«O Chefe do Povo»
Manhã Quente no Rancho/ Frederic Remington
1242- «O CHEFE DO POVO»
No sábado de tarde, Billy Buck, o vaqueiro, ajuntou com o
ancinho os restos de feno do celeiro e jogou-os do outro lado da cerca para
algumas vacas desinteressadas. Alto, lá no ar, bolas de nuvens corriam sopradas
pelo vento de março. Podiam ouvi-lo assobiando na barragem, mas no vale da
fazenda não ventava.
O garoto, Jody, saiu de casa comendo um enorme pedaço de pão
com manteiga. Viu Billy acabando de juntar o resto do feno. Dirigiu-se para
ele, arrastando na poeira os sapatos, de uma maneira que sabia que escangalhava
qualquer sola. Uma revoada de pombos levantou-se do cipreste, ao passar Jody;
descreveu um círculo no ar e voltou para a árvore outra vez. Um gato tigrado
ainda pequeno, saltou do tecto do alojamento, disparou para a estrada, rodopiou
e voltou de novo correndo. Jody apanhou uma pedra para ajudá-lo na brincadeira
mas chegou tarde; antes que pudesse atirá-la já o gato entrara para baixo do
alpendre. Jogou a pedra no cipreste, causando nova revoada dos pombos brancos.
Chegando onde estava Billy, encostou-se na cerca, “Você acha
que já esta acabando?” perguntou.
O homem largou o trabalho, espetou o ancinho no chão e
tirando o chapéu, alisou os cabelos com a mão. “O resto esta encharcado da humidade
do chão,” disse. Pôs de novo o chapéu e esfregou as mãos ásperas.
– Deve ter muito camundongo — sugeriu Jody.
– Esta cheio deles, — disse-lhe Billy. Tem camundongo
demais, até.
– Então, quando você acabar eu podia chamar os cachorros e
fazer uma caçada.
– Boa ideia — disse-lhe Billy Buck. Levantou uma porção de
feno e jogou-o para o ar.
Apareceram logo três camundongos; deram um pinote e
esconderam-se no resto do feno.
Jody suspirou satisfeito. Os camundongos, gordos e
arrogantes estavam condenados. Durante oito meses tinham vivido contentes,
protegidos contra gatos, cachorros e contra Jody, pela barreira do monte de
feno. Tornavam-se convencidos desta segurança, e engordavam e procriavam. Agora
chegara o dia do desastre; não sobreviveriam nem mais um dia.
Billy olhou para o topo das colinas que cercavam a fazenda.
“E melhor você pedir permissão a seu pai, antes de começar.”
– Onde é que ele está?
– Ele foi até a fazenda da barreira, mas já deve estar de
volta.
Jody encostou-se na cerca. “Acho que ele não se importaria.”
Billy voltou ao seu trabalho depois de admoestar Jody, “De
qualquer modo, é melhor pedir-lhe. Sabe como ele é.”
Jody bem sabia. Seu pai, Carl Tiflin, fazia questão de que
lhe pedissem licença para tudo o que se fazia na fazenda, fosse importante ou
não. Jody deixou-se cair até ficar sentado no chão. Olhou para as bolas de
nuvem sopradas pelo vento. “Será que vai chover, Billy?
– Pode ser. O vento está na direcção, mas está com pouca
força.
– Tomara que só chova depois que eu matar essas
porcarias desses ratos. Olhou por cima dos ombros para ver se Billy reparara no
palavreado de homem. Billy continuou a trabalhar sem comentários.
Jody virou-se para olhar o caminho, do lado do morro, que
levava ao resto do mundo. A colina estava coberta de capim cheiroso e flores
silvestres apareciam daqui e dali. No meio do morro o Grandalhão cavava um
buraco de esquilo. Cavava a terra jogando poeira para todos os lados. Sua
seriedade era tamanha que na certa não sabia que cachorro algum jamais caçara
esquilos, cavoucando no chão.
Enquanto Jody o espiava, o cachorro empinou as orelhas
deixando o buraco em paz, retesou-se, olhando para o lugar onde saía a estrada.
Jody olhou para lá também. Por um instante Carl Tiflin montado a cavalo parou
no alto do morro. Depois começou a descer em direcção da casa. Trazia na mão
uma coisa branca.
O garoto levantou-se. “Ele trás uma carta,” gritou. Correu
para casa pois com certeza a carta seria lida em voz alta e ele queria estar
presente. Chegou na frente de seu pai e entrou. Ouviu o ranger da sela quando
Carl desmontou e ouviu-o chicotear o cavalo em direcção do estábulo, onde Billy
o desarrearia e soltaria no pasto.
Jody correu para a cozinha. “Chegou uma carta!” gritou.
Sua mãe levantou a cabeça da cuia de ervilhas. “Quem
recebeu?”
– Papai. Eu a vi em sua mão.
Carl entrou na cozinha e a mãe de Jody perguntou-lhe, “De
quem era a carta, Carl?”
Ele amarrou a cara. “Como é que você sabe que há uma carta?”
Ela indicou Jody com a cabeça. “Jody me disse.”
Jody ficou encabulado.
Seu pai olhou-o com má vontade. “Ele está ficando muito
saliente. Sempre a se meter no que não lhe diz respeito.”
A Sra. Tiflin defendeu-o. “É porque ele não tem nada para
fazer. Mas o que diz a carta?”
Carl ainda estava aborrecido com Jody. “Eu lhe arranjarei
trabalho, se o caso é esse.”
Estendeu um envelope fechado. “Deve ser de seu pai.”
A Sra. Tiflin tirou um grampo da cabeça e abriu a carta.
Apertou os lábios com concentração. Jody via seus olhos correrem acompanhando
as palavras. “Ele diz — explicou — que vem passar uns dias aqui. Vai chegar no
sábado. Mas hoje é sábado! A carta chegou atrasada.” Olhou o carimbo. “Foi
posta no correio anteontem. Deveria ter chegado ontem.” Olhou
interrogativamente para o marido, e seu rosto tomou um ar zangado. “Por que é
que você esta me olhando assim? Afinal não é sempre que ele vem cá.”
Carl desviou o olhar. Ele era quase sempre severo com ela,
mas nas raras ocasiões em que ela se zangava, não sabia contê-la.
“Que é que você tem?” perguntou-lhe ela, de novo.
Respondeu querendo desculpar-se, num tom que o próprio Jody
teria empregado. “É que ele fala e fala,” explicou sem jeito.
– E daí? Você também não fala?
– Claro que sim. Mas é que ele só fala de uma coisa.
– Índios! — gritou Jody alvoroçado. Índios e travessias nas
Planícies! Carl virou-se furioso para ele. “Dê o fora, seu metido! Vamos,
fora!”
Jody saiu tristemente pelos fundos, fechando com cuidado a
porta. De baixo da janela da cozinha, seus olhos envergonhados, deram com uma
pedra branca, e de um formato tão curioso, que ele abaixou-se para estudá-la.
As vozes, da cozinha, chegavam-lhe claramente aos ouvidos.
“Jody disse certo,” ouviu seu pai falar. “Só índios e a travessia da planície.
Quantas e quantas vezes já ouvi aquela história de como os cavalos fugiram. Ele
conta sempre as mesmas coisas com as mesmas palavras exactamente.”
Quando a Sra. Tiflin respondeu sua voz estava inteiramente
diferente, quase doce. E Jody imaginava-lhe o rosto mudando também para
acompanhar a voz. Ela explicou mansamente: “Olhe, Carl, você devia pensar nisto
de outro modo. Aquilo foi a coisa maior na vida de papai. Ele teve um carro e
atravessou com ele o continente. Quando acabou, ele ficou sem nada. Foi uma
coisa importante que ele fez, mas não durou quase nada!” E ela continuou: “É
como se ele tivesse nascido para fazer aquilo e depois de o ter feito só lhe
resta lembrar e falar sempre sobre seu feito. Se houvesse mais terras no oeste
para ele continuar a andar, ele não teria parado. Mas havia o mar. Ele vive bem
lá perto do mar, onde teve que parar.”
Ela absorvera Carl com sua conversa suave.
— Eu já o vi — concedeu-lhe Carl. Ele fica horas olhando
para o mar. — Sua voz endureceu-se um pouco. — E depois vai para o clube e
conta como os índios fugiram com os cavalos.
Ela tentou recapturá-lo. “Bem, mas se essa era a vida para
ele. Você bem poderia ter um pouco mais de paciência com ele.”
Carl voltou-se impaciente. “Se a coisa se tornar
insuportável eu vou para o alojamento e fico lá com o Billy,’” disse irritado.
Saiu de casa e bateu com força a porta do alpendre.
Jody correu a fazer suas obrigações. Jogou a ração para as
galinhas sem correr atrás de nenhuma delas. Procurou ovos nos ninhos. Arrumou a
lenha na cozinha de tal jeito que as duas braçadas que levou, encheram totalmente
a caixa.
Sua mãe acabara de catar as ervilhas. Acendera o fogo e
agora limpava a tampa do forno com uma pena de peru. Jody olhou-a de lado,
vendo se lhe guardava algum rancor.
– Ele vem mesmo hoje? — perguntou-lhe.
– É o que diz na carta.
– Então vou caminhar ao encontro dele, na estrada.
– Seria uma boa coisa, — disse-lhe a Sra. Tiflin batendo com
a tampa do forno. Ele gostara de que alguém o espere.
– Então é o que vou fazer.
No quintal, Jody assobiou pelos cachorros. “Vamos subir o
morro,” ordenou-lhes. Os dois cachorros dispararam na frente, abanando a
cauda. Dos lados do caminho a selva crescia, cheia de brotos tenros. Jody
cortou uns ramos e esfregou-os nas mãos até o ar ficar saturado do perfume
agreste. Os cães deram um pinote e saíram correndo pelo mato a dentro atrás de
um coelho. Jody não os viu mais, pois não tendo conseguido pegar o coelho,
voltaram para casa.
Jody continuou subindo até chegar a barragem. O vento
soprou-lhe com força os cabelos e inchou-lhe a camisa. Olhou para baixo, os
vales e colinas e mais ao longe o Vale de Salinas. Podia ver as casas brancas
de Salinas, e o sol brilhando ao bater nas vidraças. Bem abaixo dele, numa
árvore, havia uma congregação de corvos. Falavam todos ao mesmo tempo, num
barulho infernal.
Jody seguiu então com os olhos o caminho, perdeu-o atrás de
uma colina, e achou-o de novo mais adiante. Vinha vindo lá bem longe, uma
charrete puxada por um cavalo baio. Desapareceu por trás do morro. Jody
sentou-se no chão e ficou olhando o lugar por onde a charrete reapareceria. O
vento cantava nos cumes dos morros e as bolas de nuvens corriam para leste.
A charrete apareceu de novo e parou. Um homem vestido de
preto, desceu do assento e foi até a cabeça do cavalo. Apesar de estar de tão
longe, Jody soube que ele desamarrara as rédeas, porque o cavalo deixou cair a
cabeça. Continuaram a andar, lentamente, o homem ao lado do cavalo. Jody deu um
grito de alegria e desceu correndo ao encontro deles. Os esquilos fugiram
espavoridos e desapareceram no mato.
Jody procurava a cada passo pular em cima de sua sombra.
Tropeçou numa pedra e caiu. Fez correndo uma curva e deu de frente com o avô e
a charrete. O menino parou de correr e aproximou-se lentamente.
O cavalo subia o morro aos tropeções, e o velho ia andando
ao lado dele. O sol, por trás deles, fazia-lhes as sombras agigantarem-se. O
avô usava um terno preto, polainas de couro e gravata preta num colarinho duro.
Carregava na mão o chapéu preto, desabado. A barba estava cortada muito curta e
as sobrancelhas cerradas caiam-lhe por sobre os olhos como bigodes. Os olhos
eram azuis e alegres. Seu rosto e seu corpo possuíam uma dignidade de granito e
parecia impossível que pudesse mover-se.
Seus passos eram lentos e determinados. Depois de feito,
passo algum poderia ser refeito; depois de começado um caminho, não haveria
voltas possíveis, nem aumento ou diminuição de velocidade.
Quando Jody apareceu na virada do caminho, o avô acenou-lhe
vagarosamente com o chapéu, e chamou: — “Jody! Veio encontrar-se comigo, não
veio?”
Jody acertou o passo com o do avô, entesou o corpo e
arrastou um pouco com os calcanhares. “Sim, senhor. Nós só recebemos sua carta
hoje.
– Deveria certamente ter chegado ontem. Como estão todos?
– Estão todos bem. — Hesitou com timidez. — O senhor gostaria
de caçar ratos comigo, amanhã?
– Caçar ratos, Jody? — Ele riu-se. — Será que o pessoal
desta nova geração deu para isso agora? Eles não são muito fortes, este pessoal
de agora, mas mesmo assim não os imaginava a caçar ratos.
– Não senhor. É só por brincadeira. O feno acabou. Eu vou
botar os cachorros para pegar os ratos. O senhor pode espiar e se quiser bater
no feno para assustá-los.
Os olhos alegres voltaram-se para ele. “Isto sim. Vocês não
o comem, então. Ainda não chegaram a tanto.”
Jody explicou-lhe: “São os cachorros que os comem. Não é
nada como matar índios, eu imagino.”
– Não, não é. Mas também depois, quando os soldados
começaram a caçar os índios, queimando- lhes as tendas e matando as crianças,
não foi muito diferente de sua caçada aos camundongos.
Chegaram ao alto da barragem e começaram a descer para o
vale da fazenda. O sol deixou de lhes queimar as costas. “Você cresceu, — disse
o avô. — Quase um palmo, eu calculo.”
– Mais, — orgulhou-se Jody. — O senhor vai ver pelas marcas
na porta.
Jody continuou em silêncio por um certo tempo. “Nós somos
capazes de matar um porco,” sugeriu por fim.
– Oh, não! Eu não os deixaria fazer isto. Ainda não está na
época. Você está é querendo me agradar.
– O senhor conheceu Riley, o barão?
– Sim. Lembro-me bem do Riley.
– Pois é, ele roeu um buraco no monte de feno e desabou tudo
por cima dele e ele ficou esmigalhado.
– Os porcos fazem disto, quando podem, — disse-lhe o avô.
– Mas Riley era muito manso. Ele até deixava que eu o
montasse.
Ouviram o bater de uma porta, bem abaixo deles, e viram a
mãe de Jody acenando-lhes com o avental. E viram Carl Tiflin saindo do estábulo
e encaminhando-se para casa a fim de recebê-los.
O sol desaparecera dos morros. A fumaça azulada saindo da
chaminé da casa, pairava no ar em camadas lisas. As bolas de nuvens, largadas
pelo vento, penduravam-se no céu.
Billy Buck saiu do alojamento e derramou no terreiro uma
bacia de água de sabão. Ele se barbeara no meio da semana para esperar o avô.
Billy reverenciava o velho e este dizia que Billy era um dos poucos homens da
nova geração que não se tinha tornado maricas. Apesar de Billy ser de meia-
idade, o avô o considerava um menino. Billy dirigia-se também para a casa.
Quando Jody chegou com o avô, os três os esperavam em frente
ao alpendre.
Carl disse: “Como vai o senhor. Estávamos a esperá-lo.”
A Sra. Tiflin beijou-o no lado da barba, e ele bateu-lhe no
ombro. Billy apertou-lhe a mão, sorrindo por baixo do bigode. “Eu tomo conta de
seu cavalo,” disse-lhe.
Saiu, puxando a charrete.
O avô olhou-o afastar-se e disse, como já o dissera uma
centena de vezes antes:
– É um bom rapaz. Eu conheci seu pai, o velho “Rabo-de-mula”
Buck. Não sei porque o chamavam de Rabo-de-mula, só por ele ser tropeiro.
A Sra. Tiflin voltou-se dirigindo-se para a casa. “Quanto
tempo vai se demorar? O senhor não disse na carta.”
– Bem, eu não sei. Talvez umas duas semanas.
Em pouco tempo estavam todos sentados em torno da mesa de
oleado branco, jantando. O lampião com reflector de estanho fora pendurado no
tecto. As mariposas batiam no lado de fora das vidraças.
O avô cortou o bife em pedaços pequenos e mastigou-os
vagarosamente. “Estava com fome,” disse. “A viagem abriu-me o apetite. É como
quando pioneirávamos. Todos ficávamos tão famintos que mal podíamos esperar que
a carne cozinhasse. Poderia comer quilos e mais quilos de carne de búfalo,
então.”
– É de viajar. Meu pai era tropeiro do governo. Eu o ajudava
quando era menino. Nós dois sozinhos poderíamos comer um veado inteiro. — Disse
Billy.
– Eu conheci seu pai, Billy — disse o avô — Um bravo homem.
Tinha o apelido de “Rabo-de-mula.” Não sei por que, só por ele ser tropeiro.
– Era por isso, — disse-lhe Billy. — Por ele ser tropeiro.
O avô descansou o garfo e a faca e olhou em volta de si.
“Lembro-me de uma vez que a carne acabou. Sua voz tomou um tom recitativo. “Não
havia nem búfalos, nem antílopes, nem mesmo coelhos. O chefe tinha que estar
sempre vigilante. Eu era o chefe e me mantinha atento. Sabem porquê? Pois
quando o pessoal ficava faminto, queria logo abater os bois de carro. Podem
acreditar numa coisa dessas? Ouvi contar de gente que comeu toda a junta de
bois. Começavam pelos do meio e chegavam a comer os próprios bois da guia. O
chefe da turma tinha que controlá-los para não fazerem assim.”
Uma enorme mariposa conseguira entrar na sala e rodopiava em
volta da lâmpada de querosene. Billy levantou-se tentando prendê-la nas mãos.
Carl atingiu-a e amassou-a com uma só pancada. Foi até a janela e jogou-a fora.
– Como eu ia dizendo, — recomeçou a dizer o avô, mas Carl o
interrompeu. — É melhor o senhor se servir de carne. Nós já estamos prontos
para a sobremesa.
Jody viu os olhos de sua mãe lampejarem de raiva. O avô
pegou a faca e o garfo.
– De facto eu estou com um bocado de fome, — disse. Depois
então eu acabo de contar.
Depois que o jantar terminou e que a família se reuniu em
torno da lareira, Jody esperou pela história do avô. Viu-o inclinar a cabeça;
os olhos perderam a expressão severa e tornaram-se sonhadores; os dedos
compridos e magros enlaçaram os joelhos. “Não lembro,” começou ele “se alguma
vez Ilhes contei como os índios roubaram trinta e cinco dos nossos cavalos.”
– Creio que já nos contou isto, — interrompeu-o Carl. — Não
foi pouco antes de entrarem no território dos Tahoes?
O avô olhou para o genro. “É isto mesmo. Então eu já lhes
contei esta história.”
– Muitas e muitas vezes, — continuou Carl com crueldade. Mas
sentindo sobre si o olhar zangado da mulher, emendou-se. — Claro que
gostaríamos de ouvi-la de novo.
O avô voltou-se para o fogo. Seus dedos cruzavam-se e
descruzavam-se. Jody compreendia como ele devia sentir-se, vazio e só. Ele
próprio não havia sido chamado de saliente, nesta mesma manhã? Jody cheio de
heroísmo resolveu intervir, mesmo que o chamassem de saliente outra vez.
“Conte-nos sobre os índios,” pediu baixo.
Os olhos do avô tornaram-se severos. “Os meninos estão
sempre dispostos a ouvir histórias de Índios. Foi um trabalho para homens, mas
só os meninos é que querem ouvir sobre ele. Bem, deixe-me lembrar. Eu já lhes
contei porque que eu queria que em todos os carros se levasse uma grande chapa
de ferro?”
Ninguém respondeu. Jody então disse-lhe: “Não, senhor.”
– Bem, quando os índios atacavam, nós semestre púnhamos os
carros em círculo e atirávamos por entre as rodas. Eu imaginei então as chapas
de ferro com os orifícios para os canos das espingardas, de modo que os homens
que atiravam ficassem protegidos.
Mas como ninguém fizera ainda assim e como ficasse muito
caro, o pessoal se recusou a levar as chapas de ferro. Como se arrependeram
mais tarde!
Jody olhou para a mãe e viu por sua expressão que ela não
estava ouvindo. Carl mexia num calo do dedão e Billy Buck acompanhava a subida
de uma aranha na parede.
O voz do avô adquirira novamente o tom narrativo. Jody sabia com
antecedência as palavras que ele empregaria. A história continuou lenta, depois
tomou violência para o ataque, adquiriu tristeza para contar dos feridos e dos
enterros nas grandes planícies. Jody não despregava os olhos do avô Os severos
olhos azuis estavam vagos, e ele não parecia estar muito interessado no que
contava.
Depois que a história terminou, fez-se uma ligeira pausa. Billy
Buck levantou-se, suspendeu as calças e disse: “Creio que vou me deitar.”
Virou-se então para o avô.
– Tenho lá no alojamento um velho soquete de pólvora que
gostaria de mostrar-lhe. O avô meneou a cabeça. “Você já me mostrou. Faz-me
lembrar de um que eu tinha quando comandei o grupo.” Billy esperou atentamente
até que ele acabasse a pequena história, e depois despediu-se, “Boa-noite,” e
saiu para o quintal.
Carl Tiflin procurou então mudar de assunto. “Como está o
terreno até Monterrey? Ouvi dizer que está tudo seco.”
– Esta seco. — disse o avô. — Não há nem um pingo d’água na
Laguna Seca. Mas mesmo assim ainda está longe de ser como em 87. O país todo
virou poeira, e em 61 eu acho que até os cachorros-do-mato morreram de fome.
Este ano choveu pouco, mas choveu.
– É, mas cedo demais. Bem que poderia chover um pouco agora.
— Só então reparou em Jody, melhor que você vá dormir.
Jody levantou-se obediente. “O senhor deixa que eu cace os
camundongos do celeiro?”
Camundongos? Claro! Pode matá-los todos.”
Jody trocou um olhar de cumplicidade com o avó. “Vou
matá-los todos amanhã,” prometeu.
Deitado em sua cama Jody ficou pensando naquele mundo que se
acabara para sempre.
Mundo de índios e búfalos ferozes. Desejou ter podido viver
naquele tempo heroico, mas ele sabia não ter fibra de herói. Ninguém agora,
salvo talvez Billy Buck, tinha fibra para fazer daquelas coisas que o avô
contava. Uma raça de gigantes vivera então, homens destemidos, homens de uma
resistência desconhecida hoje. Jody pensou nas planícies brancas e nos carros
percorrendo-as como centopeias. E o avô montado num enorme cavalo branco dando
ordens àquela gente. Os grandes fantasmas percorreram-lhe o cérebro e
sumiram-se.
Voltou, por um instante, à fazenda. Ouviu um dos cachorros
coçando as pulgas e batendo com o cotovelo no chão a cada movimento. O vento
soprou de novo e o cipreste gemeu, Jody adormeceu.
Levantou-se meia hora antes do triângulo soar. Sua mãe
estava na cozinha acendendo o fogão. “Você acordou cedo hoje,” disse-lhe.
“Aonde é que vai?”
– Lá fora apanhar um bom cacete. Vamos matar os camundongos.
– Vamos? Quem mais vai?
– Ora, eu e vovô.
– Ah, então você arranjou companhia, não é? Assim se houver
pito, fica dividido.
– Eu volto já, — disse-lhe Jody. — Quero só arranjar um bom
cacete, antes do café.
Fechou a porta de tela atrás de si e saiu para a manhã
fresca e azul. Os passarinhos faziam algazarra na madrugada e os gatos da casa
desciam dos morros como largas cobras. Tinham ido caçar esquilos no escuro, e
apesar de empanzinados, sentaram-se na porta da cozinha miando por leite. O
Grandalhão e o Destruidor, cheiravam o chão nas beiras do mato com toda a
concentração, mas quando Jody assobiou, abanaram logo os rabos e levantaram as
cabeças. Atiraram-se para ele, abrindo os beiços num sorriso. Jody afagou-lhes
as cabeças, e dirigiu-se para o monte de madeira. Escolheu uma ponta de um cabo
de vassoura e um pedaço quadrado de pau. Tirou do bolso um cordão de sapato e
amarrou-os um no outro, sem apertar, para fazer um relho. Rodou no ar a arma
para experimentá-la, enquanto os cachorros se encolhiam desconfiados, ganindo
apreensivos.
Jody pôs-se a andar em direcção do velho celeiro, passando
por frente da casa, para dar uma olhadela no local da futura carnificina, mas
Billy o chamou da porta da cozinha onde se sentara. “É melhor você esperar
aqui, já está quase na hora do café.”
Jody desistiu da caminhada e dirigiu-se para a casa.
Descansou o relho na soleira da porta. “Isto é para espantar os ratos. Aposto
como eles estão gordíssimos,” disse ele. “Aposto como eles nem imaginam o que
os espera.”
– Não, nem você tão pouco, — comentou Billy filosoficamente.
— nem eu, nem ninguém.
Jody ficou varado por este pensamento. Sabia ser verdadeiro.
Sua imaginação começou a trabalhar. Mas sua mãe tocou o triângulo, e todos os
pensamentos se dissiparam.
O avô não estava na mesa quando eles se sentaram. Billy
perguntou, “Ele está bem? Será que ficou doente?”
Ele leva muito tempo para se arrumar, — disse a Sra. Tiflin.
— Penteia a barba, escova os sapatos e a roupa.
Carl salpicou açúcar no mingau. “Um homem que guiou carroças
pelas planícies tem de ter muito cuidado com sua aparência.”
A Sra. Tiflin voltou-se para ele. “Por favor, Carl! Não
recomece!” Havia mais ameaça do que um pedido em seu tom de voz. E a ameaça
irritou a Carl.
– Pois é isso mesmo. Quantas vezes será que terei que ouvir
aquela história das chapas de ferro e dos trinta e cinco cavalos roubados? Esse
tempo já passou. Será que ele não pode esquecê-lo?” Enraiveceu-se ao falar e
sua voz aumentou de volume.
– Por que tem de contar essas historias sempre e sempre? Ele
atravessou as planícies. Muito bem! Agora acabou-se. Ninguém quer ouvir todo o
dia a mesma história.
A porta da cozinha fechou-se devagar. Os que estavam à mesa
imobilizaram-se. Carl deixou a colher na mesa e coçou o queixo.
Abriu-se outra vez a porta da cozinha e o avô apareceu.
Sorria sem vontade e seus olhos estavam apertados. “Bom dia,” disse, e
sentou-se olhando para o prato de mingau.
Carl não pode deixar que ficasse tudo assim.” O senhor... o
senhor ouviu o que eu disse?”
O avô inclinou a cabeça.
– Não sei o que me possuiu. O senhor não acredite em nada
daquilo. Eu estava apenas fazendo graça.
Jody olhou envergonhado para a mãe e viu que ela olhava
Carl, a respiração presa. Era uma coisa horrível o que ele estava fazendo. Ele
se acabava falando desta maneira. Para ele era uma coisa incrível ter que
desculpar-se, envergonhado era muito pior. O avô olhou-o de lado. “Estou
querendo me orientar,” disse com delicadeza. “Não estou me zangando. Não me
importo com o que você disse, mas pode ser que seja verdade, e aí sim, eu me
importaria.”
– Não era verdade. Eu não me sinto bem hoje. Sinto muito ter
dito aquilo.
– Não se desculpe, Carl. Um velho, às vezes, não vê as
coisas como elas são. Talvez que você tenha razão. A travessia já foi feita.
Devia mesmo ser esquecida.
Carl levantou-se da mesa. “Já comi bastante. Vou trabalhar.
Pode demorar-se à vontade, Billy!” Saiu depressa da sala. Billy engoliu o resto
da comida e seguiu-o. Mas Jody não se desgrudou de sua cadeira.
– O senhor não vai mais contar historias? — perguntou.
– Claro que as contarei, mas só quando tiver certeza de que
as pessoas querem ouvi-las.
– Eu gosto de ouvi-las.
– É lógico que você goste, mas você é ainda um garoto. Foi
um trabalho para homens, mas só os meninos querem ouvir sobre ele.
Jody levantou-se. “Vou esperar lá fora pelo senhor. Arranjei
um bom cacete para os camundongos.”
Esperou na porteira até o velho aparecer no alpendre. “Vamos
caçar os camundongos agora!” gritou-lhe Jody.
– Acho que vou sentar-me um pouco ao sol, Jody. Vá você
matar os camundongos.
– O senhor querendo, pode usar o meu cacete.
– Não, vou ficar sentado aqui, um pouco.
Jody virou-se desconsolado e foi andando para o celeiro.
Tentou entusiasmar-se pensando nos gordos camundongos. Bateu no chão com o
relho. Os cachorros chamavam-no latindo e correndo, mas ele não sentia vontade
de acompanhá-los. Podia ver, lá no alpendre, o avô, parecendo pequeno, magro e
triste.
Jody desistiu da caçada, e foi sentar-se, nos degraus, aos
pés do velho.
– Já voltou? Matou os ratos?
– Não senhor. Mato-os outro dia.
As moscas esvoaçavam rente ao chão e as formigas corriam
pelos degraus. O perfume forte da selva descia dos morros. O sol esquentava a
madeira do alpendre.
Jody não percebeu quando o avô começou a falar. “Eu não
deveria ficar aqui, sentindo-me assim. “Examinou com atenção as mãos fortes.
“Sinto como se atravessar as planícies não tivesse valor algum.” Seus olhos
procuraram os morros e pararam num falcão, sentado imóvel num tronco morto. “Eu
conto historias de antigamente. Mas não é pela história. Eu só sei e o que
tenho vontade que as pessoas sintam ao ouvi-las.
Não eram os índios, nem a aventura, que era importante; não
era nem mesmo chegar ao fim da jornada. Era todo um povo, transformado num
enorme animal rastejante. E eu era o chefe. Era pioneirar e pioneirar. Cada
homem queria qualquer coisa para si, mas o enorme animal que eles todos
formavam, queria apenas pioneirar. Eu era o chefe, mas se eu não estivesse lá,
outro chefiaria. A coisa tinha que ter um cabeça.
Em baixo dos arbustos as sombras eram negras mesmo dia
claro. Quando por fim vimos as montanhas, todos gritaram ao mesmo tempo. Mas
não foi chegar aqui, o importante, é sim, o movimento pioneiro.
Nós carregamos a vida até aqui, e a depositamos, como fazem
as formigas com seus ovos. E eu fui o chefe. O pioneirismo foi grande como
Deus, e os passos lentos, foram se acumulando e acumulando, até que o
continente foi atravessado.
– Chegamos então ao mar e estava acabado. — Parou e esfregou
os olhos até que ficaram vermelhos. — Isto é o que eu deveria contar em vez de
histórias.
Quando Jody falou o avô estremeceu e abaixou os olhos para
ele. “Talvez que um dia eu possa chefiar o povo,” disse.
O velho sorriu. “Não há mais lugar para se ir. O mar é o
limite. Há uma porção de velhos lá nas beiras do mar, odiando-o porque
obrigou-os a parar."
– Posso continuar em barcos.
– Não há lugar para se ir. Está tudo tomado. Mas não é isto
o pior. O pioneirismo morreu. Não é mais uma sede. Seu pai tem razão, está tudo
acabado. Entrelaçou os dedos nos joelhos e ficou a olhá-los.
Jody sentiu-se muito triste. “Se o senhor quiser eu lhe faço
uma limonada.”
O avô ia recusar, mas vendo a cara de Jody, disse-lhe: “Isto
seria ótimo. E, seria mesmo muito bom beber um copo de limonada.”
Jody correu para a cozinha, onde sua mãe acabava de lavar os
pratos do café. “Posso apanhar um limão para fazer uma limonada para o vovô?”
A mãe remedou-o: — “E um outro para fazer uma limonada para
você.”
– Não senhora, eu não vou querer.
– Jody! Você está doente! — Mas parou bruscamente. — Tire um
limão do armário, — disse com meiguice. — Pronto, eu apanho o espremedor para
você.
John Steinbeck
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