quarta-feira, 13 de setembro de 2017

OUTROS CONTOS

«O Poema», conto poético por Herberto Helder.

«O Poema»
Retrato do Poeta/ Maria Henriques

1903- «O POEMA»

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne. Sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
— a hora teatral da posse.

E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
e a miséria dos minutos,
e a força sustida das coisas, 
e a redonda e livre harmonia do mundo.
— Embaixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
— E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

Herberto Helder

Sem comentários:

Enviar um comentário