Autor: Rufino Casablanca
Ilustrações: João Fontes
Publicação «I Retrato» aqui «RETRATOS»... POR RUFINO CASABLANCA
Publicação «II Retrato» aqui «RETRATOS»... POR RUFINO CASABLANCA
«EVITA»
O nosso local de nascimento foi o mesmo. A mesma casa. A mesma parteira. No mesmo ano, 1950. Num monte que se situa no meio daquilo que é hoje um enorme eucaliptal entre as Hortinhas e a Malhada Alta.
Quando éramos crianças apenas havia alguns eucaliptos a
rodear as casas do monte. Eucaliptos de cuja seiva o meu avô tirava uns
extraordinários xaropes peitorais que muitas catarreiras nos curaram. Dantes,
era terra de azinheiras, sobreiros, olivais e solos de semeadura.
Ela, filha dos lavradores donos do monte. Eu, filho de mãe
solteira e neto de um refugiado da guerra civil espanhola que aqui chegara com
a minha mãe ainda criança, em 1936, e que nunca tiveram documentos portugueses
ou espanhóis. Clandestinos até ao fim dos seus dias.
O meu pai, louceiro do Redondo, morreu afogado na ribeira do
Lucefecit, numa noite de invernosas cheias, pouco antes do meu nascimento. No
monte, o meu avô era abegão e a minha mãe era criada. Não obstante as
diferenças sociais, fizemos a escola juntos, primeiro em Terena, onde os
patrões também tinham casa, e depois em Évora. Por essa altura já dormíamos
juntos.
«Os Amantes Rufino e Evita»
Desenho por João Fontes
Casámos cedo, curiosamente com a benção dos meus sogros, com
quem, aliás, sempre me dei magnificamente. Casámos, tivemos filhos, comprámos
casa a crédito, trinta anos de prestações. Era a sério. Foi quando me meti
nestas coisas da música, velha mania dos tempos da flauta de cana e da
harmónica, em improvisações intermináveis que, devo dizer, encantavam a Evita,
quando miúdos, durante as nossas vadiagens pelas margens da ribeira do
Lucifecit.
Fiz formação clássica, bolsa de estudo na Itália. Sempre com
pouco dinheiro. O rendimento que tirava da música não dava para a sobrevivência
da família. Foi quando, depois da revolução, formei a banda, aligeirando o meu
estilo musical. Quando a banda começou a ter sucesso e a andar por fora é que
os nossos problemas vieram ao de cima. Eram semanas seguidas fora de casa. No
verão, chegavam a ser meses. Nós, todo o grupo, embriagados com a saída que estávamos
a ter. Eram contratos atrás de contratos. O dinheiro, finalmente, começava a
sobrar. Mudámos de casa e comprámos carros novos. A Evita até tinha mais tempo
para dedicar aos tribunais. Era, e ainda é, uma excelente advogada. E quando
tudo parecia – pensava eu – que corria bem, a Evita achou que não havia mais
condições de vivermos juntos.
Caiu-me o céu na cabeça. Eu, o mais bem comportado do grupo,
o que dormia sozinho nos quartos de hotel quando andávamos em digressão, o que
telefonava para casa todas as noites, era largado pela mulher com a
justificação que não dava apoio suficiente à família. Nunca acreditei nessa
desculpa e mais tarde, muito mais tarde, vim a saber que ela já se entendia com
um juiz do ministério público. Antes de saber dessa relação ainda me esforcei
muito para que o casamento não acabasse. Até falhei contratos. Os dados, porém,
já estavam lançados e não havia nada a fazer. Cada um foi para seu lado,
ficando os nossos filhos a viver com a mãe. Hoje somos amigos. A Evita disse-me
mais tarde, quando todas as raivas e ciúmes se desvaneceram nos meandros, nos
encontros e desencontros da vida, que se tinha cansado de esperar durante todos
aqueles anos em que o sucesso tinha embebedado a banda.
«A Sentença do Juíz»
Desenho por João Fontes
Ela também não teve sorte. A relação com o juiz não durou
muito e viveu sozinha durante muitos anos, já que os nossos dois rapazes saíram
de casa muito novos. Às vezes até parece que ela me pede com os olhos que eu
fique, quando a visito. E um dia destes vou ficar. É que estivemos juntos cerca
de trinta anos. Do nascimento ao divórcio. É muito tempo! Tudo o que sabemos,
foi aprendido a meias. Desde as letras ao sexo. Nunca houve interferências
externas nas nossas vidas até ter aparecido o tal juiz. Completávamo-nos. Nas
letras, foi ela o meu amparo. Desde sempre. E muitas das canções que eu
apresentava como minhas, enquanto a banda se manteve unida, na realidade as
poesias eram dela.
Já no sexo foi ela que aprendeu comigo. Tínhamos uma
excelente relação de cama, pelo menos assim continuo a pensar. Ironicamente, o
homem com quem a Evita foi viver depois de nos separarmos, ao verificar como
ela se comportava na cama, tirou conclusões erradas, e pensou que uma mulher
daquelas, com tal experiência e tamanha beleza, não podia ter casado e permanecido
com o mesmo homem durante tantos anos. Onde tinha ela aprendido tudo aquilo?
Com quem tinha aprendido? Seria mesmo como ela dizia? O homem ficou com muitas
dúvidas e as crescentes ousadias de Evita mais não fizeram que aumentar essas
dúvidas. Os ciúmes e as dúvidas são danados para estragar uma relação, eu sei.
É altura de dizer que ela era uma mulher muito bonita. Juntem uma saia curta ou
umas calças apertadas e terão a Evita no seu melhor.
«Pose Sensual de Rufino e Evita»
Desenho por João Fontes
Depois de nos divorciarmos a relação dela não aguentou um
ano. O juiz foi transferido para uma comarca em Trás-os-Montes e nunca mais se
ouviu falar dele. Só tive conhecimento disto muito mais tarde e foi a própria
Evita quem me contou, num daqueles encontros que sempre mantivemos por causa
dos nossos rapazes. Não nego que isto me deu algum gozo, numa espécie de
vingança retardada, e nem sequer me apercebi que a Evita apalpava terreno para
um eventual reatamento. Reatamento que não seria possível porque nessa altura
já eu andava com a Chibía. E de cabeça perdida, como é hábito meu nestas
coisas.
A Evita vive agora no Monte do Meio, o monte da nossa
infância. O mais novo dos nossos filhos voltou a viver com a mãe. Ela teve um
problema oncológico, mas o pior já passou. O cabelo já recomeçou a crescer.
Visito-a com frequência e já ouço de novo aquelas gargalhadas que encantavam
toda a gente.
Rufino Casablanca
Monte do Meio, 2001
Em 2 palavras Fantás tico.
ResponderEliminarGosto muito de ler textos de certa forma biográficos que nos retratam outros tempos e outras vivências.
Quero deixar aqui os meus parabéns ao poet'anarquista pela publicação, ao autor dos textos (descanso à sua alma)e ao meu amigo João Fontes, com que partilho muitas aventuras, caracóis e minis, pelos magníficos desenhos.
Um abraço.
Bruno Pires
Muito obrigado miudo, palavras sábias as tuas. LOOL
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