«O Ano da Morte de Ricardo Reis»
Pequeno Excerto
1057- «O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS»
“[…] Então não concorda, Seria difícil concordar, eu diria,
até, que a história desmente o Ferro, basta lembrar o tempo da nossa juventude,
o Orfeu, o resto, digam-me se aquilo era um regime de ordem, ainda que,
reparando bem, meu caro Reis, as suas odes sejam, para assim dizer, uma
poetização da ordem, Nunca as vi dessa maneira, Pois é o que elas são, a
agitação dos homens é sempre vã, os deuses são sábios e indiferentes, vivem e
extinguem-se na própria ordem que criaram, e o resto é talhado no mesmo pano,
Acima dos deuses está o destino, O destino é a ordem suprema, a que os próprios
deuses aspiram. E os homens, que papel vem a ser o dos homens, Perturbar a
ordem, corrigir o destino, Para melhor, Para melhor ou para pior, tanto faz, o
que é preciso é impedir que o destino seja destino, Você lembra-me a Lídia,
também fala muitas vezes do destino, mas diz outras coisas, Do destino,
felizmente, pode-se dizer tudo, Estávamos a falar do Ferro, O Ferro é tonto,
achou que o Salazar era o destino português, O messias, Nem isso, o pároco que
nos baptiza, crisma, casa e encomenda, Em nome da ordem, Exactamente, em nome
da ordem, Você, em vida, era menos subversivo, tanto quanto me lembro, Quando
se chega a morto vemos a vida doutra maneira, e, com esta decisiva,
irrespondível frase me despeço, irrespondível digo, porque estando você vivo
não pode responder, Por que é que não passa cá a noite, já no outro dia lho
disse, Não é bom para os mortos habituarem-se a viver com os vivos, e também
não seria bom para os vivos atravancarem-se de mortos, A humanidade compõe-se
de uns e outros, Isso é verdade, mas, se assim fosse tão completamente, você
não me teria apenas a mim, aqui, teria o juiz da Relação e o resto da família,
[…]”
José Saramago
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