sábado, 29 de julho de 2017

OUTROS CONTOS

«O Ano da Morte de Ricardo Reis», por José Saramago.

«O Ano da Morte de Ricardo Reis»
Pequeno Excerto

1057- «O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS»

“[…] Então não concorda, Seria difícil concordar, eu diria, até, que a história desmente o Ferro, basta lembrar o tempo da nossa juventude, o Orfeu, o resto, digam-me se aquilo era um regime de ordem, ainda que, reparando bem, meu caro Reis, as suas odes sejam, para assim dizer, uma poetização da ordem, Nunca as vi dessa maneira, Pois é o que elas são, a agitação dos homens é sempre vã, os deuses são sábios e indiferentes, vivem e extinguem-se na própria ordem que criaram, e o resto é talhado no mesmo pano, Acima dos deuses está o destino, O destino é a ordem suprema, a que os próprios deuses aspiram. E os homens, que papel vem a ser o dos homens, Perturbar a ordem, corrigir o destino, Para melhor, Para melhor ou para pior, tanto faz, o que é preciso é impedir que o destino seja destino, Você lembra-me a Lídia, também fala muitas vezes do destino, mas diz outras coisas, Do destino, felizmente, pode-se dizer tudo, Estávamos a falar do Ferro, O Ferro é tonto, achou que o Salazar era o destino português, O messias, Nem isso, o pároco que nos baptiza, crisma, casa e encomenda, Em nome da ordem, Exactamente, em nome da ordem, Você, em vida, era menos subversivo, tanto quanto me lembro, Quando se chega a morto vemos a vida doutra maneira, e, com esta decisiva, irrespondível frase me despeço, irrespondível digo, porque estando você vivo não pode responder, Por que é que não passa cá a noite, já no outro dia lho disse, Não é bom para os mortos habituarem-se a viver com os vivos, e também não seria bom para os vivos atravancarem-se de mortos, A humanidade compõe-se de uns e outros, Isso é verdade, mas, se assim fosse tão completamente, você não me teria apenas a mim, aqui, teria o juiz da Relação e o resto da família, […]”

José Saramago

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