«O Suave Milagre»
Conto de Eça de Queiroz
1072- «O SUAVE MILAGRE»
Ora entre Enganin e Cesareia, num casebre desgarrado, sumido
na prega de um cerro, vivia a esse tempo uma viúva, mais desgraçada mulher que
todas as mulheres de Israel. O seu filhinho único, todo aleijado, passara do
magro peito a que ele o criara para os farrapos da enxerga apodrecida, onde
jazera, sete anos passados, mirrando e gemendo. Também a ela a doença a
engelhara dentro dos trapos nunca mudados, mais escura e torcida que uma cepa
arrancada. E, sobre ambos, espessamente a miséria cresceu como bolor sobre
cacos perdidos num ermo. Até na lâmpada de barro vermelho secara há muito o
azeite. Dentro da arca pintada não restava um grão ou côdea. No Estio, sem pasto,
a cabra morrera. Depois, no quinteiro, secara a figueira. Tão longe do povoado,
nunca esmola de pão ou mel entrava o portal. E só ervas apanhadas nas fendas
das rochas, cozidas sem sal, nutriam aquelas criaturas de Deus na Terra
Escolhida, onde até às aves maléficas sobrava o sustento!
Um dia um mendigo entrou no casebre, repartiu do seu farnel
com a mãe amargurada, e um momento sentado na pedra da lareira, coçando as
feridas das pernas, contou dessa grande esperança dos tristes, esse rabi que
aparecera na Galileia, e de um pão no mesmo cesto fazia sete, e amava todas as
criancinhas, e enxugava todos os prantos, e prometia aos pobres um grande e
luminoso reino, de abundância maior que a corte de Salomão. A mulher escutava,
com os olhos famintos. E esse doce rabi, esperança dos tristes, onde se
encontrava? O mendigo suspirou. Ah esse doce rabi! quantos o desejavam, que de
desesperançavam! A sua fama andava por sobre toda a Judeia, como o sol que até
por qualquer velho muro se estende e se goza; mas para enxergar a claridade do
seu rosto, só aqueles ditosos que o seu desejo escolhia. Obed, tão rico,
mandara os servos por toda a Galileia para que procurassem Jesus, o chamassem
com promessas a Enganim; Sétimo, tão soberano, destacara os seus soldados até à
costa do mar, para que buscassem Jesus, o conduzissem, por seu mando, a
Cesareia. Errando, esmolando por tantas estradas, ele topara os servos de Obed,
depois os legionários de Sétimo. E todos voltavam, como derrotados, com as
sandálias rotas, sem ter descoberto em que mata ou cidade, em que toca ou
palácio, se escondia Jesus.
A tarde caía. O mendigo apanhou o seu bordão, desceu pelo
duro trilho, entre a urze e a rocha. A mãe retomou o seu canto, a mãe mais
vergada, mais abandonada. E então o filhinho, num murmúrio mais débil que o
roçar duma asa, pediu à mãe que lhe trouxesse esse rabi que amava as
criancinhas, ainda as mais pobres, sarava os males, ainda os mais antigos. A
mãe apertou a cabeça engelhada: - Oh filho! e como queres que te deixe, e me
meta aos caminhos, à procura do rabi da Galileia? Obed é rico e tem servos, e
debalde buscaram Jesus, por areais e colinas, desde Chorazim até ao país de
Moab. Sétimo é forte e tem soldados, e debalde correram por Jesus, desde Hébron
até ao mar! Como queres que te deixe? Jesus anda por muito longe e nossa dor
mora connosco, dentro destas paredes e dentro delas nos prende. E mesmo que o
encontrasse, como convenceria eu o rabi tão desejado, por quem ricos e fortes
suspiram, a que descesse através das cidades até este ermo, para sarar um
entrevadinho tão pobre, sobre enxerga tão rota?
A criança, com duas longas lágrimas na face magrinha,
murmurou: - Oh mãe! Jesus ama todos os pequeninos. E eu ainda tão pequeno, e
com um mal tão pesado, e que tanto queria sarar! E a mãe, em soluços: - Oh meu
filho como te posso deixar! Longas são as estradas da Galileia, e curta a
piedade dos homens. Tão rota, tão trôpega, tão triste, até os cães me ladrariam
da porta dos casais. Ninguém atenderia o meu recado, e me apontaria a morada do
doce rabi. Oh filho! Talvez Jesus morresse... Nem mesmo os ricos e os fortes o
encontram. O Céu o trouxe, o Céu o levou. E com ele para sempre morreu a
esperança dos tristes.
De entre os negros trapos, erguendo as suas pobres mãozinhas
que tremiam, a criança murmurou: - Mãe, eu queria ver Jesus... E logo, abrindo
devagar a porta e sorrindo, Jesus disse à criança: - Aqui estou.
Eça de Queiroz
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