«Miss Beijo»
O Beijo/ Theodore Gericault
1253- «MISS BEIJO»
[Excerto de «O Belo Adormecido]
Sou testemunha de que a meio de Agosto um vento sudeste rasgou os toldos, virou as gaivotas amarradas por correntes à entrada das praias, e as sombrinhas desprenderam-se da areia, voaram e foram bater dentro do mar. Muitas pessoas perderam sacos, toalhas e colchões de repouso e os directores dos hotéis reuniram-se de emergência para enfrentar a debandada. Boîtes, casinos e outras casas de espectáculo tiveram de intensificar a oferta para evitar que os veraneantes partissem como se tivessem avistado de longe o paraíso perdido. Quando a atmosfera ficou apaziguada e o azul do mar voltou, com marés baixas que faziam os banhistas percorrerem quilómetros de água sem perderem o pé, as avionetas de publicidade começaram a passar desde manhã cedo, arrastando pelo céu grandes faixas em forma de cauda ― Hoje, Casino Lido, Miss Espuma do Mar. Amanhã, 31, Grandes Mágicos do Mundo no Duna Park. Eu sei ― Isabela regressava com a toalha à cabeça, virou-se e ficou a observar o avião que passava com uma terceira faixa. Depois, continuou a andar pela berma da estrada.
Sim, sou testemunha de que Isabela gostava de caminhar. De manhã, a carrinha que levava o irmão Ismael até às obras levava-a também a ela. Chegando junto a umas construções que cresciam sobre a costa, despedia-se do irmão e do condutor da carrinha e voltava para trás, percorrendo a estrada em direcção inversa. Não se importava de fazer esses quilómetros de plástico desfeitos e desbotados. Ela seguia as superfícies de pedra, as sombras das vivendas recatadas, a estreita senda entre o asfalto e as ervas, unindo as pernas para não ser atropelada nem tropeçar nos pastos, muito direita, de modo a não deixar cair a toalha e o saco que por vezes, punha sobre a cabeça, podendo assim ziguezaguear entre obstáculos concretos e imaginados. Com as mãos na cintura, ou os braços abertos, levantados no ar, Isabela divertia-se, desequilibrava-se, retomava o seu prumo, seguia. Só depois deveria entrar num caminho de areia, e aí, à sombra duns prédios altos, escondida no resto do que fora um antigo quintal, ainda com redes de pescador na porta e nas janelas, ficava a casa onde a avó a esperava, sempre ralhando com ela ― «Por que não me ajudas, por que não ficas em casa? Para onde vais? Com quem andas? A mim não me enganas tu! Um dia vais e não voltas mais, com essas pernas nuas.» Depois, choramingava um pouco e punha a comida na mesa. Isabela sentava-se à mesa depois do duche, com o cabelo a pingar sobre a toalha ― «Está bem, Vó, amanhã eu fico…» Não ficava. Mas, apesar de tudo, a avó mantinha secretas esperanças em relação à neta.
Lídia Jorge
Sem comentários:
Enviar um comentário