antes.
E então ocorreu o milagre. Sally não riu. Sally sentou-se
com os olhos esbugalhados de horror enquanto a tia contava a história, e no
fim:
- Que coisa horrível! exclamou. - Faz a gente pensar,
não é mesmo? Acontecer assim. Despencar lá de cima.
O coração de Jerome cantou de alegria. Era como se ela lhe
tivesse aplacado o medo para sempre. No táxi, a caminho de casa, ele beijou-a
com mais paixão do que jamais revelara, e ela retribuiu do mesmo jeito. Havia
bebés nas pupilas azul-claro da moça, bebés que reviravam os olhos e faziam
xixi.
- De hoje a uma semana - disse Jerome, e ela lhe apertou a
mão. - Em que
está pensando, meu amor?
- Fiquei curiosa de saber - disse Sally - o que aconteceu
com o pobre do porco.
- É quase certo ter sido comido no jantar - disse Jerome
feliz e beijou novamente a criaturinha adorada.
Graham Greene
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