«Singelo Almoço», por Somerset Maugham.
«Singelo Almoço»
Conto de Somerset Maugham
1140- «SINGELO ALMOÇO»
Dei conta da sua presença no teatro e, em resposta ao seu
aceno, fui ter com ela durante o intervalo e sentei-me ao seu lado. Já fazia
muito tempo desde a última vez que a vira e, se alguém não tivesse mencionado o
seu nome, penso que dificilmente a teria reconhecido. Dirigiu-se-me esfuziante.
- Bom, já passaram muitos anos desde que nos encontrámos a
primeira vez. Como o tempo voa! Nenhum de nós está a ficar mais jovem.
Lembra-se da primeira vez que o vi? Convidou-me para um singelo almoço.
- Se me lembro?
Foi há vinte anos atrás e estava a viver em Paris. Tinha um
pequeníssimo apartamento no Quartier Latin com vista para um cemitério e
ganhava estritamente o necessário para manter o corpo e a alma juntos. Ela
tinha lido um livro meu e tinha-me escrito sobre o mesmo. Respondi-lhe,
agradecendo e tinha recebido, na altura, da parte dela uma outra carta dizendo
que estava de passagem por Paris e que gostaria de conversar comigo; contudo o
seu tempo era limitado e que o único momento que tinha era na quinta-feira
seguinte; passaria a manhã no Louxembourg e se, entretanto, a convidaria para
um singelo almoço no Foyot's. O Foyot's é o restaurante onde costumam comer os
Senadores Franceses e encontrava-se tão além das minhas posses que nunca sequer
tinha pensado em lá ir.
Mas sentia-me lisonjeado e era demasiado novo para saber
dizer não a uma mulher. (Poucos homens, posso acrescentar, o aprendem até que
tenham maturidade suficiente para o fazer sem qualquer consequência disso
relativamente a uma mulher.) Tinha oitenta francos (francos de ouro) para o resto
do mês e um modesto almoço não deveria custar menos de quinze. Se cortasse no
café durante as próximas duas semana talvez conseguisse gerir o restante sem
problemas.
Respondi dizendo que encontraria a minha amiga - por
correspondência - no Foyot's, quinta-feira, às doze e trinta. Não era tão jovem
quanto eu imaginava, impondo-se mais pela aparência que pela atracção. Era,
efectivamente, uma mulher pelos quarenta anos (uma idade charmosa, mas não a
ponto de provocar uma súbita e devastadora paixão à primeira vista) e dava até
a impressão de ter mais dentes, brancos e largos, do que seriam necessários
para o que quer que fosse. Era faladora, mas, desde que se mostrou interessada
a falar sobre mim, preparei-me para ser um ouvinte atento.
Fiquei surpreso, quando trouxeram o menu, pelos preços serem
muito mais elevados do que tinha previsto. Contudo, ela assegurou-me.
- Não como quase nada ao almoço, disse.
- Oh, não diga isso!, respondi-lhe generosamente.
- Nunca como mais que uma só coisa. Creio que as pessoas
comem muito hoje em dia. Um pequeno peixe, talvez. Gostaria de saber se terão
salmão.
Bem, não estávamos na época do salmão e nem sequer constava
do menu, mas perguntei ao empregado de mesa se havia algum. Sim, um belíssimo
salmão acabou de chegar, era o primeiro que tinham recebido. Pedi para a minha
convidada. O empregado perguntou se ela desejava algo enquanto o prato era
cozinhado.
- Não, respondeu ela, nunca como mais que apenas um prato. A
não ser que tenham um pouco de caviar. Nunca digo não a caviar.
O meu coração apertou-se um pouco. Sabia que não podia pagar
caviar, mas não podia, de forma alguma, dizer-lho. Disse ao empregado, como
pude, para trazer o caviar. Para mim escolhi o prato mais em conta do menu,
costeleta de carneiro.
- Creio ser muito imprudente ao comer carne, disse ela. Não
sei como será capaz de trabalhar depois de comer algo tão pesado como
costeleta. Sou incapaz de encher demais o meu estômago.
Veio então a questão da bebida.
- Nunca bebo nada ao almoço, referiu.
- Eu também não, respondi-lhe prontamente.
- Excepto vinho branco, continuou como se eu nem tivesse
falado sequer.
- Estes vinhos brancos Franceses são tão leves. São
excelentes para a digestão.
- Que deseja, então?, Perguntei-lhe, hospitaleiro mas não
propriamente efusivo.
Lançou-me um sorriso brilhante e amigável com todos os seus
dentes.
- O meu médico não me aconselha a beber nada a não ser
champanhe.
Creio que cheguei a empalidecer. Pedi uma garrafa pequena.
Mencionei, por mero acaso, que o meu médico me proibira, terminantemente, de
beber champanhe.
- Que vai beber, então?
- Água.
Comeu o caviar e comeu o salmão. Falou alegremente de arte,
de literatura, de música. Eu só pensava quanto seria a conta. Quando a minha
costeleta chegou, dirigiu-se-me com a maior seriedade.
- Vejo que tem por hábito comer um almoço pesado. Estou
certa que isso é um erro. Porque não segue o meu exemplo e come apenas uma só
coisa? Tenho a certeza que se sentiria muito melhor assim.
- Eu vou comer apenas uma única coisa, retorqui enquanto o
empregado trazia, de novo, o menu.
Ela acenou-lhe negativamente com um gesto airoso.
- Não, não, nunca como nada ao almoço. Só um pouco. Não mais
que isso e, faço-o mais como desculpa para uma conversa que por outra coisa.
Não seria capaz de comer mais nada - a não ser que tivessem alguns daqueles
espargos gigantes. Lamentaria muito deixar Paris sem sequer os provar.
O meu coração apertou-se. Já os tinha visto nas lojas e
sabia que eram terrivelmente caros. Muitas vezes cresceu-me água na boca ao
deparar-me com eles.
- A Senhora deseja saber se têm alguns daqueles espargos
gigantes, perguntei ao empregado.
Tentei por todos os meios possíveis levá-lo a dizer que não.
Um sorriso de felicidade espalhou-se pelo seu rosto, como uma cara de padre, e
garantiu-me que tinham alguns, tão grandes, tão esplêndidos, tão tão tenros que
eram uma maravilha.
- Não tenho a mínima fome, referiu a minha convidada, mas se
insiste, não me importo de provar os espargos.
Pedi-os.
- Não vai comer nenhum?
- Não, nunca como espargos.
- Sei que há pessoas que não gostam. Mas, de facto, dá cabo
do seu paladar com toda a carne que come.
Esperámos que cozinhassem os espargos. Fui invadido pelo
pânico. Já não era uma questão de quanto dinheiro restaria até ao fim do mês
mas se teria o suficiente para a conta. Seria mortificante ter dez francos a
menos e ter de os pedir emprestados à minha convidada. Não podia permitir que
isso me acontecesse. Sabia exactamente quanto tinha e se a conta fosse superior
decidi que levaria a mão ao bolso e, com um grito dramático, desato a dizer que
tinha sido roubado. Claro que seria embaraçoso se ela também não tivesse
dinheiro para pagar a conta. Aí, a única coisa a fazer seria deixar o meu
relógio e dizer que voltaria para pagar mais tarde.
Os espargos chegaram. Eram enormes, suculentos e
apetecíveis. O odor da manteiga derretida tocou a minhas narinas como as
narinas de Jeová são tocadas pelas ofertas que os virtuosos Semitas queimam.
Dei conta de uma mulher deleitada a engoli-los em voluptuosas garfadas e, no
meu jeito mais cordial, discursei sobre as condições do drama nos Balcãs. Por
fim, terminou.
- Café?, perguntei.
- Sim, apenas um gelado e café, respondeu ela.
Já estava por tudo e pedi café para mim e gelado e café para
ela.
- Sabe, há uma coisa em que creio convictamente, acrescentou
enquanto comia o gelado. Qualquer pessoa devia levantar-se da mesa com a
sensação de poder ainda comer qualquer coisa mais.
- Ainda tem fome?, perguntei quase desfalecendo.
- Oh, não, não tenho fome, está a ver, eu não almoço. Tomo uma chávena de café
pela manhã e, depois, janto, mas nunca como mais que uma simples coisa ao almoço.
Estava a falar consigo.
- Oh, estou a ver!
Então, algo de terrível aconteceu. Enquanto esperávamos pelo
café o chefe de sala, com um sorriso insinuante num rosto falso, aproximou-se
de nós com um grande cesto cheio de uns pêssegos enormes. Tinham a cor rosada
de uma rapariga inocente; o rico tom da paisagem italiana. Com toda a certeza,
não estávamos na época dos pêssegos? Deus sabia o quanto custavam. Eu soube
também - um pouco mais tarde já que a minha convidada, enquanto continuava a
sua conversa, distraidamente, pegou num deles.
- Está a ver, encheu o seu estômago com imensa carne - a
minha miserável pequena costeleta - e
não consegue comer mais. Eu que apenas comi uma ligeira refeição, posso
apreciar um pêssego.
Veio a conta e, quando a paguei, vi que tinha apenas o
suficiente para deixar uma insignificante gorjeta. Os seus olhos fixaram-se por
um instante nos três francos que deixei para o empregado e sabia claramente o
que ela estaria a pensar. Enquanto caminhava para a saída do restaurante tinha
todo o mês pela frente e nem sequer um cêntimo no bolso.
- Siga o meu exemplo, disse enquanto nos despedíamos com um
aperto de mão, e nunca coma mais que uma só coisa ao almoço.
- Farei melhor que isso, retorqui. Nem sequer jantar esta
noite.
- Brincalhão!, Gritou alegremente enquanto entrava para um
táxi. Você é um brincalhão!
Tive, por fim a minha vingança. Não acredito ser um homem
vingativo, mas quando os deuses imortais tomam o assunto em suas mãos é
perdoável observar os resultados com complacência.
Hoje, ela pesa uma tonelada.
Somerset Maugham