«As Mãos de Prata»
Conto de José Gomes Ferreira
1115- «AS MÃOS DE PRATA»
Desde a minha mudança para esta zona convizinha de ciganos e barracas de
madeira, que aquele ser pertence à minha «colecção dos remorsos» – museu vivo
de pessoas infelizes que trago sempre na memória para, de vez em quando, me
lembrar da desgraça do mundo (não sei bem. para quê). Mas a verdade é que, para
viver alegre e feliz, sinto necessidade desta obrigação de untar de fel cada
sorriso que me vem à boca.
Estou neste momento a referir-me ao mocito de perfil ranhoso
e dois tubos ferrugentos a servirem de pernas que, às corridinhas descalças,
não largava as saias da mãe, uma mulher debruada de porcaria que, todas as
manhãs, antes de chegar a carroça do lixo, remexia nos caixotes já muito
esgaravatados pelos cães nocturnos.
Nesse garoto, que a imundície tornava, por assim dizer, mais
inocente, impressionavam-me sobretudo as mãos que me estendia a pedir esmola.
Duas mãos belas, estreitas, de longos dedos de prata
transparente, colados a uns bracitos peludamente sujos de animal condenado ao
trabalho do suor sem gozo. Mãos aristocráticas, em suma.
– De fidalgo! – como lhe berrava a mãe furiosa contra
ninguém. – Eu dou-te a fidalguia, meu malandro!
– Porque não o manda para a escola? – ouvi eu um dia alguém
perguntar-lhe, de passagem (como sabem, só conheço a desgraça e a miséria de
raspão. De ouvido).
– Escola? O que ele precisa é de fossar! De um ofício! –
respondia a mãe com teima quezilenta. – Não sustento calões!
E, como pude verificar pela vida fora, não desistiu desse
intento porque, durante anos e anos de espionagem, acompanhei o itinerário do
garoto aos tombos de ofício em ofício. Que me lembre, vendeu castanhas,
carregou cestos de marçano e até o lobriguei, de bata encardida de aprendiz,
muito perfilado na barbearia do bairro, a estudar com indiferença atenta os
manejos da navalha vaidosa de um mestre-escama (por pouco tempo, creio-o bem).
Mas sempre canhestro e desajeitado, as mãos cada vez mais esguias, de leveza
longa, a contrastarem com o corpo grosseiro; cabeçorra de cabelos hirtos de
tanta sujidade, testa curta, olhos estúpidos, nariz de bicanca...
Bem. Não esperem agora que vá ficar para aqui a relatar
miudamente a vida desse rapaz (em grande parte apenas adivinhada ou deduzida),
que lá foi vegetando aos baldões indecisos enquanto a mãe irada teve forças
para o arrastar, a tabefe, de ofício em oficio. Sapateiro, marceneiro, ajudante
de trolha, alfaiate, assentador de fundos de cadeiras, sei lá! Tudo em vão. O
pobre moço nascera com destino de operário de última escala (nunca poderia ser
outra coisa na vida!), mas, por qualquer fatalidade nervosa de inibição
trágica, as mãos recusavam-se a «ter jeito» e a ajudá-lo a seguir o rumo social
que lhe pertencia por injustiça de nascer.
Até que, em certa tardinha desamparada, o encontrei sozinho
no meio da rua, com uma braçadeira de luto. (Morreu-lhe a mãe – pensei,
estremecido de horror. – Que vai ser dele?)
Mas não levei mais de dois minutos a esquecer-me da tragédia. (Estava bem
arranjado se sofresse tanto como devia!) E, durante meses e meses, não tornei a
pôr-lhe os olhos em cima. Provavelmente, expulsaram-no da barraca de lata onde
vivia com a mãe, mudou de bairro e agora anda por aí – coitado! – ao deus- não
dará!
Isso sim! Respirava mais perto de mim do que eu supunha.
Porque antes de ontem voltou a entrar na minha vida. Ou, com mais precisão: em
minha casa – enviado por uma oficina a que recorri para me colocarem um espelho
no quarto de banho. E ele ali estava agora no corredor, às minhas ordens. Com
um sorriso pingão e a caixa de lata do ofício a tiracolo.
Bons dias. Venho da parte de… «Sim, senhor. Entre.»
Olhei-lhe para as mãos. Iguais. Mantinham a mesma delicadeza monstruosa de
nascença. Mãos de prata macia.
Fingimos que não nos conhecíamos, para tudo começar
naturalmente, e conduzi-o ao quarto de banho.
O espelho é este e aqui tem as buchas. Modernas. De
plástico. Etc. Etc.
E com o coração esfriado de angústia voltei a sentar-me à
mesa de trabalho, a ouvir na rádio uma sinfonia de Mahler (o estranho
compositor do «banal encantado»), enquanto o instalador do espelho se punha a
martelar, a princípio com certo à-vontade que me estarreceu. Mas em breve tudo
degenerou numa salada de ruídos insólitos quase angustiosos, de mistura
metálica com sons de escopro e aflição de pedras e estuques escaqueirados, ao
som da marcha fúnebre da sinfonia de Mahler (a Titã) cada vez mais funesta e
terrível.
Santo Deus! Que se passava lá dentro? E se eu fosse
espreitar? Mas consegui resistir à tentação enquanto não me chegou aos ouvidos
o estardalhaço violento de uma espécie de apoteose tilintada de mil voos de
vidro. A que se seguiu um silêncio, por assim dizer, opaco.
Corri então, alucinado, escancarei a porta e o triste
infeliz ali estava, pálido, os olhos a escorregarem-lhe da cara para a
catástrofe do espelho estilhaçado no solo – as mãos caídas ao longo do corpo,
belas, sangrentas, inúteis, implorantes, vazias...
Mal me viu, sentou-se na borda da banheira e desatou a chorar.
José Gomes Ferreira
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