«Viagem de Bonde»
O Bonde
1187- «VIAGEM DE BONDE»
Era o bonde Engenho de Dentro, ali na Praça Quinze. Vinha
cheio, mas como diz, empurrando sempre encaixa. O que provou ser optimismo,
porque talvez encaixasse metade ou um quarto de pessoa magra, e a alentada
senhora que se guindou ao alto estribo e enfrentou a plataforma traseira junto
com um bombeiro e outros amáveis soldados, dela talvez coubesse um oitavo.
Assim mesmo, e isso prova bem a favor da elasticidade dos corpos gordos, ela
conseguiu se insinuar, ou antes, encaixar. E tratava de acomodar-se gingando os
ombros e os quadris à direita e à esquerda, quando o bonde parou em outro
poste, o soldado repetiu o tal slogan do encaixe, e foi subindo – logo quem! –
uma baiana dos seus noventa quilos, e mais uma bolsa que continha o fogareiro,
a lata dos doces, o banquinho e o tabuleiro. E aquela baiana pesava os seus
noventa quilos mas era nua, com licença da palavra, pois com tanta saia
engomada e mais os balangandãs, chegava mesmo era aos cem. E esqueci de dizer
que junto com ela ainda vinha uma cunhãzinha esperta que era um saci, que se
insinuou pelas pernas do pessoal e acabou cavando um lugarzinho sentada, na
beirinha do banco, ao lado de uma moça carregada de embrulhos e que assim mesmo
teve o coração de arrumar a garota. Também o diabo da pequena conquistava
qualquer um, com aquele olho preto enviesado, o riso largo de dente na muda.
Esqueci de falar que tudo isso se passava no carro-motor. No
reboque, atrás, a confusão parecia maior. Muita gente pendurada entre um carro
e outro, e havia um crioulo de bigode à Stalin, muito distinto, tinha cara de
dirigente no Ministério do Trabalho, que muito sub-repticiamente viajava sobre
o pino de ligação entre os dois carros ou, para dizer melhor, com um pé na
sapata do carro-motor e o outro na sapata do reboque. E quando o condutor
aparecia para cobrar a passagem, se era o condutor da frente ele punha os dois
pés no reboque, e se era o condutor do reboque que vinha com o “faz favor” ele
então executava o vice-versa. Sei que não pagou passagem a nenhum dos dois e
devia fazer aquilo por esporte; não tinha cara de quem precisa se sujar por
cinquenta centavos; esporte, aliás, que todo o mundo aprova e aprecia, pois
quem é que não gosta de ver se tirar um pouco de sangue à Light? E aí o bonde
andou um bom pedaço sem que ninguém mais atacasse a plataforma. A turma que
chegava, ocupava-se agora em guarnecer os balaústres, formando com os pingentes
uma superestrutura decorativa. Mas, alcançando-se o abrigo defronte à Central,
quase chegou a haver pânico. Porque no momento em que a multidão da calçada
assaltava o veículo, a baiana quis descer, e não era façanha somenos desalojar
aquela massa da pressão onde se encastoara, sem falar na pressão de baixo para
cima feita pelos que tentavam subir, contra quem pretendia descer. Mas afinal
já a baiana aterrissara na calçada e o vácuo por ela deixado era
instantaneamente ocupado com uma violência de sorvedouro, o condutor tocara o
seu tintim de partida, quando ressoaram uns gritos agudos cortando o ar
abafado. Era o pequeno saci de olhos pretos a clamar que o povo subindo não a
deixara descer. E a tensão geral explodiu em cólera e ternura, e todo o mundo
tocava a campainha, alguns confundiam, puxavam a corda do marcador de
passagens, o condutor vendo isso pôs-se a imprecar em puro linguajar da
Mouraria, uma voz berrava: – já se viu que brutalidade, impedir a criança de
descer; a baiana, em terra, chamava a filha com voz macia, o motorneiro, para
ajudar e mostrar que não tinha nada com aquilo, desandou a tocar aquela espécie
de sino que fica embaixo do pé dele. E enquanto os passageiros compassivos
desembarcavam a garota, um senhor, que vinha em pé no meio dos bancos, pôs-se a
declamar que era assim mesmo, que motorneiro, condutor e fiscal, em vez de se
aliarem com o povo, não passavam de uns lacaios da Light, mas quando chegasse
na hora de pedir aumento de ordenado haviam de querer que a população ajudasse
com aumento nas passagens. O povo é que é sempre o sacrificado. E o condutor aí
se enraiveceu também, e começou a convidar o homem para a beira da calçada, e o
senhor disse que não ia porque não se metia com estrangeiros, e um engraçadinho
deu sinal de partida e o motorneiro (que já estava por demais chateado) partiu
mesmo, deixando o condutor em terra, vociferando; só foi dar pela falta quando
chegou com o carro bem defronte do sinal; parou então, e enquanto o condutor
corria o guarda começou a apitar, que o bonde tinha parado no meio da luz verde
aberta para os carros em direção contrária; parecia o dia de juízo, o bonde
parado, os automóveis buzinando, o guarda apitando e sacudindo os braços, o
pessoal do bonde rindo que era ver uns demónios. Afinal o bonde partiu, tudo
pareceu acalmar um pouco, mas aquele senhor em pé que xingara os pobres
empregados da Light de lacaios do polvo canadense mostrou que era homem afeito
a comícios, não se dava de uma interrupção tumultuosa. Estava acostumado a
falar até em meio da fuzilaria, assim que ele disse. E que isso tudo acontecia
porque o Governo promete mas não cumpre o dispositivo constitucional – sim,
meus senhores, constitucional! – da mudança da capital da República. Imagine
que delícia o Rio ficar livre de toda a laia dos burocratas, dos automóveis dos
políticos e dos políticos propriamente ditos. Imagine, o Getúlio em Goiás e com
ele a alcateia dos lobos, os cardumes de tubarões, os rebanhos de carneiros!
Isso aqui ficava mesmo um céu aberto. Pelo menos um milhão de pessoas iria
embora, e que maravilha o Rio com um milhão de vagas nos transportes, um milhão
de vagas nas residências, um milhão de bocas a menos, para comer o nosso mísero
abastecimento! As favelas se acabam automaticamente, o arroz baixa a quatro
cruzeiros! Saem a Câmara e o Senado, e os Ministérios com todas as suas marias
candelárias. Pensando nos ministérios – será apenas um milhão de gente que nos
deixa? Calculando por baixo, talvez saia mais de um milhão! O que virá em muito
boa hora, pois no Rio sobram uns dois milhões!
E aí o bonde inteiro aplaudiu, cada qual só pensava na vaga
a seu lado. E, se aquele bonde fosse maior, talvez nesse dia, no Rio de
Janeiro, houvesse uma revolução. Talvez o povo do Rio de Janeiro desse ordem de
despejo para o seu Governo, lhe apanhasse os trastes, lhe apontasse a estrada,
que é larga e vai longe. Mas, feliz ou infelizmente, o bonde era pequeno e, apesar
de conter tanta gente, não dava nem para um bochincho. E o Governo, pensando
bem, também é de carne como nós – e só um coração de ferro tem coragem de
deixar este Rio, assim mesmo apertado, superlotado, sem comida, sem transporte,
sem luz e sem água. Como disse um paraíba que vinha junto com o soldado:
– Qual, se no céu faltasse água ou luz, por isso os anjos
haveriam de se largar de lá? Céu é céu, de qualquer jeito…
Rachel de Queiroz
Bonito conto.
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