«O Soldadinho de Chumbo»
Conto de Hans Christian Andersen
1062- «O SOLDADINHO DE CHUMBO»
Numa loja de brinquedos havia uma caixa de papelão
com vinte e cinco soldadinhos de chumbo, todos iguaizinhos,
pois haviam sido feitos com o mesmo molde. Apenas um deles era
perneta: como fora o último a ser fundido, faltou chumbo para completar a
outra perna. Mas o soldadinho perneta logo aprendeu a ficar em pé sobre a
única perna e não fazia feio ao lado dos irmãos.
Esses soldadinhos de chumbo eram muito bonitos e elegantes,
cada qual com seu fuzil ao ombro, a túnica escarlate, calça azul e uma bela
pluma no chapéu. Além disso, tinham feições de soldados corajosos e cumpridores
do dever.
Os valorosos soldadinhos de chumbo aguardavam o momento
em que passariam a pertencer a algum menino.
Chegou o dia em que a caixa foi dada de presente
de aniversário a um garoto. Foi o presente de que ele mais gostou:
— Que lindos soldadinhos! — exclamou maravilhado. E os
colocou enfileirados sobre a mesa, ao lado dos outros brinquedos. O
soldadinho de uma perna só era o último da fileira.
Ao lado do pelotão de chumbo se erguia um lindo castelo de
papelão, um bosque de árvores verdinhas e, em frente, havia um pequeno
lago feito de um pedaço de espelho.
A maior beleza, porém, era uma jovem que estava em pé
na porta do castelo. Ela também era de papel, mas vestia uma saia de tule
bem franzida e uma blusa bem justa. Seu lindo rostinho era emoldurado por
longos cabelos negros, presos por uma tiara enfeitada com uma pequenina
pedra azul.
A atraente jovem era uma bailarina, por isso
mantinha os braços erguidos em arco sobre a cabeça. Com uma
das pernas dobrada para trás, tão dobrada, mas tão dobrada,
que acabava escondida pela saia de tule.
O soldadinho a olhou longamente e logo se apaixonou,
e pensando que, tal como ele, aquela jovem tão linda tivesse
uma perna só.
“Mas é claro que ela não me vai querer para
marido”, pensou entristecido o soldadinho, suspirando. “Tão
elegante, tão bonita… Deve ser uma princesa. E eu? Nem cabo sou, vivo
numa caixa de papelão, junto com meus vinte e quatro irmãos”.
À noite, antes de deitar, o menino guardou
os soldadinhos na caixa, mas não percebeu que aquele de uma perna só
caíra atrás de uma grande cigarreira.
Quando os ponteiros do relógio marcaram
meia-noite, todos os brinquedos se animaram e começaram a
aprontar mil e uma. Uma enorme bagunça!
As bonecas organizaram um baile, enquanto o giz
da lousa desenhava bonequinhos nas paredes. Os soldadinhos de chumbo,
fechados na caixa, golpeavam a tampa para sair e participar da festa, mas
continuavam prisioneiros.
Mas o soldadinho de uma perna só e a bailarina
não saíram do lugar em que haviam sido colocados. Ele não conseguia
parar de olhar aquela maravilhosa criatura. Queria ao menos tentar
conhecê-la, para ficarem amigos.
De repente, se ergueu da cigarreira um homenzinho muito
mal-encarado. Era um génio ruim, que só vivia pensando em maldades. Assim
que ele apareceu, todos os brinquedos pararam amedrontados, pois já sabiam
de quem se tratava.
O geniozinho olhou a sua volta e viu o
soldadinho, deitado atrás da cigarreira.
— Ei, você aí, por que não está na caixa, com
seus irmãos? — gritou o monstrinho.
Fingindo não escutar, o soldadinho continuou
imóvel, sem desviar os olhos da bailarina.
— Amanhã vou dar um jeito em você, você vai ver! —
gritou o geniozinho enfezado. — Pode esperar.
Depois disso, pulou de cabeça na cigarreira,
levantando uma nuvem que fez todos espirrarem.
Na manhã seguinte, o menino tirou os soldadinhos
de chumbo da caixa, recolheu aquele de uma perna só, que estava caído
atrás da cigarreira, e os arrumou perto da janela. O soldadinho de uma
perna só, como de costume, era o último da fila.
De repente, a janela se abriu, batendo fortemente
as venezianas. Teria sido o vento, ou o geniozinho maldoso? E o pobre
soldadinho caiu de cabeça na rua.
O menino viu quando o brinquedo caiu pela janela e foi
correndo procurá-lo na rua. Mas não o encontrou. Logo se consolou: afinal,
tinha ainda os outros soldadinhos, e todos com duas pernas.
Para piorar a situação, caiu um verdadeiro
temporal. Quando a tempestade foi cessando, e o céu limpou um
pouco, chegaram dois moleques. Eles se divertiam, pisando com os pés
descalços nas poças de água. Um deles viu o soldadinho de chumbo e
exclamou:
— Olhe! Um soldadinho! Será que alguém jogou
fora porque ele está quebrado?
— É, está um pouco amassado. Deve ter vindo com
a enxurrada.
— Não, ele está só um pouco sujo.
— O que nós vamos fazer com um soldadinho
só? Precisaríamos pelo menos meia dúzia, para organizar uma batalha.
— Sabe de uma coisa? — Disse o primeiro garoto. — Vamos
colocá-lo num barco e mandá-lo dar a volta ao mundo.
E assim foi. Construíram um barquinho com uma folha de
jornal, colocaram o soldadinho dentro dele e soltaram o barco para navegar
na água que corria pela sarjeta.
Apoiado em sua única perna, com o fuzil ao ombro, o
soldadinho de chumbo procurava manter o equilíbrio. O barquinho dava
saltos e esbarrões na água lamacenta, acompanhado pelos olhares dos dois
moleques que, entusiasmados com a nova brincadeira, corriam
pela calçada ao lado.
Lá pelas tantas, o barquinho foi jogado para dentro
de um bueiro e continuou seu caminho, agora subterrâneo, em uma
imensa escuridão. Com o coração batendo fortemente, o soldadinho voltava
todos seus pensamentos para a bailarina, que talvez nunca mais pudesse
ver.
De repente, viu chegar em sua direcção um enorme rato de
esgoto, olhos fosforescente e um horrível rabo fino e comprido, que foi
logo perguntando:
— Você tem autorização para navegar? Então? Ande, mostre-a
logo, sem discutir.
O soldadinho não respondeu, e o barquinho continuou seu
incerto caminho, arrastado pela correnteza. Os gritos do rato do esgoto
exigindo a autorização foram ficando cada vez mais distantes.
Enfim, o soldadinho viu ao longe uma luz, e
respirou aliviado; aquela viagem no escuro não o agradava nem
um pouco. Mal sabia ele que, infelizmente, seus problemas não haviam
acabado.
A água do esgoto chegara a um rio, com um grande salto;
rapidamente, as águas agitadas viraram o frágil barquinho de papel.
O barquinho virou, e o soldadinho de chumbo
afundou. Mal tinha chegado ao fundo, apareceu um enorme peixe
que, abrindo a boca, engoliu-o.
O soldadinho se viu novamente numa imensa escuridão,
espremido no estômago do peixe. E não deixava de pensar em sua amada: “O
que estará fazendo agora sua linda bailarina? Será que ainda se lembra de
mim?”.
E, se não fosse tão destemido, teria chorado
lágrimas de chumbo, pois seu coração sofria de paixão.
Passou-se muito tempo — quem poderia dizer quanto? E,
de repente, a escuridão desapareceu e ele ouviu quando falavam:
— Olhe! O soldadinho de chumbo que caiu da janela!
Sabem o que aconteceu? O peixe havia sido fisgado
por um pescador, levado ao mercado e vendido a uma cozinheira. E, por
cúmulo da coincidência, não era qualquer cozinheira, mas sim a que
trabalhava na casa do menino que ganhara o soldadinho no aniversário. Ao
limpar o peixe, a cozinheira encontrara dentro dele o soldadinho, do qual
se lembrava muito bem, por causa daquela única perna.
Levou-o para o garotinho, que fez a maior festa ao revê-lo.
Lavou-o com água e sabão, para tirar o fedor de peixe, e endireitou a
ponta do fuzil, que amassara um pouco durante aquela aventura.
Limpinho e lustroso, o soldadinho foi colocado sobre a
mesma mesa em que estava antes de voar pela janela. Nada estava mudado. O
castelo de papel, o pequeno bosque de árvores muito verdes, o lago
reluzente feito de espelho. E, na porta do castelo, lá estava ela, a
bailarina: sobre uma perna só, com os braços erguidos acima da cabeça,
mais bela do que nunca.
O soldadinho olhou para a bailarina, ainda
mais apaixonado, ela olhou para ele, mas não trocaram palavra alguma.
Ele desejava conversar, mas não ousava. Sentia-se feliz apenas por estar
novamente perto dela e poder amá-la.
Se pudesse, ele contaria toda sua aventura; com certeza
a linda bailarina iria apreciar sua coragem. Quem sabe, até
se casaria com ele…
Enquanto o soldadinho pensava em tudo isso, o garotinho
brincava tranquilo com o pião.
De repente como foi, como não foi — é caso de se pensar
se o geniozinho ruim da cigarreira não metera seu nariz —, o garotinho
agarrou o soldadinho de chumbo e atirou-o na lareira, onde o fogo ardia
intensamente.
O pobre soldadinho viu a luz intensa e sentiu um
forte calor. A única perna estava amolecendo e a ponta do
fuzil envergava para o lado. As belas cores do uniforme, o
vermelho escarlate da túnica e o azul da calça perdiam suas tonalidades.
O soldadinho lançou um último olhar para a
bailarina, que retribuiu com silêncio e tristeza. Ele sentiu então que
seu coração de chumbo começava a derreter — não só pelo calor, mas
principalmente pelo amor que ardia nele.
Naquele momento, a porta escancarou-se com violência, e
uma rajada de vento fez voar a bailarina de papel directamente para a
lareira, bem junto ao soldadinho. Bastou uma labareda e ela desapareceu. O
soldadinho também se dissolveu completamente.
No dia seguinte a arrumadeira, ao limpar a
lareira, encontrou no meio das cinzas um pequenino coração de chumbo:
era tudo que restara do soldadinho, fiel até o último instante ao seu
grande amor.
Da pequena bailarina de papel só restou a minúscula
pedra azul da tiara, que antes brilhava em seus longos cabelos negros.
Hans Christian Andersen
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