terça-feira, 5 de junho de 2012

«RETRATOS»... POR RUFINO CASABLANCA

III Retrato - «Evita»
Autor: Rufino Casablanca
Ilustrações: João Fontes
Publicação «I Retrato» aqui «RETRATOS»... POR RUFINO CASABLANCA
Publicação «II Retrato» aqui «RETRATOS»... POR RUFINO CASABLANCA


«EVITA»


O  nosso  local  de   nascimento   foi  o  mesmo. A  mesma  casa. A  mesma  parteira. No  mesmo  ano, 1950. Num monte  que se situa no meio  daquilo  que é  hoje  um  enorme  eucaliptal  entre  as Hortinhas e a Malhada Alta.

Quando éramos crianças apenas havia alguns eucaliptos a rodear as casas do monte. Eucaliptos de cuja seiva o meu avô tirava uns extraordinários xaropes peitorais que muitas catarreiras nos curaram. Dantes, era terra de azinheiras, sobreiros, olivais e solos de semeadura.

Ela, filha dos lavradores donos do monte. Eu, filho de mãe solteira e neto de um refugiado da guerra civil espanhola que aqui chegara com a minha mãe ainda criança, em 1936, e que nunca tiveram documentos portugueses ou espanhóis. Clandestinos até ao fim dos seus dias.

O meu pai, louceiro do Redondo, morreu afogado na ribeira do Lucefecit, numa noite de invernosas cheias, pouco antes do meu nascimento. No monte, o meu avô era abegão e a minha mãe era criada. Não obstante as diferenças sociais, fizemos a escola juntos, primeiro em Terena, onde os patrões também tinham casa, e depois em Évora. Por essa altura já dormíamos juntos.

«Os Amantes Rufino e Evita»
Desenho por João Fontes

Casámos cedo, curiosamente com a benção dos meus sogros, com quem, aliás, sempre me dei magnificamente. Casámos, tivemos filhos, comprámos casa a crédito, trinta anos de prestações. Era a sério. Foi quando me meti nestas coisas da música, velha mania dos tempos da flauta de cana e da harmónica, em improvisações intermináveis que, devo dizer, encantavam a Evita, quando miúdos, durante as nossas vadiagens pelas margens da ribeira do Lucifecit.

Fiz formação clássica, bolsa de estudo na Itália. Sempre com pouco dinheiro. O rendimento que tirava da música não dava para a sobrevivência da família. Foi quando, depois da revolução, formei a banda, aligeirando o meu estilo musical. Quando a banda começou a ter sucesso e a andar por fora é que os nossos problemas vieram ao de cima. Eram semanas seguidas fora de casa. No verão, chegavam a ser meses. Nós, todo o grupo, embriagados com a saída que estávamos a ter. Eram contratos atrás de contratos. O dinheiro, finalmente, começava a sobrar. Mudámos de casa e comprámos carros novos. A Evita até tinha mais tempo para dedicar aos tribunais. Era, e ainda é, uma excelente advogada. E quando tudo parecia – pensava eu – que corria bem, a Evita achou que não havia mais condições de vivermos juntos.

Caiu-me o céu na cabeça. Eu, o mais bem comportado do grupo, o que dormia sozinho nos quartos de hotel quando andávamos em digressão, o que telefonava para casa todas as noites, era largado pela mulher com a justificação que não dava apoio suficiente à família. Nunca acreditei nessa desculpa e mais tarde, muito mais tarde, vim a saber que ela já se entendia com um juiz do ministério público. Antes de saber dessa relação ainda me esforcei muito para que o casamento não acabasse. Até falhei contratos. Os dados, porém, já estavam lançados e não havia nada a fazer. Cada um foi para seu lado, ficando os nossos filhos a viver com a mãe. Hoje somos amigos. A Evita disse-me mais tarde, quando todas as raivas e ciúmes se desvaneceram nos meandros, nos encontros e desencontros da vida, que se tinha cansado de esperar durante todos aqueles anos em que o sucesso tinha embebedado a banda.

«A Sentença do Juíz»
Desenho por João Fontes

Ela também não teve sorte. A relação com o juiz não durou muito e viveu sozinha durante muitos anos, já que os nossos dois rapazes saíram de casa muito novos. Às vezes até parece que ela me pede com os olhos que eu fique, quando a visito. E um dia destes vou ficar. É que estivemos juntos cerca de trinta anos. Do nascimento ao divórcio. É muito tempo! Tudo o que sabemos, foi aprendido a meias. Desde as letras ao sexo. Nunca houve interferências externas nas nossas vidas até ter aparecido o tal juiz. Completávamo-nos. Nas letras, foi ela o meu amparo. Desde sempre. E muitas das canções que eu apresentava como minhas, enquanto a banda se manteve unida, na realidade as poesias eram dela.

Já no sexo foi ela que aprendeu comigo. Tínhamos uma excelente relação de cama, pelo menos assim continuo a pensar. Ironicamente, o homem com quem a Evita foi viver depois de nos separarmos, ao verificar como ela se comportava na cama, tirou conclusões erradas, e pensou que uma mulher daquelas, com tal experiência e tamanha beleza, não podia ter casado e permanecido com o mesmo homem durante tantos anos. Onde tinha ela aprendido tudo aquilo? Com quem tinha aprendido? Seria mesmo como ela dizia? O homem ficou com muitas dúvidas e as crescentes ousadias de Evita mais não fizeram que aumentar essas dúvidas. Os ciúmes e as dúvidas são danados para estragar uma relação, eu sei. É altura de dizer que ela era uma mulher muito bonita. Juntem uma saia curta ou umas calças apertadas e terão a Evita no seu melhor.

«Pose Sensual de Rufino e Evita»   
Desenho por João Fontes

Depois de nos divorciarmos a relação dela não aguentou um ano. O juiz foi transferido para uma comarca em Trás-os-Montes e nunca mais se ouviu falar dele. Só tive conhecimento disto muito mais tarde e foi a própria Evita quem me contou, num daqueles encontros que sempre mantivemos por causa dos nossos rapazes. Não nego que isto me deu algum gozo, numa espécie de vingança retardada, e nem sequer me apercebi que a Evita apalpava terreno para um eventual reatamento. Reatamento que não seria possível porque nessa altura já eu andava com a Chibía. E de cabeça perdida, como é hábito meu nestas coisas.

A Evita vive agora no Monte do Meio, o monte da nossa infância. O mais novo dos nossos filhos voltou a viver com a mãe. Ela teve um problema oncológico, mas o pior já passou. O cabelo já recomeçou a crescer. Visito-a com frequência e já ouço de novo aquelas gargalhadas que encantavam toda a gente.        

Rufino Casablanca
Monte do Meio, 2001

2 comentários:

Anónimo disse...

Em 2 palavras Fantás tico.
Gosto muito de ler textos de certa forma biográficos que nos retratam outros tempos e outras vivências.
Quero deixar aqui os meus parabéns ao poet'anarquista pela publicação, ao autor dos textos (descanso à sua alma)e ao meu amigo João Fontes, com que partilho muitas aventuras, caracóis e minis, pelos magníficos desenhos.

Um abraço.
Bruno Pires

João Fontes disse...

Muito obrigado miudo, palavras sábias as tuas. LOOL